Mantendo tradição iniciada em 2012, quando pela primeira vez publicou os textos apresentados e discutidos em um Encontro do GT de Estética da ANPOF – daquela feita realizado no Museu de Arte Contemporânea de Niterói – tradição que se consolidou com a publicação das contribuições apresentadas nos Encontros de 2014 (realizado na UFF) e 2016 (realizado na UFOP), a Revista Viso tem o prazer de apresentar nesta edição a reelaboração em forma de ensaios dos debates realizados no Instituto Moreira Salles, no Rio de Janeiro, entre os dias 22 e 24 de maio de 2018, no âmbito do IX Encontro do GT de Estética da ANPOF.
Com relação aos temas e métodos de abordagem, os textos que agora o leitor tem diante dos olhos são bastante diferentes entre si, mas, dada a estrutura do Encontro no qual foram originalmente apresentados, organizado em mesas temáticas contando com dois ou três pesquisadores cada uma, todos colaboram para a reflexão e o diálogo em torno de algumas das principais questões que orientam a pesquisa em Estética no Brasil.
O texto que abre essa edição, “A alegoria tropicalista do absurdo”, Pedro Duarte, então coordenador do GT de Estética, realiza uma reconstrução crítica das objeções feitas por Roberto Schwarz ao Tropicalismo. “O problema que Schwarz percebe”, escreve Pedro Duarte, “é que falta ao Tropicalismo a mediação que passe da reiteração [alegórica das mazelas nacionais] à superação”. Mas, contra Schwarz, o autor sugere que de fato “o Tropicalismo suprime das suas imagens de Brasil a solução para os conflitos que anuncia. Mas apenas porque eles seriam uma espécie de veneno remédio, como toda droga, ou seja: às vezes responsáveis por nossas doenças, às vezes por nossa saúde”.
Em seu comentário ao texto de Pedro Duarte, Ricardo Fabbrini segue uma sugestão de Celso Favaretto e aproxima o gesto tropicalista do psicanalítico, especialmente do conceito de “perlaboração” [durcharbeiten]. Escreve Fabbrini: “Do mesmo modo que o paciente tenta elaborar a sua perturbação presente associando-a livremente a elementos aparentemente inconsistentes com as situações passadas, os músicos tropicalistas teriam elaborado em suas canções a realidade do presente, associando-o a elementos da tradição, o que lhes teria permitido descobrir sentidos ocultos da vida cultural brasileira”.
Já em seu comentário, Rosa Gabriela questiona a centralidade da “alegoria” na construção tropicalista como diagnosticada por Schwarz e, depois de mencionar outros vários procedimentos característicos do período (como a colagem, a montagem, a bricolage e a assemblage), tece considerações sobre as três principais obras de Tarsila do Amaral (A negra, Abaporu e Antropofagia) recentemente apresentadas em retrospectiva no MoMa de Nova York.
No artigo “A memória do que não passou: Leila Danziger e a elaboração da memória da ditadura brasileira nas artes visuais”, Pedro Hussak utiliza como ponto de partida o trabalho de Leila Danziger para discutir as três estratégias de elaboração da memória da barbárie que teriam se seguido à afirmação adorniana da irrepresentabilidade de Auschwitz. As três estratégias, segundo Hussak, poderiam ser resumidas da seguinte forma: 1) Recusa das imagens e convergência com a não-representação modernista; 2) Recusa das imagens e enfoque na impossibilidade do testemunho; 3) Montagem anacrônica de imagens. A partir dessa tripartição conceitual, sua ideia é mostrar que “a elaboração da memória do genocídio da Segunda Guerra converteu-se em um problema de Estética” e que a obra de Leila Danziger, ao tematizar indiretamente a ditadura brasileira, constituiria uma paradoxal memória do que não passou.
Mariana Lage, em um texto fragmentário e aforismático que dialoga com a discussão proposta por Hussak, tenta apresentar também performativamente a sua tese central: a de que a “representação do irrepresentável” passa pela criação de uma ambiência que toque o espectador sem propriamente querer convencê-lo, seja através de imagens com um referente claramente reconhecível, seja através de palavras que visam argumentar e persuadir. Em lugar desses procedimentos, Mariana sugere que é preciso “passear na neblina”.
Já Verlaine Freitas retoma a interpretação de Hussak do trabalho de Danziger para propor uma interpretação ainda mais adorniana, que vê na incorporação da morte e do silêncio a chave para a realização de uma arte que, sem recusar sua autonomia, não pode se esquecer de que “o sofrimento é sua expressão” e que é “do sofrimento que a forma tira sua substância”
Em “A contribuição de Herder para a fundamentação da estética”, Marco Aurelio Werle discorre sobre a centralidade da obra de Herder para uma nova determinação do alcance e do significado da estética como doutrina filosófica autônoma, cujo fito seria o de promover uma superação da perspectiva da poética normativa tradicional. Nas palavras do autor: “Com o surgimento da disciplina da estética, a teoria precisa mudar de lugar e de feição, passar de preceptiva para uma espécie de discurso retrospectivo e que se encontra próximo do processo de criação e produção, e não distante. A teoria passa a compartilhar da experiência dos processos internos de produção, de suas técnicas, sendo a atividade artística decisiva e a teoria dela dependente, o que obviamente não compromete a teoria, mas lhe imprime uma outra função e característica”.
Pedro Galé, em seu comentário ao texto de Werle, embora reconheça o modo arguto como o autor mostra as relações entre Herder, Baumgarten, Winckelmann e Lessing, se pergunta se toda a trajetória da estética se deixa pensar tomando como base apenas autores alemães. No tom provocativo que lhe é peculiar, Galé escreve: “Em caso de afirmativa, deveríamos deixar de lado autores como Shaftesbury, Burke, Lord Kames, Hume entre outros da ilha britânica, bem como Voltaire, Diderot, Conde Caylous e outros philosophes que deixaram sua marca na história de um pensamento que se relaciona com a estética e a filosofia da arte”. Para ele, especialmente o nome de Diderot mereceria receber um peso maior em qualquer reflexão sobre o desenvolvimento da estética na Alemanha como apresentado por Werle.
Em “Poesia filosófica de Hölderlin entre o antigo e o moderno”, Ulisses Vaccari parte da constatação da “necessidade de criação de uma linguagem capaz de abranger o elemento paradoxal e dialético, uma linguagem na qual a determinação da parte leve sempre em consideração o todo e vice-versa” para propor que “a leitura da estética de Kant (juntamente com o estudo dos gregos) torna-se fundamental nessa busca de uma poética moderna, perseguida por Hölderlin ao longo de todos esses anos de contato com a filosofia. Na Crítica da faculdade do Juízo, Hölderlin encontra uma primeira tentativa filosófica de fundamentação do métier do poeta moderno, precisamente na relação mútua e interdependente entre criação (natureza) e gosto (cultura) que Kant estabelece em seu conceito de gênio”.
Virginia Figueiredo, em seu comentário ao texto de Vaccari, começa polemizando com uma das teses centrais do autor: “não concordo com a interpretação, que tomei como principal do texto de Ulisses Vaccari, de que a tragédia, para Hölderlin, seria ‘uma transposição no estético de uma exposição filosófico-dialética’!” Para Virginia, “a lição, no que diz respeito à própria tragédia, é das mais claras: quanto mais o trágico se identifica com o desejo especulativo do infinito e do divino, mais a tragédia o expõe como a rejeição na separação, na diferenciação, na finitude. A tragédia é, em suma, a catarse do especulativo”.
Vladimir Vieira, por sua vez, após uma minuciosa reconstrução da estrutura argumentativa do texto que se propõe a comentar, problematiza a tendência de Vaccari a enxergar na terceira crítica fundamentos para a construção de uma “poetologia moderna”. Segundo Vieira, a terceira crítica favoreceria mais uma reflexão sobre a recepção do que propriamente sobre a produção do belo.
Em seu texto “A aplicabilidade da estética benjaminiana no Brasil”, Carla Damião propõe inicialmente uma discussão particularmente interessante para os leitores destes Cadernos de Estética Aplicada. Partindo de uma leitura de A segunda vida de Brás Cubas: A filosofia da arte de Machado de Assis, de Patrick Pessoa, ela indaga até que ponto a afirmação radical da autonomia da obra de arte contida na assertiva machadiana de que “a obra em si mesma é tudo” entraria ou não em contradição com o método de crítica imanente de obras de arte desenvolvido por Walter Benjamin ao longo de toda a sua obra. A partir dessa discussão mais ampla sobre o conceito de aplicabilidade, que sutilmente introduz o pensamento do filósofo alemão no contexto do pensamento brasileiro, Damião, valendo-se das célebres teses sobre o conceito de história de Walter Benjamin, defende a possibilidade de ler a história do Brasil a contrapelo tendo como exemplo alguns antimonumentos criados por Néle Azevedo.
Em “Ficção como fruto da falta de fundamento: a ficção especulativa de Vilém Flusser”, Rachel Cecília Oliveira propõe que a estranheza da obra de Flusser se deve em larga medida ao modo como associa conhecimento e ficção. “Flusser é estranho”, afirma a autora, “porque muda de jogo, estabelecendo como objetivo da filosofia aquilo que tradicionalmente deve ser evitado. Coloca na construção poética do mundo seu fundamento ontológico. Assim, o caráter ficcional da filosofia flusseriana, ao ser entendido como atributo positivo, constitui o fundamento de uma fenomenologia não idealista”.
Já Fernando Barros vale-se de uma menção feita por Flusser à relação entre tradução e meditação para tecer seu comentário, que enriquece o texto de Raquel com uma bela citação de Nietzsche: “O que menos se presta à tradução, numa língua, é o tempo do seu estilo: o qual tem origem [...] no tempo médio do seu “metabolismo. Existem traduções honestas que resultam quase em falsificações, sendo vulgarizações involuntárias do original, apenas porque não se pôde traduzir seu tempo ousado e alegre”.
Walter Menon, finalmente, vale-se do comentário de algumas teses levantadas pelo texto de Rachel em torno do pensamento de Flusser para sugerir que sua filosofia pode ser pensada como uma “filosofia da vertigem”, que marca “o momento em que a visada se turva, embaça e somos sugados pelo que antes era mantido à distância segura característica do conceito”.
Em texto intitulado “Samuel Beckett e o minimalismo”, Luciano Gatti propõe uma aproximação entre Samuel Beckett e um conjunto de artistas visuais, em particular escultores, associados ao Minimalismo norte-americano e à sua imediata posteridade, artistas como Donald Judd, Robert Morris, Sol LeWitt e Bruce Nauman. Após uma reconstrução erudita das bases filosóficas do minimalismo norte-americano, Gatti mostra como algumas das últimas obras de Beckett, notadamente aquelas escritas para a televisão – especialmente Quadrado I+II e O que onde –, a um só tempo aproximam-se e distanciam-se dos procedimentos seriais dos referidos minimalistas. Trata-se de um esforço louvável para encontrar as bases teóricas e as referências artísticas mais adequadas para tornar visível a singularidade e a complexidade do trabalho desse Beckett tardio.
Em seu comentário ao texto de Gatti, Marcela Oliveira concentra-se sobretudo no episódio das pedras do romance Molloy, referência lateral no trabalho de Gatti, para enfatizar o quanto procedimentos minimalistas já estavam presentes nas obras de Beckett desde os seus inícios.
Ricardo Barbosa, finalmente, traz um novo elemento para ampliar o debate em torno das multifacetadas relações entre Beckett e o minimalismo: a parceria entre o escritor irlandês e o compositor Morton Feldman, que alarga a discussão proposta por Gatti e a converte em uma interessante discussão sobre o minimalismo na música.
Bernardo Barros, em texto intitulado “Por que narrativas de ficção no mundo da sociabilidade eletrônica?”, apresenta novos desdobramentos de sua pesquisa em torno do modo como os novos aparatos tecnológicos, especialmente o telefone celular, que nos dá a possibilidade de nos tornarmos produtores de filmes e textos (de ficção?) nos quais somos os protagonistas, acarretam uma reconfiguração da estrutura da percepção nos dias atuais. Partindo do parentesco estabelecido por Walter Benjamin entre as estruturas perceptivas características de um tempo histórico e as formas de expressão artística preferidas nesses tempos, ele então se pergunta: por que, em um tempo dominado pelo primado da informação, a antípoda das narrativas segundo Benjamin, ainda assim contingentes cada vez maiores de consumidores sentem a necessidade de mergulhar em longas narrativas de ficção, como as séries e os romances longos?
Pedro Sussekind, em seu breve comentário ao texto de Bernardo, não fornece quaisquer respostas às questões por ele levantadas, mas, partindo da narrativa de um episódio autobiográfico, chama a atenção para a importância de mobilizarmos os conceitos da tradição filosófica no sentido de pensarmos nosso próprio tempo e nossas próprias experiências pessoais.
Por fim, Débora Pazzetto apresenta, em “Intersecções entre arte e tecnologia na pós-história: uma aproximação entre Vilém Flusser e Donna Haraway”, um diagnóstico que acaba por apontar certos caminhos de luta: “o problema [das reflexões contemporâneas em torno da relação entre arte e tecnologia]”, segundo ela, “é que boa parte dos discursos progressistas insiste no argumento de que a técnica envolve, necessariamente, dominação. No entanto, assumir responsabilidade pelas relações sociais da ciência e da tecnologia implica desenvolver um pensamento que não seja tecnofóbico nem tecnofílico – a luta política consiste em ver a partir de ambas as perspectivas ao mesmo tempo. A criação de uma unidade entre as pessoas que estão tentando resistir à intensificação mundial da dominação não deve ser feita pela negação ingênua da tecnologia, mas por sua assimilação subversiva. É justamente porque ciborgues são um projeto militar do capitalismo, em colaboração com novas formas de guerra imperialista, que Haraway os transforma em mito, ironia, símbolo da libertação feminista”.
Miguel Gally, ao comentar o texto de Pazzetto, ainda que concorde com a maioria de seus diagnósticos e prognósticos, e também com o tom “otimista” de Flusser e Haraway, propõe que a dicotomia colonizador-colonizado e a inclusão de povos que foram extintos antes da exposição à hipertecnologia sejam alçados a motivos centrais dessa reflexão em terras brasileiras. Ainda mais no tempo histórico que é o nosso. Escreve Miguel: “Tal dicotomia [colonizador-colonizado] não seria, entretanto, uma dicotomia como as outras, porque ela pressupõe outras tantas para se legitimar, ou seja, para que haja a colonização, enquanto dominação da natureza, as dicotomias cultura/natureza e civilizado/primitivo, por exemplo, são instrumentos decisivos, assim como aquela entre agente/recurso, etc”.
Já Rodrigo Duarte traz algumas teses de Adorno e Horkheimer para matizar (em um sentido talvez mais “pessimista”) a discussão entre Flusser e Haraway. De acordo com Duarte, “segundo Adorno e Horkheimer, após milênios de repressão da corporeidade por boa parte das culturas, o corpo humano vem deixando de ser concebido como algo vivo e dinâmico, sendo cada vez mais equiparado aos mecanismos, i.e., algo desprovido de organicidade – um estado de coisas que vai, por razões diferentes, ao encontro tanto da concepção de ‘totalitarismo dos aparelhos’, de Flusser, quanto da de ‘informática da dominação’, de Haraway. Adorno e Horkheimer se valem da diferenciação, no idioma alemão, entre Körper – corpo físico, inerte – e Leib – corpo vivo, ativo – para indicar um possível ponto de não retorno para a reificação de nossa corporeidade”. Mas, evidentemente, o próprio autor aponta possibilidades de retorno a partir desse “ponto de não retorno”.
Encerrando esta edição da Viso, três textos discutem o filme No intenso agora, de João Moreira Salles, convidado especial do IX Encontro e que esteve presente ao cinema do Instituto Moreira Salles logo após a projeção integral de seu filme para debatê-lo com Luiz Camillo Osorio, Imaculada Kangussu e Patrick Pessoa.
Camillo, amigo de longa data do cineasta, narra afetivamente as impressões e emoções que o atravessaram após cada uma das vezes em que assistiu ao filme, em um verdadeiro diário sentimental. A história de sua relação com o filme, que não tem como ser resumida nesta breve apresentação, articula-se em torno de um paradoxo: “Se há algo a ser discutido neste filme tão tocante é o intercâmbio das emoções relacionadas à política e à nossa vida particular. Esta troca é a força do filme e seu calcanhar de Aquiles. Não teria a história da mãe contaminado em demasia sua leitura dos desdobramentos de maio de 68?”
Já Leka Kangussu partiu de sua recepção mais imediata do filme, que o experimentou como “pessimista” ou “melancólico”, para, ao problematizar as diferenças entre revolta e revolução e o conceito kantiano de “entusiasmo”, notadamente em sua releitura por Marcuse, enxergar no filme possibilidades menos sombrias de interpretação.
Patrick Pessoa, finalmente, enxerga no filme uma meditação sobre o suicídio em suas possíveis relações com o engajamento político. Valendo-se de referências cinematográficas que vão de Polanski (O inquilino) a Louis Malle (Trinta anos esta noite), passando pelo filme preferido de João Moreira Salles sobre o período (Morrer aos trinta anos), o autor enxerga no filme uma melancolia perigosa para os tempos que estamos vivendo no Brasil e se pergunta, na esteira de Camus, de que modo seria possível conceber um Sísifo tão feliz quanto os estudantes pretensamente derrotados em 1968.
É, enfim, com alegria e esperança, apesar de tudo, que os editores da Viso entregam essa nova edição destes Cadernos de Estética Aplicada aos seus já habituais leitores e aos leitores ainda por vir.