as pessoas sempre chegam a você ansiosas
talvez você conheça aquele poema de Ingeborg Bachmann
dos últimos anos da vida dela que começa assim
‘eu perco os meus gritos’
querida Antígona,
tomo como a tarefa da tradutora
nunca deixar que você perca os seus gritos1
Anne Carson, Antigonick
Nota preliminar
Não falava com meu amigo Ryonosuke Mori desde o nosso último encontro presencial no Círculo Militar da Praia Vermelha – estranho ter que usar esse adjetivo, “presencial”, para caracterizar um encontro. Tomamos aquelas inesquecíveis caipirinhas de caju ali diante do mar e sob o Pão de Açúcar no começo de 2016. Depois disso, só falei uma única vez com Mori. Ele me mandou uma carta assim que recebeu a versão impressa do meu relato da nossa conversa, que publiquei no número 19 da Revista Viso.2 Mori até hoje não tem celular e se recusa a compactuar com a digitalização da vida. Isso lhe parece apenas natural para um ator de teatro. Na carta, ele me recriminava por ter sido fiel demais na transcrição do nosso diálogo. Respondi por telegrama: “Prometo melhorar da próxima vez”.
Passaram-se os anos e o Brasil não é o mesmo. Veio o golpe que derrubou Dilma Roussef, veio a eleição de Bolsonaro, virá talvez em breve o autogolpe que sepultará de vez o curto período de normalidade democrática que a minha geração teve o privilégio de viver. Há pouco a comemorar e as chances de resistir parecem ínfimas.3
Em contexto tão funesto, foi uma surpresa quando, na semana passada, Mori me ligou para dizer que estava de passagem pelo Rio de Janeiro, a caminho de Bastos, cidade natal de sua mãe, para o enterro de uma tia. “Vamos tomar umas caipirinhas naquele mesmo lugar que a gente foi da última vez?” Senti uma felicidade inesperada ao ouvir novamente o seu r retroflexo. “As caipirinhas estão de pé. Mas não quero passar nem na porta do Círculo Militar”.
No dia seguinte, cheguei um pouco antes das 16h no Bar do Omar, no Santo Cristo, pertinho da antiga fábrica da Behring. Era uma quarta-feira de muito sol e pouco vento, o bar ainda estava vazio. Escolhi uma das melhores mesas, com uma vista extraordinária do centro do Rio com a Baía da Guanabara ao fundo. Fiquei ali, admirando a vista, as paredes repletas de grafites de Lula, e pensando o que estaria a meu alcance fazer ante a iminência do desastre.
Ainda na primeira caipirinha, ouço às minhas costas um assobio curioso e me esforço por identificar a melodia. Era bem familiar. Fecho os olhos, sacudo minha memória debilitada pela Covid e, após um instante angustioso de indefinição, clique: “Bárbara, Bárbara, nunca é tarde, nunca é demais, onde estou, onde estás, meu amor, vem me buscar...”.4
Viro para ver quem estava assobiando tão bem e um Mori sorridente se aproxima de mim com os olhos ainda mais apertados que o normal. Apesar de tanta distopia, ele não mudara nada desde nosso último encontro – ou sintoma de uma vida feliz ou efeito da disciplina física exigida pelo butô, arte na qual ele é talvez o maior mestre contemporâneo.
Levanto num pulo, sorrindo também com os olhos, e abro calorosamente os braços.
Ficamos muito mais tempo do que o normal enganchados ali no meio do salão. Deu até uma emoção imprevista, um engasgo, uma vontade de chorar, sei lá.
P: Que saudade, meu amigo, que saudade!
M: Faz anos que não abraço ninguém assim, minha querida Bárbara.
Me fazendo de ofendido, dou um passo atrás.
P: Que é isso, companheiro?!
Depois de sentarmos e comandarmos duas caipirinhas de limão – o caju estava em falta – e oito bolinhos de lula com chuchu, Mori me estende um texto por cima da mesa.
M: Olha aqui. O Pedro Erber pediu para te entregar.
Leio incrédulo uma versão impressa da tradução japonesa da minha última conversa com Mori. O Pedro Erber, nosso amigo em comum, tarado pelo Japão e professor na Universidade de Tóquio, traduziu sem me avisar e publicou na revista dele lá. Não entendo nada, claro, mas percebo a mesma palavra circulada com pilot vermelho todas as vezes que aparecia.
P: E aí, gostou do texto?
M: Apesar de eu parecer um daqueles imbecis que servem de escada pro Sócrates nos diálogos de Platão, gostei.
P: Dedé Santana tem o seu valor. E você sabe que eu sempre fui um dramaturgo medíocre. (Mostro para ele a palavra circulada tantas vezes) Que palavra é essa?
M: Você não adivinha? (Pausa) É Pravda, meu. Não lembra que, na nossa última conversa, foi assim que apelidamos o jornal único da tua cidade? O jornal que você tanto ridicularizou, qual era o nome mesmo? (Pausa.) Sim, O Globo.
P: Impossível! Jamais falei mal dO Globo. (risos)
M: Depois de anos falando mal dos críticos de jornal, sobretudo de uma velha senhora chamada Barbara Heliodora, achei surreal quando o Pedro Erber me disse que você tinha ocupado o lugar dela no mesmo jornal que até outro dia te parecia o inimigo número 1 da crítica.
P: A vida é cheia de plot twists.
M: E gostou de ficar dando estrelinhas para os trabalhos, para o freguês escolher a peça antes da pizza?
P: Nunca fiz isso. Foi a condição para aceitar o convite da editora do jornal à época.
M: Menos mal.
P: Mas você chegou a ler alguma crítica minha no jornal?
M: Não.
P: Tem um monte no meu Instagram...
M: Não tenho Instagram.
P: Você continua nessa onda de recusar a tecnologia?
M: Nem todo mundo muda de ideia conforme a moda dos tempos!
P: Baixou o Mishima?
M: Obrigado pelo elogio. Uma honra ser comparado ao grande Mishima.
P: Cuidado que Mishima sem o haraquiri não é Mishima!
M: Mas ele só partiu para o haraquiri porque nunca tinha provado uma caipirinha tão boa quanto esta aqui.
Ergo o copo para um brinde. Ambos nos encaramos. Sorrimos. Brindamos.
P: Gosto tanto de você, Mori. Peraí. (Me inclino, pego na minha bolsa e dou para ele um exemplar do meu livro “Dramaturgias da crítica”). Um presente. Minha obra completa dos anos Globo.
M: Obra completa? Já?
P: Me aposentei.
M: (Irônico) Se aposentou mesmo ou isso é só uma maneira elegante de dizer que foi demitido?
P: As duas coisas. Na verdade, desde a pandemia, acabou o espaço da crítica de teatro n’O Globo. Agora as peças voltaram, mas o espaço da crítica não.
M: É o fim da crítica?
P: Você não precisava justificar de forma tão didática o título deste diálogo.
M: Desde quando conversa de botequim tem título?
Mori folheia o livro, dá uma lida mais atenta no sumário e, na hora que está fechando, percebe a dedicatória. Tenta ler.
M: Que letra horrível! (Mori se concentra e finalmente entende a letra. Se emociona.) Muito obrigado, meu amigo, de verdade. E desculpa te xingar de Barbara...
P: Não precisa se desculpar, vai ter volta. (risos) Aliás, quero direito de resposta agora mesmo!
M: (Imitando um boxeador, Mori levanta a guarda e faz um gesto com as mãos como quem diz “vem”): Sou todo ouvidos.
P: Me empresta aqui rapidinho. (Mori me passa o volume amarelo) Deixa eu ler um pedaço da apresentação para você ver que a minha concepção de crítica não mudou nada desde a nossa última conversa. Aqui ó (leio em voz alta e pausadamente): “A crítica é uma forma de agradecimento. Aprendi com um poeta querido, Paul Celan, que em alemão pensar (denken) e agradecer (danken) têm uma mesma origem. Basta trocar uma letra. Quando algo me toca e me comove, eu agradeço pensando. E penso agradecendo”.5
M: Sim, me lembro bem do teu denken-danken, da crítica como pagamento de uma dívida de gratidão com as obras que realmente nos movem.
P: Na verdade, parei de pensar em termos de “pagamento de dívida”, como formulava no tempo do nosso último encontro, e mudei para “troca de presentes”, que me parece mais horizontal e menos cristão. No livro escrevi assim. Posso ler mais um pedaço ou você acha chato?
M: Acho meio narcisista, mas adoro ouvir gente lendo em voz alta. Meu prazer de ir ao teatro vem daí. Quando leio, aliás, sempre tento ouvir a voz do autor, mas isso nem sempre é possível. Tem muito autor que se esconde.
P: Eu não. (Limpo a garganta e leio em voz alta): “A crítica é uma troca de presentes. Você (a obra) me desloca, me faz ver e sentir algo que eu não teria visto nem sentido sem você. Você amplia e transforma o meu olhar e, por extensão, o meu mundo. E eu agradeço te devolvendo um presente. Alguma coisa bonita guardada em algum desvão da memória que é acordada pelo teu toque. Peças de teatro são arretadas em despertar memórias involuntárias e associações livres, em abrir mundos que a gente tinha “esquecido”. Como se houvesse isso, o esquecimento... E, na crítica, a gente põe essas memórias para jogo, propõe arranjos novos, descobre nas obras coisas que nem o pessoal que fez sabia que estavam lá. O gozo é esse: quanto mais se dá, mais se tem”.6
M: Mas será que essa visão da crítica serve mesmo para todas as peças? E quando o trabalho não te dá presente nenhum? Como é que você faz para retribuir?
P: Muito difícil um trabalho não te dar presente nenhum. Até do mais profundo mal-estar diante de uma peça sempre pode surgir uma centelha que produz uma associação e leva a gente para outro lugar.
M: Só que, se o teu negócio é se entregar às tuas associações livres, você corre um risco grande de abandonar a peça e falar de outras coisas que pouco têm a ver com ela.
P: De fato, esse é um risco meio inevitável.
M: Mas você faz como para contorná-lo?
P: Bebo uma caipirinha. Tintim, meu amigo, que bom que você está aqui. (Brindamos.)
M: Engraçado, outro dia vi um documentário sobre o Eduardo Coutinho e ele diz quase isso. Tentando descrever o cerne do dispositivo que ele inventou, essa mistura de escuta com proximidade física (joelho com joelho, olhos nos olhos), ele conclui mais ou menos assim: “mesmo eu sendo velho, a relação que acontece ali é sempre erótica. Se eu te dou alguma coisa e você me dá alguma coisa, esse é o sentido do erótico”.7
P: Bonita demais essa ideia: a escuta como uma forma de erotismo, de troca libidinal, de transferência. Pô, se você tivesse me dito isso antes, tinha dado para incluir no livro!
M: Fica pro próximo! (risos) Mas, aqui: escuta não tem a ver com uma certa duração? A duração de uma peça de teatro ou mesmo de uma sessão de psicanálise não dá para ser muito inferior a 50 minutos, não é não?
P: Acho que não dá para estipular qualquer “número de minutos” a priori, mas entendo teu ponto. Se a coisa acontece rápido demais, às vezes não imprime, não acontece. Tudo tem que acontecer pelo menos duas vezes para se inscrever, para chegar a existir. Nesse sentido, concordo com Freud: tem o tempo de recordar, o tempo de repetir (caprichando nas variações, mínimas que sejam) e o tempo de elaborar. Aliás, teu butô é isso, né?
M: (subitamente entristecido) Era isso sim, antes da pandemia. Era. (Suspira fundo). Agora não sei mais o que é nem o que vai ser nem se ainda vai voltar a ser.
P: O que houve? Me conta o que aconteceu! Fiquei preocupado contigo.
M: Agora não. Talvez mais tarde. Vamos mudar de assunto.
P: Bora beber mais então! (Para o garçom) Por favor, mais duas, de limão, cachaça, sem açúcar.
M: (Pausa. Mori fecha os olhos até conseguir retomar o fio da meada). Se você concorda que alguma coisa precisa ter duração para acontecer, como é que uma crítica dessas de jornal, curta demais, sem duração nenhuma, pode se sustentar? Acho chato ficar cobrando coerência dos outros, mas na nossa última conversa você mesmo me convenceu disso: se a reflexão demanda duração, a duração demanda espaço, e no jornal isso é justo o que falta. Quanto que O Globo te pagou para você mudar de ideia? (risos)
P: Mori, vou te dizer um negócio, mas por favor não espalha por aí: eu estava errado. Besteira associar reflexão unicamente com espaço. Não dá para medir a duração. Se fosse assim, qualquer “paper” acadêmico desses de 20 e tantas páginas ia ser melhor do que um poema.
M: Shame on you, Mr. Patrick! (risos) É uma traição de classe depois da outra!
P: Besteira esse papo de “o espaço da crítica diminuiu”.
M: No caso d’O Globo, não diminuiu, acabou mesmo. (risos)
P: Independente disso, acho que só dá para pensar o espaço da crítica – não a d’O Globo, mas em geral – como metáfora.
M: Não sei se existe um espaço da crítica em geral. Depende de onde se escreve, para quem se escreve, quantos caracteres se escrevem.
P: Você tem razão. Um mesmo texto crítico muda totalmente de sinal dependendo do seu contexto de produção e de recepção. Mas, qualquer que seja o contexto, acho que o espaço da crítica não é espacial. O espaço da crítica é temporal. Gosto demais da sacada lacaniana do “tempo lógico”: o espaço-tempo da sessão de análise, da crítica, de uma aula ou das tuas peças de teatro é a extensão mínima de duração para que algo possa acontecer. O critério último para a efetividade de uma crítica é a possibilidade de algo acontecer ou não com quem lê.
M: Acontecer em que sentido? Uma crítica tem que acontecer do mesmo jeito que uma peça de teatro? Voltamos ao mesmo problema da última conversa. Para você continua não havendo nenhuma diferença entre um texto crítico e uma proposição artística?
P: Essa sempre foi uma das pedras fundamentais da minha filosofia! (risos) Você deve ter reparado que eu publiquei a nossa última conversa com o título de “A arte da crítica”, não reparou?
M: Esse título é uma contradição em termos!
P: Para mim, a crítica é uma forma de arte desde que torne possível que aconteça algo em quem lê. De preferência no corpo!
M: Bom demais chorar à toa!
P: Não é só sobre chorar. E nunca é à toa! Mas você tem razão. Uma crítica bem sucedida faz acontecer ou reacontecer o acontecimento da obra, um acontecimento que não necessariamente tinha acontecido antes da crítica e certamente não aconteceria sem a crítica. Não tem acontecimento sem algum tipo de crítica, mesmo que espontânea e inconsciente.
M: Mas então por que essa crítica espontânea e inconsciente, como você diz, não é o suficiente? Qual seria a necessidade dessa crítica que você pratica, digamos, artificial e consciente?
P: Artificial e consciente como qualquer obra de arte, não é?
M: Verdade. Mas tem alguma coisa que me faz tropeçar nessa tua pedra fundamental. Tem que ter diferença entre uma crítica e uma obra de arte!
P: Não “tem que” nada!
M: Então me explica melhor isso: o que você chama de acontecimento? E que história é essa de “fazer reacontecer um acontecimento”? De onde você tirou essa tautologia?
P: (Pausa longa. Fecho os olhos. Recordo.) “A leveza é leve”...
M: Ã?
P: Você falou em tautologia, lembrei de um poema lindo demais que o Zacca, um grande amigo poeta, me apresentou outro dia. Posso dizer?
M: De cor?
P: É.
M: (Fecha os olhos e abaixa a cabeça) Diz!
P: (Limpo a garganta)
Yuri viu que a Terra é azul e disse a Terra é azul.
Depois disso, ao ver que a folha era verde disse
a folha é verde, via que a água era transparente
e dizia a água é transparente via a chuva que caía
e dizia a chuva está caindo via que a noite surgia
e dizia lá vem a noite, por isso uns amigos diziam
que Yuri era só obviedades enquanto outros
atestavam que tolo se limitava a tautologias
e inimigos juravam que Yuri era um idiota
que se comovia mais que o esperado; chorava
nos museus, teatros, diante da televisão, alguém
varrendo a manhã, cafés vazios no fim da noite,
sacos de carvão; a neve caindo, dizia é branca
a neve e chorava; se estava triste, se alegre,
essa mágoa; mas ria se via um besouro dizia
um besouro e ria; vizinhos e cunhados decretaram:
o homem estava doido; mas sua mulher assegurava
que ele apenas voltara sentimental. O astronauta
lacrimoso sentia o peito tangido de amor total
ao ver as filhas brincando de passar anel
e de melancolia ao deparar com antigas fotos
de Klushino, não aquela dos livros, estufada
de pendões e medalhas, mas sua aldeia menina,
dos carpinteiros, das luas e lobisomens,
de seu tio Pavel, de sua mãe, do trem,
de seus primos, coisas assim, luvas velhas,
furadas, que servem somente para chorar.
Era constrangedor o modo como os olhos
de Yuri pareciam transpassar as paredes,
nas reuniões de trabalho, nas solenidades,
nas discussões das metas para o próximo ano
e no instante seguinte podiam se encher de água
e os dentes ficavam quase azuis de um sorriso
inexplicável; um velho general, ironicamente
ou não, afirmara em relatório oficial que Yuri
Gagarin vinha sofrendo de uma ternura
devastadora; sabe-se lá o que isso significava,
mas parecia que era exatamente isso, porque
o herói não voltou místico ou religioso, ficou
doce, e podia dizer eu amo você com a facilidade
de um pequeno-burguês, conforme sentença
do Partido a portas fechadas. Certo dia, contam,
caiu aos pés de Octavio Paz; descuidado tropeçara
de paixão pelas telas cubistas degeneradas de Picasso.
Médicos recomendaram vodka, férias, Marx,
barbitúricos; o pobre-diabo fez de tudo
para ser igual a todo mundo; mas,
quando parecia apenas banal, logo dizia coisas
como a leveza é leve. Desde o início,
quiseram calá-lo; uma pena; Yuri voltou vivo
e não nos contou como é a morte.8
Mori e eu ficamos em silêncio por um bom tempo. Fitamos o horizonte vermelho e depois os olhos vermelhos um do outro. Estamos comovidos como o diabo. E não sentimos necessidade de nos esconder.
M: Que beleza, meu amigo! Esse poema é mesmo um acontecimento.
P: É do Eucanaã Ferraz, um poeta aqui do Rio.
M: Do jeito que você disse, parecia que era teu.
P: Aprendi com Borges que, quando digo um verso de Eucanaã Ferraz, de algum modo eu sou Eucanaã Ferraz. Lendo esse poema, eu dou corpo ao astronauta lacrimoso Yuri Gagarin. Eu dou meu corpo a ele. E ele me dá o corpo dele. Era um pouco isso que eu estava tentando chamar de acontecimento: o encontro, ou melhor, o encontrão de um corpo com outro corpo, alguma coisa que consegue esbarrar na gente de um jeito que desloca a nossa posição subjetiva. E aí a gente não é mais o mesmo. Nem a gente nem o nosso mundo. Faz sentido para você?
M: A ideia de dar corpo é fundamental para a minha prática. Dar corpo às palavras, dar corpo ao silêncio, transformar meu próprio corpo num albergue para tantos corpos outros, às vezes mínimos, um besouro, uma molécula de luz. A troca de presentes de que você falou tão bonito tem a ver mesmo com a corporificação de algo. Dar um presente para alguém é menos dar algo do que dar-se inteiro no gesto de dar. (Uma pequena faísca de felicidade brilha nos olhos de Mori) O butô para mim é isso... (A faísca se apaga) Mas esse poema do Yuri Gagarin só reforça o que eu estava tentando te dizer: fiquei comovido assim por causa de um poema. Uma crítica não teria como “acontecer” desse jeito.
P: Será que não?
M: Não lembro de nenhuma que tenha acontecido assim para mim.
P: Isso é porque você ainda não leu o meu livro. (risos) Agora falando sério: o que nesse poema te arrebata?
M: A simplicidade, a proximidade, a concretude.
P: Do poema ou da minha voz dizendo o poema?
M: Do poema.
P: Mas você acha que dá para separar o poema da voz que recita?
M: Não, como ator eu sei que não dá para separar o poema da voz.
P: Como crítico, te digo com tranquilidade: o poema não existe. O poema é sempre só um modo de dizer. Um poema, na sua carnadura concreta, é só um modo de fazer chegar um poema até alguém que escuta. Um poema é sempre a interpretação do poema.
M: Não! Interpretação não! Arte não tem nada a ver com explicação!
P: Desculpe, esqueci que você é japonês. Não estou falando de interpretação no sentido mais usual de explicação. Estou falando de interpretação no sentido de recitação, como nos recitais de música ou poesia. O que se diz é inseparável do modo de dizer. Esse modo de dizer, público ou privado, em voz alta ou em voz baixa, é o que, no limite, estou chamando de crítica. Crítica é uma questão de dicção. De divisão, no sentido de João Gilberto.
M: Bom, mas aí nesse caso eu sou um puta crítico. (risos) Você acha mesmo que não há diferença entre um ator e um crítico?!
P: Você não acha que a performance do corpo que caracteriza o teu trabalho se apoia numa coisa anterior, nisso que estou chamando de uma relação crítica, recitativa ou re-criativa, com o texto da peça, quando há – ou com a coreografia, a partitura física, a música, o programa performativo, a concepção da direção ou mesmo com a reação da plateia? Você não acha que dá para dizer que é uma certa atitude crítica que define as mínimas decisões estéticas, mesmo as inconscientes, que serão tomadas por um ator como você?
M: Talvez...
P: Aquela tua interpretação puramente física do Shlink Na selva das cidades é um belo exemplo de crítica. Mesmo sem usar as palavras do texto do Brecht, você se deixou mover e comover tão profundamente por ele que, na tua recitação física do texto, me arrebatou completamente.
M: Obrigado, meu amigo, muito bom saber que você gostou tanto daquele trabalho. Essa de fato sempre foi a essência do teatro para mim: para um texto como o do Brecht acontecer em mim, eu preciso estar eroticamente conectado, transferido com ele. E aí toda a minha arte consiste em fazer essa conexão chegar ao público. No butô, a gente não precisa falar em sentido convencional, porque minha voz se dissemina pelo meu corpo inteiro, por cada mínimo gesto. Minha presença e minha dança são meu discurso, não preciso de palavras.
P: O exemplo do butô é ótimo para o que estou tentando pensar! Vê se faz sentido pra você. O acontecimento dependeria de uma transferência erótica (para o público) da transferência erótica (com a obra) vivida pelo artista, pelo crítico ou pelo professor, que nisso têm tarefa idêntica. Interpretar seria recitar muito mais no sentido de transferir carga libidinal do que de transferir qualquer conteúdo, saber ou mensagem. Aliás, essa imagem já estava lá em Platão, quando no Íon ele fala da pedra magnética9, do magnetismo que se transmite dos deuses para o aedo e do aedo para o rapsodo e do rapsodo para a plateia.
M: Agora até parei de achar humilhante você me retratar como um personagem platônico... (risos).
P: É isso! Pensar o acontecimento exige que a gente construa uma teoria do magnetismo! (Para o garçom) Mais duas, por favor, sem açúcar!
M: Até aí vou contigo. Olhando pela ótica da crítica como recitação, claro que o meu trabalho contém um germe crítico. O trabalho de qualquer ator. O problema para mim é quando você inverte a equação. Na prática, os críticos não recitam, citam. Além de citarem, ostensivamente explicam, contextualizam, traduzem.
P: E os atores não fazem isso? Se o que um ator faz é recitar, no sentido de recordar, repetir e elaborar um material pré-ensaiado, introduzindo uma série de variações ou associações livres, mesmo que físicas, há aí um tanto de contextualização e tradução.
M: Talvez até haja, mas não de modo ostensivo. Numa boa: se atuar muitas vezes é repetir palavra por palavra um texto, o que seria de um crítico que apenas repetisse palavra por palavra o texto a criticar?
P: Seria um Pierre Menard, aquele personagem do Borges, o crítico ideal!
M: Nãaaaaaoooooo! Pierre Menard só pode aparecer como um bom crítico porque conta com o narrador do conto contextualizando o seu projeto em terceira pessoa. O exemplo de Pierre Menard é, literalmente, o fim da crítica!
P: Adoro a ambiguidade da palavra “fim”!
M: Posso te fazer uma pergunta pessoal?
P: (Balanço a cabeça afirmativamente) Sempre.
M: Por que você insiste em querer equiparar crítica e criação artística? Às vezes me parece que você fica recalcado de ser crítico quando gostaria de ser artista e aí, em vez de assumir os riscos da criação, fica querendo legitimar retoricamente o teu trabalho como se ele já fosse criação no mesmo sentido em que o meu é criação.
P: Isso é o que eu chamo de golpe baixo! (risos) Agora você está me acusando de fetichizar e auratizar o trabalho artístico? Logo eu que nem gosto de falar de criação, porque remete a um negócio meio teológico, e que prefiro chamar os artistas de “trabalhadores da cultura”?! Francamente...
M: Não sou eu que ando babando atrás de uma atriz famosa...
P: E ainda me diz que não tem rede social! Deixa de ser fofoqueiro, Mori! (risos)
M: Claro que, em alguma medida, o teu trabalho é criativo, compositivo, poético no sentido de Aristóteles, claro que o teu trabalho implica um pensamento dramatúrgico, como o próprio título do teu livro sublinha, mas tem alguma coisa no teu dispositivo-crítica que é muito diferente do que ocorre no meu dispositivo-ator. Ou no dispositivo de um artista visual, de um músico, de um romancista...
P: “Você tem razão, mas vamos mudar de assunto?”: era assim que o Deleuze respondia quando lhe faziam alguma objeção.10 (risos) Você tem razão: não faz mesmo sentido ficar querendo defender a crítica como uma forma de arte. Sei que a crítica não é uma ciência, mas não sei se ela é uma arte. E, numa boa, nem sei se isso importa. Sendo ou não arte, a legitimidade da crítica virá de sua capacidade de produzir em quem lê um acontecimento, um deslocamento subjetivo, uma mudança de posição que torne as suas experiências mais carregadas de libido, de tesão, de complexidade, de riqueza!
M: Se a gente deixar de lado todas as torções conceituais que você vem tentando fazer na minha cabeça desde a nossa última conversa, tipo dizer que crítica não tem nada a ver com juízo, que a crítica pra valer é sempre positiva, que o crítico continua a obra, que crítica é coautoria etc, um fato permanece difícil de refutar: uma rosa é uma rosa é uma rosa. Uma crítica é uma crítica é uma crítica. Um poema é um poema é um poema. Salvo raras exceções, a maioria das pessoas reconhece de cara a diferença entre uma coisa e outra. Os modos de produção são diferentes. E os modos de recepção também.
P: Mas não o fim: a vontade de fazer algo acontecer.
M: Talvez, mas o fim não iguala os meios. E muito menos justifica.
P: Você tem razão, mas vamos mudar de assunto? (risos)
M: Vamos, essa é uma conversa infinita, e desconfio que não leve a lugar nenhum.
P: Lugar nenhum sempre foi meu destino preferido! (risos) (Para o garçom) Pode trazer duas saideiras, por favor? (Para Mori, sério) Agora você pode me dizer o que houve? Por que de repente você ficou tão triste quando a gente começou a falar do teu butô? O que aconteceu, meu amigo?
M: A pandemia, não sei se você reparou. Os teatros no Japão estão fechados há mais de dois anos. Eu gastei todas as minhas economias e segui ensaiando diariamente, como se fosse estrear na semana seguinte. De 6 a 8 horas por dia, sozinho, sem a minha equipe, uma solidão inominável.
P: E você não fez nenhuma apresentação nesse tempo todo?
M: Como eu ia fazer, com os teatros fechados e todo mundo morrendo de medo?
P: Aqui no Brasil o povo do teatro começou a fazer peças online.
M: Isso não é teatro.
P: Como assim, isso não é teatro?
M: O teatro é uma arte viva, presencial, radicalmente física. O teatro, ainda mais o butô, pressupõe um grupo de pessoas compartilhando o mesmo espaço e o mesmo tempo. Pressupõe que os artistas façam ao vivo o que fazem, permaneçam expostos ao erro, aos acidentes, ao imprevisto, ao improviso. É isso que garante essa eletricidade deliciosa que pulsa nas salas em que me apresento. É dessa eletricidade que eu me alimento. Sem a presença física compartilhada de artistas e espectadores, acho um absurdo continuar chamando alguma coisa de teatro. “Teatro online” para mim é uma contradição em termos, um oximoro!
P: Não sei não. Os meus quatro últimos textos para O Globo, que estão aí no finalzinho do meu livro, foram escritos no começo da pandemia e eram críticas de peças teatrais online. As críticas se parecem muito com as críticas das peças presenciais. Acho que, em muitos sentidos, as peças online também se parecem muito com as peças presenciais...
M: Impossível! A mediação da tela perverte tudo...
P: Nada contra as perversões, muito pelo contrário! (risos) E você sabe bem, meu amigo, que a presença física não garante nada. Na maior parte das peças presenciais, não acontece nada. Mesmo com a presença física dos artistas em cena e dos espectadores na plateia.
M: A presença física pode não ser condição suficiente para o acontecimento. Mas é condição necessária para alguma coisa ser teatro.
P: Será? Eu vi peças online que realmente aconteceram para mim, como o Camming 101 noites, da Janaina Leite. Nesse trabalho, ela conta ao vivo para a câmera como foi ser camgirl durante 101 noites, ganhando por minuto e portanto tendo que radicalizar em todas as técnicas de sedução de espectadores. O relato era atravessado por uma voz tão verdadeira que, a certa altura, esqueci da existência da tela. Parecia que eu estava no teatro...
M: Isso não é teatro!
P: Você recusa que o teatro possa usar projeções em vídeo? Isso rola desde o Piscator, pelo menos, há mais de 100 anos...
M: Uma coisa é usar projeções em vídeo, outra coisa é ser integralmente uma projeção em vídeo...
P: Meu amigo, uma das coisas mais legais que vi durante a pandemia foi um ensaio em vídeo justamente sobre esse debate. Não tinha a intenção de ser uma peça de teatro online, porque era tudo pré-gravado, nada estava sendo feito ao vivo, mas o texto era recitado magistralmente por um dos atores de que mais gosto, o Lázaro Gabino Rodrigues, lá do México. Conhece ele?
M: O Gabino do Lagartijas tiradas ao sol?
P: Ele mesmo.
M: Conheço demais. Fizemos uma residência juntos em Lanzarote e gostei muito dele.
P: O Gabino detona esse teu papo de que isso não é teatro. E eu estou com ele. Essa história de “isso não é teatro” me lembra muito o dogmatismo da velha Barbara Heliodora...
M: A personagem Barbara é você, Patrick, não eu.
P: Em teatro contemporâneo não tem essa de identificar ator e personagem. Uma mesma personagem pode atravessar vários atores...
M: E como eu faço para ver o vídeo do Gabino?
P: O vídeo se chama “Toda vez que alguém diz ‘isso não é teatro’, uma estrela se apaga no céu”. Bora ver agora? São só 15 minutos.
M: Ver onde?
P: Aqui no meu celular.
M: No celular, sério?! Pode ser, mas então pede mais duas, vai.
P: (Para o garçom) Omar, a saideira das saideiras por favor.
Vou ao link https://www.youtube.com/watch?v=X1feEhCxGO0 e abro o vídeo no meu celular assim que chegam as saideiras. Eu e Mori passamos os 15 minutos seguintes ali, lado a lado, em silêncio, entre um gole e outro.
Quando o filme acaba, olho para Mori, esperando que ele pragueje alguma coisa contra o teatro virtual, mas ele me olha e começa a chorar convulsivamente. Como eu mesmo já fui um bêbado chorão, fico me perguntando se as cinco caipirinhas que cada um de nós tomou foram demais para ele. Mas algo me diz que não pode ter sido só o álcool. Por alguma razão que não penetro com clareza, o vídeo serviu de gatilho para despertar uma dor muito mais profunda.
Ele está tão abalado que evito perguntar diretamente pelas causas de sua dor. Reservado como é, provavelmente ele não me diria.
Fico ali ao lado dele, tentando consolá-lo o melhor que posso apenas com a minha presença e o meu carinho.
Depois que ele finalmente se acalma, chamo um Uber e o deixo no hotel. Já bastante bêbados e cansados, prometemos nos reencontrar antes que outros seis anos se passem, mas nenhum dos dois têm ideia de como viabilizar um novo encontro.
Rio de Janeiro, 06/06/2022
Pós-escrito
Depois daquela tarde em junho de 2022, passou-se um ano até que eu recebesse notícias de Mori. Novamente por carta, ele se desculpa pelos “excessos sentimentais no Bar do Omar” e confessa que agora finalmente tinha conseguido vencer a depressão que rondara sua vida durante toda a pandemia e que só começou mesmo a declinar na época daquela sua visita ao Brasil. No momento em que me escrevia a carta, ele finalmente tinha voltado aos palcos com uma montagem da Gaivota, de Tchékhov, na qual interpretava o papel de Konstantin Gavrilovitch. Sem palavras, como já havia feito com Shlink. Mori termina sua carta dizendo que a plateia estava recebendo muito bem seu novo trabalho e que até mesmo os críticos pareciam ter entendido alguma coisa.
Respondi também por carta:
“Rio de Janeiro, 07 de julho de 2023.
Prezado Mori, estou a uma semana de minha estreia como ator. Eu mesmo escrevi o texto, mas temo que ele ainda não esteja totalmente pronto. A peça conta a história de um crítico teatral em crise que decide se tornar ator. Como o personagem do crítico tem imensa dificuldade em decorar suas falas, usa um ponto escondido do resto do elenco. Tudo vai bem até que a pessoa que lhe sopra o texto vai embora e o deixa desamparado em cena. Quando você vem ao Rio? Quero muito que você veja o trabalho e faça a crítica. Depois da vitória de Lula e do fracasso do golpe tentado pelos generais da linha psicopata, as coisas estão melhorando e já é possível novamente respirar alguma esperança”.
Referências bibliográficas
CARSON, Anne. Antigonick. New York: New Directions, 2012.
DELEUZE, Gilles; PARNET, Claire. “Uma conversa: o que é, para que serve?”. In: Diálogos. São Paulo: Escuta, 1984.
FERRAZ, Eucanaã. “El laberinto de la soledad”. In: Sentimental. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
PESSOA, Patrick. Dramaturgias da crítica. Rio de Janeiro: Cobogó, 2021.
PLATÃO. Íon. Tradução de Claudio Oliveira. Belo Horizonte: Autêntica, 2011.