Viso: Cadernos de estética aplicada
v. 17, n° 33 (jul-dec/2023)

O número 33 da Revista Viso vem a lume com um conteúdo bastante diversificado: além da tradicional Seção principal, que conta nesta edição com dez artigos inéditos de estética aplicada sobre variadas formas artísticas, a revista traz também as seções especiais de Traduções, com uma conferência de Sartre, e de História da estética, retomada após algum tempo com um texto original de Daniel Pucciarelli.

Neste, que abre a revista, nosso colega mineiro apresenta os conceitos de “metaestética” e “metafilosofia da arte” como subdisciplinas de cunho metateórico relativamente pouco consolidadas ou especializadas quando comparadas a outras disciplinas fundamentais da filosofia. Entretanto, ao mobilizarem questões centrais que implícita ou explicitamente atravessam a história da estética, de Baumgarten a Noël Carrol, o autor evidencia o potencial das mesmas para o discurso filosófico.

A seguir, na seção Traduções, André Constantino Yazbek, Thana Mara de Souza e Lucas Palmier de Almeida nos oferecem em português a instigante fala de Jean-Paul Sartre, “A desmilitarização da cultura”, proferida no Congresso Mundial para o Desarmamento Geral e a Paz, ocorrido em Moscou, na então URSS, em 1962. Aparentemente limitada ao contexto bastante específico da Guerra Fria, a crítica do filósofo francês à cultura desvirtuada pela lógica da guerra, que se afirma como uma particularidade identitária plena, torna-se surpreendentemente atual em um contexto, inclusive brasileiro, em que acirramentos e polarizações ideológicas passaram comumente a ser lidos e fomentados na chave de uma “guerra cultural”.

Na seção fixa da revista, cinema, teatro, artes plásticas e literatura se alternam como objeto de reflexões estéticas variadas. Iniciando o bloco fílmico-teatral, “Apontamentos para uma leitura maquínica do desejo no filme A lei do desejo de Pedro Almodóvar” aborda o conceito de desejo na obra do cineasta espanhol, discutindo desde suas concepções mais tradicionais na filosofia até a formulação de Deleuze e Guattari de produção maquínica. No artigo seguinte, Artur Kon faz um detalhado estudo de caso de produções recentes do grupo colombiano Mapa Teatro, explorando a fecunda relação entre criação artística e pesquisa proposta pelo coletivo, que parece escapar dos extremos da recusa artística de questões acadêmicas e epistemológicas ou da mera identificação da arte com o conhecimento. Voltamos ao cinema com o texto de Deodato Libanio, que procura responder ao questionamento de Ricardo Fabbrini: em meio à hegemonia das imagens vazias e autorreferentes, tão bem descrito por Baudrillard, seria ainda possível produzir uma imagem provocadora, que rompe o circuito dos simulacros como uma contraimagem? Apoiando-se em vários teóricos contemporâneos, o autor propõe o cinema de Godard, mais especificamente seu filme Imagem e palavra, de 2018, como uma possível exceção e ruptura da regra dominante do simulacro. Na sequência, os três autores de “O mestre diante do outro: emancipação e igualdade nas imagens de Glauber Rocha e Jean Rouch” discutem a pedagogia das imagens nas obras dos dois diretores a partir do pensamento de Jacques Rancière sobre a emancipação. De maneiras e tons distintos, até mesmo inversos – o brasileiro, pelo transe da montagem, o francês, com seu cinema verdade de matriz antropológica –, ambos estabeleceriam uma igualdade entre diretor e espectador, produzindo imagens que se tornam agentes de subjetivação, novas formações de sensibilidade e, assim, emancipação.

Levando-nos para a poesia, João Gabriel M. Lopes retoma, em “Altos e baixos da atualidade do conceito de resistência”, o debate da crítica literária da virada do milênio sobre a perda do lugar da poesia no cenário sócio-cultural brasileiro. Dialetizando o potencial e os limites do conceito de resistência, elaborado por Alfredo Bosi ainda na década de 1970, o texto revisita o conceito para repensar essa relação entre literatura e sociedade, fazendo desembocar seu questionamento em uma análise concreta de dois poemas recentes de Fabiano Calixto. Não de todo apartado dessas questões em torno da formação nacional, o artigo seguinte, de Luiz Philip Gasparete, analisa o método crítico de Rodrigo Naves tendo em vista o que seriam algumas de suas bases filosóficas. Dois ensaios de Naves servem de apoio textual para a defesa da hipótese de que sua metodologia revela, para além da articulação entre forma artística e processo social, a pressuposição de valores éticos e morais engendrados pelas obras, remetendo em sua conclusão a um curioso diálogo com Drummond e Kant.

Da “noite moral” para o fin del mundo dos cataclismos radioativos e climáticos: a contribuição em língua espanhola de Noelia Billi promove a cada vez mais urgente discussão da destruição dos ecossistemas pela ação humana a partir das práticas artísticas que a denunciam. Mais especificamente, a autora explora o conceito de “estética da explicitude” em duas obras que utilizam as formas vegetais como meio de produção de imagens não-humanas, capazes de registrar a crise climática de um mundo chegado a seu fim que, de outro modo, não parece poder ser explicitado ou pensado.

Espécie de interlúdio, “Shakespeare e Montaigne”, de Pedro Süssekind, faz uma minuciosa reconstrução da tradição de estudos acerca da relação entre o dramaturgo e o filósofo, dois dos mais importantes escritores modernos. A análise desse histórico, que remete ao século XVIII, concentra-se então no caso da citação de “Dos canibais” em A tempestade, tomado a partir da história de recepção crítica de ambos os autores e das mudanças nas encenações da peça, que chega até as leituras anticoloniais.

Por fim, uma dupla de artigos conclui a revista com considerações filosóficas que se voltam para obras de artes plásticas. Tiago Nunes Soares defende nos textos estéticos de Merleau-Ponty, principalmente “A dúvida de Cézanne”, um conceito original de criação e expressão: entre necessidade e liberdade, o condicionamento situacional do encontro com as coisas e as intenções subjetivas do artista, o sentido surge como trama tecida na espontaneidade e indeterminabilidade das possibilidades surgidas do entrelaçamento desses opostos. O artigo culmina – em uma acepção radical e inusitada da ideia de estética aplicada – com seu próprio experimento de repetição criativa do quadro Monte Santa Vitória do pintor de Aix-en-Provence. Vinicius Oliveira Sanfelice, por sua vez, aborda a dimensão retórica presente nas filosofias da arte de Ricœur e Danto. Ainda que mediante estratégias bastante distintas, aquele pela via da hermenêutica e este por uma teoria essencialista, ambos os filósofos, sugere o artigo, acabariam por trabalhar aspectos comuns que podem ser compreendidos a partir da integração de seus discursos sob a noção de “transfiguração”, integração testada na análise comparativa do quadro Ophelia, de John Everett Millais, e a assemblage Ofélia, de Farnese de Andrade.

Que esse número variegado e recheado possa saciar as leitoras e leitores!

A capa desta edição é baseada no filme
Barravento, de Glauber Rocha.