Depois dos difíceis anos de isolamento e impossibilidade de realização de eventos coletivos em que todos respirassem o mesmo ar, o XI Encontro do GT de Estética da ANPOF realizou-se no Museu de Arte da Bahia, entre os dias 13 e 15 de junho de 2022. Este 32º número da Viso reúne 25 textos apresentados naquela ocasião, permeada pela alegria proporcionada pelo retorno aos debates que aprendemos a chamar, na falta deles, de presenciais. O encontro funcionou segundo a dinâmica já consagrada nas edições anteriores, com mesas organizadas em torno da apresentação do trabalho de um colega a ser comentado pelos demais componentes da mesa.
No artigo de abertura, Virginia Figueiredo analisa GFP Bunny, bio-arte do artista plástico brasileiro Eduardo Kac, questionando a partir da estética kantiana a vigência, ou não, da tradicional relação entre arte e natureza no mundo contemporâneo. Em seu comentário, Vladimir Vieira procura mostrar que, apesar da condenação de obra de Kant sob uma perspectiva decolonialista, a “Crítica da faculdade de julgar teleológica” ofereceria aportes para uma outra compreensão da natureza. Rosa Gabriella Gonçalves, por sua vez, aborda a dificuldade de se encontrar ferramentas teóricas para discutir a arte contemporânea quando esta extrapola questões meramente formais para discutir problemas que dizem respeito a outros campos do conhecimento a partir de Kant, Greenberg e Kosuth.
No segundo debate, Patrick Pessoa retorna a seu diálogo com o ator japonês Ryonosuke Mori em torno das identidades e diferenças entre a crítica de arte e a criação artística, adensando-o agora em torno da noção de “acontecimento”. É concentrando-se nesta forma, o diálogo – velho conhecido da filosofia, de Platão a Heidegger –, que Pedro Duarte relacionará em seu comentário diferenças entre culturas, como o Ocidente e o Oriente; entre atividades, como crítica e arte; entre experiências e situações, como o teatro e a pandemia. Ressaltando as origens românticas da temática, Luciano Gatti discute em sua intervenção os impasses da dissolução da dimensão reflexiva e judicativa da crítica em um paradigma do acontecimento vinculado primariamente aos afetos.
Carla Damião trata, em seu artigo, da associação entre estética e decolonialidade, partindo do conflito que se instala entre as noções de interdito e a ressignificação. Ao comentá-lo, Debora Pazetto retoma o conceito de colonialidade do ver como ferramenta crítica aos regimes visuais racista, misógino e sexista, em busca de uma nova cultura da visibilidade. Já Rachel Cecília, através de uma crítica da branquitude da estética e da história da arte, problematiza em seu texto o recorte de raça do sistema das artes vigente no país e suas principais características.
Na sequência, o centenário da morte de Proust é o ensejo para Marcela Oliveira analisar o caráter não totalizante da Recherche, obra que se abre assim indefinidamente entre os extremos do início e do fim do relato. Seu recurso a Walter Benjamin, Gilles Deleuze e Samuel Beckett, motiva Cíntia Vieira a comentar esse fascínio dos filósofos pela literatura de Proust, explorando especialmente o caso deleuziano, ao retomar o problema da unidade de uma obra de arte em sua relação com o estilo, e da importância e configuração da temporalidade em Proust e da relação dos signos com o aprendizado temporal . Rafael Zacca, por outro lado, foca essa operação temporal própria ao romance que, contrária ao mero transcorrer cronológico do tempo, isola-o e o inverte pela força da ação desejante de Eros.
Retornando ao curioso opúsculo de Kant, Os sonhos de um visionário explicados pelos sonhos da metafísica, Walter Menon abre o quinto debate relacionando as explicações das aparições espectrais e seus mecanismos de projeção às preocupações acerca de uma nascente indústria cultural e seu prolongamento no realismo capitalista formulado por Mark Fisher. Em sua réplica, Ricardo Barbosa questiona a aproximação, reconstituindo a transição entre o projeto kantiano e as críticas de Adorno e Horkheimer, questionando também a onipotência e autonomia da estrutura de um tal realismo capitalista. Em outra direção, Pedro Franceschini discute o deslocamento do texto de Menon a partir de certa lógica espectral, ressaltando o interesse que esta terá também para Fisher como abertura e resistência.
Também na encruzilhada entre estética e tecnologia, Guilherme Foscolo analisa a dinâmica estabelecida entre a produção de memes e a constituição de metanarrativas própria à estratégia digital da recente guinada neofascista nos EUA e no Brasil. Partindo sobretudo do conceito de hiperstição mobilizado por Foscolo, o comentário de Anderson Bogéa investiga os meios técnicos de produção ficcional de realidades que se tornaram ferramentas de desorientação e cooptação das massas marcantes nestes obscuros anos. Bernardo Barros Oliveira, de sua parte, recorre a Freud para compreender esses fenômenos a partir da psicologia das massas, desconstruindo igualmente a mística da tecnologia digital.
Francisco Pinheiro Machado faz surgir diante de nós, com notável vivacidade e minúcia, o grupo escultural “A Verdade desvelada pelo Tempo”, de Gian Lorenzo Bernini, explorando uma série de contrastes dessa obra exemplar da forma alegórica do barroco. Como contraponto, é justamente a noção de alegoria, agora como conceito vindo da retórica, que permitirá a Silvia Faustino de Assis Saes acompanhar aspectos da leitura de Machado, salientando o valor simbólico de alguns dos atributos da figura investigada.
No núcleo do debate seguinte, Luis Inacio Oliveira Costa volta seus olhos a um gênero frequentemente relegado à despretensão do entretenimento: o romance policial. Investigando os trabalhos que Walter Benjamin dedicou ao tema, o autor o coloca ao lado de outros fenômenos estéticos mais conhecidos da pesquisa do filósofo, como o cinema e a fotografia, reconhecendo-o assim no cerne de sua arqueologia da modernidade. Em seu comentário, Ulisses Vaccari alarga a discussão em torno de Benjamin, sugerindo proximidades entre essa discussão do romance policial e aspectos do épico, levando-o à parceria benjaminiana com Brecht. Revelando que o assunto ocasiona outras perambulações – estas também em sentido literal –, Rizzia Soares Rocha toma a figura do flâneur, tão cara a Benjamin, como ponto de partida para pensar o andarilho urbano também nas artes visuais, em um percurso por várias manifestações de vanguarda.
Como debate final, Pedro Hussak retoma e responde observações à sua proposta de quatro regimes da imagem, entendidos sob as rubricas da imagem ilusória, encarnada, dialética e xamânica. Por meio deles, o autor estabelece contraposições e interpretações de fenômenos imagéticos nos mais variados contextos, invocando referências que vão de Platão a Davi Kopenawa. Em réplica que fecha a revista, mas certamente abre a discussão para desenvolvimentos ulteriores, Rodrigo Duarte elenca cinco tópicos em que o ensaio de Hussak mereceria aprofundamentos e esclarecimentos.
Desejando guardar a memória, convivial e acadêmica, daquelas jornadas soteropolitanas, os editores entregam este número da Viso também com olhos prospectivos, na esperança de que essas discussões possam encorajaroutros projetos.
GFP Bunny, de Eduardo Kac.