Viso: Cadernos de estética aplicada
v. 7, n° 14 (jul-dez/2013)

Neste número 14, que marca os sete anos de existência da Revista Viso: Cadernos de Estética Aplicada, trazemos ao leitor brasileiro duas traduções de textos fundamentais para a discussão estética: o prefácio escrito por Boileau à sua tradução do Tratado do sublime, de Longino, um dos marcos decisivos do assim chamado neoclassicismo francês; e o texto de introdução de Unnatural Wonders: Essays from the Gap between Life and Art, publicado por Arthur Danto em 2005, uma das últimas obras desse importante filósofo da arte norteamericano, recentemente falecido. Ecoando algumas das questões levantadas por Danto em seu ensaio, trazemos também um texto que reflete sobre “a destradicionalização da arte” por ele teorizada. Além desses ensaios no campo da “estética pura”, a sessão principal da revista apresenta uma bela reflexão sobre as grandes manifestações ocorridas mundo afora entre 2011 e 2013, inspirada por Bakhtin e Benjamin. Na seara da “estética aplicada” propriamente dita, este número traz ainda dois textos no campo da filosofia da literatura – um sobre o conceito de epifania em Joyce e outro sobre A metamorfose, de Kafka; um texto no campo da filosofia da música, em que se traça interessante paralelo entre Kant e Sloterdijk; e, finalmente, uma reflexão filosófica sobre o cinema que toma como ponto de partida o documentário inacabado que Orson Welles rodou no Brasil em meio à Segunda Guerra Mundial.

Na rigorosa tradução que Vladimir Vieira fez do prefácio de Boileau à sua tradução do Tratado do sublime, de Longino, o leitor poderá apreciar uma diferença conceitual importante, estabelecida pelo mestre neoclássico francês, entre o estilo sublime e o Sublime propriamente dito, primariamente ligado ao conteúdo de uma expressão. Contrariando um certo senso comum, Boileau defende que o caráter ornamentado e prolixo a que se costuma associar o estilo sublime paradoxalmente impede o aparecimento do Sublime como tal, muito mais ligado à brevidade de uma palavra que, vinda do fundo do coração, é capaz de nos arrebatar, ou, em suas palavras, maravilhar. Sublimes, para Boileau, não seriam quaisquer construções rebuscadas, mas antes palavras-gesto, como a de Deus ao proclamar “Que se faça a luz!” ou a do velho Horácio de Corneille que, informado sobre a fuga de um de seus filhos em uma batalha na qual haviam morrido os outros dois, vaticina que teria preferido “Que ele morresse!”.

Na importante tradução realizada por Miguel Gally, Clarissa Barbosa e Leandro Aguiar da introdução de Unnatural Wonders: Essays from the Gap between Life and Art, publicado por Arthur Danto em 2005, o eminente crítico e filósofo da arte norte-americano apresenta sucintamente a sua própria compreensão do que seria “o fim da arte”, sempre dialogando com a leitura que faz da Estética de Hegel. Dessa compreensão, decorre uma belíssima definição da natureza da crítica e do papel do crítico na atualidade. Escreve Danto: “Minha prática como crítico foi a de me dirigir à arte depois do fim da arte do mesmo modo como Hegel dirigiu-se à arte antes do fim da arte — procurando o sentido da arte e, em seguida, determinando como este significado se incorpora no objeto. Da perspectiva dessa prática, escrever sobre Leonardo ou Artemisia Gentileschi não é diferente de escrever sobre Gerhard Richter ou Judy Chicago. Toda arte é arte conceitual (com c minúsculo) e sempre foi. Mesmo naquela Idade de Ouro que Hegel sentimentalizou tinha de haver um discurso que se assemelhasse exatamente ao que ele entendia como crítica de arte. Esse teria sido o discurso dos próprios artistas, que precisavam ser capazes de discutir o que eles faziam em referência ao efeito que eles pretendiam que sua arte tivesse. O que falta na discussão de Hegel é a concepção de arte feita por artistas com certos propósitos em vista. O crítico ocupa hoje uma dupla perspectiva, a do artista e a do espectador. O crítico é aquele que tem de recuperar qual efeito a arte tem sobre o espectador — qual significado o artista quis trazer — e, em seguida, como este significado deve ser lido no objeto no qual ele foi incorporado. Eu vejo a minha tarefa como mediação entre o artista e o espectador, ajudando os espectadores a apreender o que foi intencionado. Pode ter havido tempos em que críticos não precisavam interpretar a arte para os espectadores, mas da maneira como a história da arte se desenvolveu o crítico é cada vez mais requisitado a explicar ao espectador o que está sendo visto. Nós temos que tratar a arte de hoje à maneira que Hegel tratava a arte do passado, quando o artista e o espectador constituíam — pelo menos idealmente — uma comunidade real. O que o fim da arte significa é somente que estamos, finalmente, conscientes dessa verdade”.

Em texto intitulado “A destradicionalização da arte”, Raquel Costa se propõe a pensar a diferença entre a arte moderna e a arte contemporânea a partir das considerações sobre o fim da arte, de Arthur Danto, e do conceito de arte pós-histórica, como lido por Villém Flusser. A autora propõe uma interessante distinção conceitual entre ambos os pensadores: se, para Danto, o fim da arte marcaria a pura e simples impossibilidade de se fixar qualquer parâmetro para a arte contemporânea, instaurando uma pluralidade potencialmente eterna no que diz respeito às presentes e futuras definições do que é a arte, para Flusser, que também reconhece a pluralidade como principal marca da arte contemporânea (a qual não se deixa identificar a nenhum estilo e a nenhum tema, a nenhuma tentativa específica de romper com a tradição artística ocidental – daí o termo “arte destradicionalizada”), o fundamento principal dessa mudança seria histórico: a mudança dos media através dos quais a arte se expressa. Deste modo, ao contrário de Danto, que tenderia a recair numa posição quase supra-histórica em sua compreensão da arte contemporânea, Flusser permitiria a antevisão de futuras modificações no próprio estatuto da arte, as quais seriam condicionadas pelo surgimento de novos media, hoje ainda imprevisíveis.

Em um ensaio dedicado à professora Marcia Cavalcante Schuback, sua colega na Universidade Södertörns, na Suécia, Irina Sandomirskaja toma como objeto de naálise os atuais movimentos de “reclamação”, “ocupação” e “provocação”, que visam a redefinir o ativismo social tanto no campo da política propriamente dita quanto no campo da arte. A questão central de seu texto investiga a legitimidade de um tipo de violência simbólica que seja uma reação eficaz à violência dos poderes institucionalizados. Para pensar essa questão, a autora mobiliza três conceitos centrais na obra de Bakhtin – diálogo, carnaval e corpo grotesco – e compara-os com os conceitos de “violência pura (ou divina)” e “violência mítica (ou do direito)”, como tematizados por Walter Benjamin em seu influente ensaio “Para uma crítica da violência”, que mereceu comentários de alguns dos principais nomes do pensamento contemporâneo, tais como Derrida, Agamben e Zizek. A tese central do ensaio é a de que “a violência pura em Benjamin, assim como o carnaval em Bakhtin, são categorias para se conceber a capacidade infinita da negatividade, que pode tanto aniquilar como gerar uma energia meta-histórica que determina, na política e na história, uma espécie de revolução permanente dentro da criação do mundo, o desenvolvimento abrangente do todo num movimento sem fim ou finalidade. São os princípios violentos na economia da criação do mundo que formam e levam adiante o tempo”.

Em um instigante texto sobre a relação entre o pensamento de Heidegger e o de Deleuze, Pablo Nicolás Pachilla parte da proximidade etimológica entre os conceitos de “epifania” e de “fenômeno” para sugerir que o modo como Deleuze elabora seu conceito de epifania, com base sobretudo em sua leitura da obra de James Joyce, torna possível a compreensão de um sentido de ser mais originário do que os sentidos tematizados explicitamente por Heidegger em Ser e tempo. A questão que serve de fio condutor à sua leitura de Deleuze é a seguinte: “pode-se encontrar na leitura deleuzeana de alguns dos grandes romancistas do começo do século XX um modo de compreender a obra de arte como um dar-se imediato do ser?”

Já em seu artigo sobre A metamorfose, de Kafka, Jairo Dias Carvalho se propõe a relacionar o conceito de mundo híbrido, que ele esclarece ao longo do ensaio, ao conceito de noção primitiva de mundo, formulado por Leibniz, identificando o conceito de mundo ficcional híbrido de Kafka como um tipo de mundo possível. Segundo o autor, “a Metamorfose constitui um mundo ficcional de tipo híbrido e não de tipo fantástico”.

Em texto sobre Peter Sloterdijk, autor importante no cenário filosófico mundial e que pela primeira vez tem um texto dedicado à sua obra publicado na Viso, Ana Monique Moura parte de uma caracterização preliminar do lugar ambíguo da música na terceira crítica de Kant – trata-se que produz um “belo jogo de sensações”, mais do que aquele “jogo livre entre a imaginação e o entendimento” que caracteriza a experiência estética (do belo) – para, em seguida, mostrar em que sentidos, para Sloterdijk, “die Welt ist Klang”, “o mundo é som”. O corolário dessa pressuposição quase pitagórica de Sloterdijk é a exigência de se criar uma “ontologia musical do ser”, no âmbito da qual os seres humanos, ensurdecidos por harmonias estandardizadas ao longo da história da música, possam desenvolver um “ouvido neometafísico” que os habilite a captar o som antes de sua padronização como música.

Finalmente, em artigo sobre o documentário inacabado de Orson Welles acerca do Brasil, It´s All True, e sobre a tetralogia de Rogério Sganzerla que dialoga com fragmentos do filme de Welles achados quase quarenta anos depois de terem sido filmados, Carla Milani Damião investiga a noção de “filme-ensaio” e as estratégias fílmicas e políticas dos dois cineastas para resistir ao imperialismo cultural norte-americano, o mesmo imperialismo que, paradoxalmente, financiou a visita de Welles ao Brasil, em 1942, como “embaixador da boa vontade”, em uma missão que, como mostra a autora, não teria como não fracassar.

A todos, os editores desejam uma boa leitura!

A imagem da capa desta edição mostra um still do filme Tudo é Brasil, de Rogerio Sganzerla