Poética, perspectiva, verdade: a autoridade estética da lírica
Richard Eldridge
(por Rafael Lopes Azize)

Platão notoriamente baniu os poetas da sua cidade ideal, porque as suas produções ocorriam como resultado de inspiração, não de conhecimento, e porque geravam emoções indisciplinadas em seu público, em vez de conhecimento e autocontrole. Independentemente do que nós pensemos sobre a justiça desse banimento, para muitas pessoas essa descrição de como os poetas trabalham e dos efeitos dos seus produtos parecerá correta. Produzir asserções verdadeiras [truth-claims] parece não estar em questão, e qualquer autoridade cultural que os poetas possam ter pode facilmente parecer injustificada. Francis Bacon considerava a poesia como uma “história simulada” que submete “as aparências [shews] das coisas aos desejos da mente”1, portanto, uma mera questão de aparências agradáveis e não de verdade. Alexander Baumgarten sustentava que um poema bem-sucedido é uma peça de “discurso sensorial [sensate] perfeito”.2 Em contraste com o discurso intelectual perfeito que classifica corretamente as coisas no mundo, a poesia como discurso sensorial prende a nossa atenção em seu arranjo de superfície e centralmente proporciona experiências de prazer, não conhecimento.

Em um espírito mais aristotélico, podemos achar esses pontos de vista unilaterais e excessivos, e podemos querer defender a importância cognitiva da poesia. Mas não é fácil determinar exatamente como fazer isso. A verdade com respeito a mundos meramente fictícios parece menos do que a coisa real. A formação [shaping] das emoções, como em Aristóteles ou Kendall Walton, parece passar ao largo do trabalho sério de buscar conhecimento nas ciências, e parece pálida em comparação com a experiência concreta enquanto uma questão de formação do caráter. Monroe Beardsley descreve a experiência da arte como algo que permite “o mínimo de vazio, monstruosidade, frustração, falta de realização e desespero – as qualidades que mutilam grande parte da vida humana”3, mas ele não acrescenta nada sobre como essa experiência seria diferente de uma compensação escapista para as dores da vida. Adorno descreve a arte como “o plenipotenciário de uma práxis melhor do que aquela que tem predominado até agora”4, mas não é imediatamente evidente o modo como a arte incorpora [embodies] e transmite com sucesso uma mensagem verdadeira sobre como as coisas devem ser. –– Como então pode a arte, e em particular a poesia lírica, falar com autoridade sobre a ação em algum domínio significativo da vida prática humana – se é que o faz de todo?

Diversos filósofos importantes ofereceram respostas significativas a essa questão, incluindo (além de Aristóteles e Walton) Kant, Dewey, Goodman e, preeminentemente, Hegel, Collingwood, Marcuse e Adorno, em cujo trabalho a política está mais em primeiro plano. A maioria das suas respostas, no entanto, padece de um excesso de abstração, em dois sentidos inter-relacionados. Elas não dizem o suficiente sobre como a arte, e em particular a poesia lírica, se envolve com questões concretas da prática social, de modo que essas respostas não são suficientemente políticas; e não dizem o suficiente sobre os dispositivos técnicos da poesia lírica que facultam e incorporam esse envolvimento.

Para abordar o primeiro déficit, o mais político: a fim de gerar um relato plausível de como a arte e a poesia são importantes para nós, é necessário construir um relato amplo dos interesses e poderes humanos fundamentais. Uma maneira de fazer isso é prestar alguma atenção à forma de vida social atualmente dominante – o capitalismo industrial global – e ao modo como, quaisquer que sejam as suas múltiplas virtudes no incentivo à produtividade e na disponibilização de algum grau de conforto para muitos, essa forma de vida também bloqueia o bem-estar humano de maneiras específicas. Na medida em que encontrarmos déficits significativos no bem-estar humano no contexto dessa forma de vida, haverá interesses humanos fundamentais que se darão a ver como não realizados dentro dela. Duas características dessa forma de vida parecem especialmente proeminentes: o predomínio da razão instrumental, expresso no desenvolvimento maciço de tecnologias que servem ao consumo material humano, e a desqualificação [deskilling] da mão de obra, especialmente no desvio de membros da força de trabalho sem formação técnica para empregos de baixa qualificação, como limpeza de escritórios, cuidados com o gramado, operações de fast food e assim por diante.

Como resultado dessas características, a pressão para adentrar e permanecer na elite científica ou financeira tornou-se intensa e sufocante. Aqueles que são bem-sucedidos nessa competição logram algumas possibilidades de orgulho e prazer em um trabalho intelectualmente satisfatório, mas também são cada vez mais obrigados a se submeter a longos períodos de treinamento técnico unilateral que deixa pouco espaço para o cultivo de poderes de criação de significado [meaning-making] e de responsividade aos outros. Se você quiser sair na frente em uma competição que terá muitos perdedores, é melhor priorizar todas as vantagens possíveis na técnica: diplomas de Direito e também MBAs, especialização em ciência da computação e também em economia, em bioquímica e também em física, e assim por diante. Para a grande massa de pessoas que não obtém sucesso nessa competição, o que resta é o trabalho mal remunerado e mortalmente repetitivo nos setores de serviços de baixo nível ou o trabalho um pouco mais bem remunerado nos setores de serviços de colarinho branco, como ensino, imóveis ou recursos humanos, em que há algumas possibilidades de conforto, mas frequentemente pouco respeito social.

Esse contexto social e institucional expressa a predominância da razão instrumental sobre a experiência de criação de significados e raciocínio livre [free reasoning] sobre os fins. Contra esse pano de fundo, coisas que poderiam ser significativas – por exemplo, a intimidade sexual e a vida familiar – podem vir a parecer refúgios escapistas em um mundo sem coração ou, pior ainda, apenas novas arenas para a realização instrumental de satisfação meramente pessoal, à medida que os participantes dessas arenas passem a se perguntar: “O que eu ganho com isso?”. Atitudes semelhantes afetam e informam partes substanciais das práticas religiosas, políticas e artísticas. A religião pode se degenerar em um comércio de apoios para a autoestima em igrejas. A política pode se tornar uma luta polarizada de facções por direitos, poderes e bens basicamente desprovida de argumentos genuínos, solidariedade e apelos geralmente sustentáveis à justiça. A arte pode se tornar o que Friedrich Schiller descreveu de forma memorável como “o tipo de indulgência que funciona como um sedativo [...] [para] o sábio estúpido e o empresário exausto [...] [que] embala a mente para dormir, hipnotizando-a gentilmente”.5 A conversação moral ameaça extraviar-se em expressões de preferência e emoção, enquanto o emotivismo se torna uma teoria metaética proeminente e a teoria do raciocínio prático é significativamente transferida para a economia. Pessoas diferentes fazendo coisas diferentes, e competindo por recursos ao fazê-lo, isso deteriora e desloca o cultivo de uma vida social conjunta no contexto de práticas significativas compartilhadas e baseadas em boas razões.

Nem tudo isso é sempre e em toda parte ruim. Não apenas há maiores possibilidades de conforto para muitos na vida socioeconômica moderna; há também oportunidades bastante ampliadas para o cultivo da individualidade e para a liberdade em relação à autoridade coercitiva. No entanto, há também por todos os lados uma falta de experiência de auto-unidade como garantia de uma atividade prática contínua e que valha a pena, com a qual nos engajamos por boas razões e que é reconhecida como tal pelos outros. A depressão, a anomia e o desespero são doenças pervasivas da modernidade. Em toda parte, na memorável frase de Emerson, “nossos humores não acreditam uns nos outros”.6 A deriva ameaça substituir a confiança no seguir adiante.

Chegamos a um resultado semelhante ao considerar diretamente a natureza e as situações da individualidade [plights of selfhood].7 Assim como professor universitário, corretor de imóveis licenciado e membro de sindicato, o eu é um conceito de status, embora seja menos especificamente governado institucionalmente do que esses três exemplos. Adquirir individualidade – o status de ser um eu – é uma questão, de várias formas e em vários graus, de se tornar responsivo a razões, de construir e entreter vários planos de ação em potencial na forma de desejos (em oposição a necessidades e vontades corporais não articuladas) e de controlar os impulsos, ordenar os desejos em graus, e escolher a partir de quais deles agir em diferentes circunstâncias. Os seres humanos normalmente adquirem esse status ou as habilidades essenciais que são características da individualidade durante a primeira infância por meio do comportamento imitativo, do desenvolvimento de um controle corporal crescente, e do aprendizado inicialmente imitativo da linguagem, tudo sob a orientação e o controle dos pais e de outros cuidadores. Junto com a imitação, quantidades consideráveis de coerção e regulação fazem parte desse processo. A responsividade corporal é moldada e restringida, conforme as crianças muito pequenas aprendem quando devem dormir, comer, chorar e se aliviar e quando não devem, além de como chamar várias coisas. As exigências feitas a elas durante esse estágio de desenvolvimento são múltiplas, e uma frequente resistência a tais exigências na forma de choro e recusa é uma parte natural do processo. A representação de objetos sob conceitos, a reflexão deliberativa, e escolhas conscientes entre alternativas co-emergem na primeira infância como a concretização das faculdades interrelacionadas de um animal racional.

Entre as responsabilidades e riscos naturais desse desenvolvimento, como Freud viu claramente, estão a ansiedade em relação ao cumprimento de múltiplas demandas8 e a repressão dos instintos libidinais. Essas também não são coisas totalmente ruins. A ansiedade é o anverso da complexidade e da plasticidade da vida cultural, e a repressão, até certo ponto, é o preço inevitável da civilização. Mas o desenvolvimento da individualidade como uma agência responsiva à razão e articulada pelo desejo continua sendo um assunto complexo e problemático. Como bem observa John Gibson, “somos multitudinários no sentido de que os eus [...] contêm contradições, camadas de complexidade e formas de desorganização que mostram que as pessoas e as vidas que levam são, elas próprias, muitas vezes ambíguas, paradoxais, provisórias e, às vezes, talvez até sem sentido. [...] Os indivíduos [selves] e suas experiências são um caso incontornavelmente confuso”.9 Sob as condições da vida moderna, portanto, esse caso incontornavelmente confuso da individualidade provavelmente envolverá uma perda considerável de investimentos libidinais na atividade, que muitas vezes será uma questão de trabalho enfadonho; nos relacionamentos, onde os acordos [compromises] sobre papéis no contexto de normas sociais podem restringir a construção criativa de significado; e até mesmo na percepção, onde o reconhecimento entorpecido do típico substitui a sensação responsiva e nova. Vivemos com frequência suficiente no que Marx descreveu como a ausência da expressão de nossa espécie – estar em atividades e relacionamentos cooperativos, criativos, razoável e afetivamente significativos, mas onde a revolução proletária parece não ser uma solução disponível. A maioria de nós vive grande parte do tempo sem aquilo que Wordsworth10 chamou de

the highest bliss
That flesh can know … :
… the consciousness
Of Whom they are, habitually infused
Through every image and through every thought,
And all affections by communion raised
From earth to heaven, from human to divine;
Hence endless occupation for the Soul,
Whether discursive or intuitive;
Hence cheerfulness for acts of daily life,
Emotions which best foresight need not fear,
Most worthy then of trust when most intense.
Hence, amid ills that vex and wrongs that crush
Our hearts--if here the words of Holy Writ
May with fit reverence be applied--that peace
Which passeth understanding, that repose
In moral judgments which from this pure source
Must come, or will by man be sought in vain.11

“Who”, Wordsworth imediatamente pergunta, “is he that hath his whole life long /Preserved, enlarged, this freedom in himself?”.12 Certamente não é o próprio Wordsworth, apesar de suas alegações em contrário; sua poesia continua marcada por ansiedades recorrentes de recepção e preocupações sobre se ele é capaz de manter uma conversação adequada [fit] com os outros. Muitos de nós não, e talvez nenhum de nós, pelo menos na maior parte do tempo. No entanto – dada a natureza da individualidade [selfhood], as condições de sua formação, e a disponibilidade de cursos satisfatórios de atividade e relacionamento –, o aperfeiçoamento da individualidade em direção a esse tipo de satisfação contínua, coerente e conscientemente reflexiva na atividade é também uma ambição da qual parece impossível abrir mão. Onde, então, podemos encontrar práticas que possibilitem e se concentrem no cultivo e na conquista da individualidade enquanto agência assegurada [assured] em atividade significativa? Sem dúvida, há muitas práticas desse tipo, incluindo pelo menos a amizade, a vida familiar, a intimidade sexual de longo prazo, as identidades no local de trabalho que incorporam tanto habilidades quanto a amizade, a política, e assim por diante. No entanto, cada uma dessas práticas corre pelo menos o risco de ser marcada pelo vazio, pela monstruosidade, pela frustração, pela falta de realização e pelo desespero, especialmente na vida industrial-comercial moderna (Beardsley estava certo sobre as qualidades que mutilam grande parte da vida humana). Haverá então práticas que se concentrem mais plenamente no cultivo da individualidade e que o façam em resistência específica às tendências de outras práticas à rotinização e à conformidade? Stanley Cavell observa que

Em algum momento, a desconexão [unhinging] de nossa consciência relativamente ao mundo interpôs nossa subjetividade entre nós e nosso estar presente no mundo. A nossa subjetividade então se tornou aquilo que está presente para nós, a individualidade se tornou isolamento. [...] Se pusermos de lado o desejo de individualidade (portanto, a sempre simultânea atribuição de alteridade também), não entendo o valor da arte.13

Aqui a sugestão é que, em algum momento, mais ou menos no início do período moderno, a prática de esperar pelo advento da Cidade de Deus no Juízo Final diminuiu, conforme a vida comercial e industrial do início da modernidade inaugurava novos papéis sociais e possibilidades de identidade prática. Muitas pessoas, e talvez sobretudo os artesãos e comerciantes pequeno-burgueses recém-surgidos, com suas perspectivas repentinamente abertas, porém incertas, e os artistas, com perspectivas ainda mais abertas e incertas à medida que a vida na corte começava a se deteriorar, começaram a se preocupar em como expressar seus poderes racionais nas práticas de forma bem-sucedida e satisfatória, na esperança de superar uma sensação de poderes, agência e individualidade de alguma forma bloqueados ou desperdiçados. A arte, e particularmente a poesia lírica que rastreia e logra uma chegada à plenitude do poder expressivo e da agência bem conseguida – um poema sobre o desenvolvimento da mente de um poeta – pode fazer melhor. Os desempenhos e realizações da poesia lírica podem, então, se mostrar ainda mais prolépticas para seu público. É o ofício da poesia, como diz Wordsworth, “descrever objetos e afirmar [utter] sentimentos, de tal natureza e em tal conexão uns com os outros, que a compreensão do leitor deve ser necessariamente iluminada em algum grau, e suas afeições fortalecidas e purificadas”.14 Viktor Shklovsky faz eco a esse pensamento em “Art as Technique”:

A habituação devora o trabalho, as roupas, os móveis, a esposa de uma pessoa, e o medo da guerra. [...] O objetivo da arte é transmitir a sensação das coisas como elas são percebidas e não como são conhecidas. A técnica da arte é tornar os objetos “não familiares”, tornar as formas difíceis, aumentar a dificuldade e a duração da percepção porque o processo de percepção é um fim estético em si mesmo e deve ser prolongado.15

Mais recentemente, Georg Bertram argumentou que “a arte [...] contribui para o tornar-se um sujeito” na medida em que os seres humanos são os tipos de seres que “tomam posição [take a stance] em relação a si mesmos e tentam determinar-se a si mesmos” ao refletirem sobre as possibilidades do uso eficaz e satisfatório de seus poderes distintamente humanos.16 Com base em Kant e Cavell, Thomas Hilgers argumenta que

uma obra de arte pede que a pessoa se envolva com ela de tal forma que suas capacidades sensoriais, afetivas e conceituais entrem em um estado de interação semelhante a um jogo. Esse estado afeta a pessoa de três maneiras relacionadas: faz com que ela perca temporariamente o sentido de si mesma, faz com que ela ganhe um sentido do outro e, por fim, faz com que ela conquiste a individualidade.17

Essas afirmações naturalmente provocarão suspeitas em uma sensibilidade taxonômica. Certamente, nem tudo o que é razoavelmente chamado de arte contribui para a conquista da individualidade. Como Hegel corretamente observa, “é claro que a arte pode ser usada como um jogo fugaz, proporcionando diversão e entretenimento, decorando nosso ambiente, [e] tornando aprazíveis aspectos externos de nossas vidas”18, bem como de muitas outras maneiras. Mas aqui a reivindicação [claim] que Cavell, Shklovsky, Bertram e Hilgers estão fazendo não é taxonômica, mas sim uma questão de chamar a atenção para os poderes da arte que lhe dão um lugar importante entre as práticas da vida humana e que justificam seu estudo sério e sustentado.

Entre as artes, a poesia lírica, avizinhada à sua prima, a canção, é porventura a forma de arte mais imediatamente e diretamente em primeira pessoa. Como Hegel observa, ela também é, com alguma variação, a mais universal das artes. “A poesia desfruta de seus períodos de brilhantismo e sucesso em todas as nações e em praticamente todos os períodos em que há produção de arte. Pois ela abrange todo o espírito da humanidade, e a humanidade é particularizada de muitas maneiras”.19 Mais recentemente, Stephanie Burt argumentou, citando, entre outras coisas, as observações do poeta e teórico chinês do século XIII Yen Yu, que “podemos encontrar evidências muito boas de que algo muito parecido com o ‘lírico’ e muito parecido com a ideia moderna predominante de lírico – introspectivo, expressivo, com muita atenção ao som – existiu, se não em todos os tempos e lugares, pelo menos séculos antes do nascimento dos New Critics”.20

Apesar dessa reconhecida persistência da lírica em todas as variações históricas, não há uma definição simples de lírica disponível que a separe nitidamente de seus vizinhos como canção, balada, pastoral, aforismo, epitáfio, epíteto, anedota, elegia, ode e assim por diante, especificando as características formais que são condições necessárias e suficientes da lírica. Sempre haverá casos limítrofes e, em diferentes contextos de recepção, convirá enfatizar uma ou outra característica formal como um marcador da lírica. Isso faz parte do argumento de Shklovsky de que a arte deve sempre desabituar [dehabituate] a recepção e aumentar a atenção usando dispositivos cambiantes que sejam menos típicos ou estejam menos em primeiro plano no comércio das mensagens diárias ou nas instâncias anteriores da arte. Podemos, no entanto, notar algumas características centrais da lírica provisoriamente, a fim de nos concentrarmos depois nos poderes da lírica em relação ao cultivo da individualidade. Grande parte da poesia lírica (mas não toda ela) é uma apresentação relativamente curta e altamente organizada de uma sequência de pensamentos e sentimentos por parte de um falante, motivada por um objeto, cena ou incidente emocionalmente desconcertante. Segundo M. H. Abrams, um poema lírico é “qualquer poema razoavelmente curto e não narrativo que apresenta um único orador que expressa um estado de espírito ou um processo de pensamento e sentimento”.21 “Não narrativo” é aqui um tanto enganoso, já que encontramos um orador pensando e sentindo uma coisa após a outra em uma ordem temporal. O que se quer dizer é que tipicamente o poema lírico está no tempo verbal presente. Ao descrever o que ele chama de “esse estranho tempo do agora lírico”, Jonathan Culler observa que “na Norton Anthology of Poetry, [...] apenas 123 dos 1.266 poemas estão no pretérito, e 21 desses são baladas”.22 Isso indica a ênfase da lírica na expressão presente e no trabalho meticuloso com as emoções conectadas com o pensamento e a percepção, emlugar da narração de eventos do passado. Por meio de dicção, assonância, rima, enjambement e, principalmente, ritmo, a organização formal trabalha para prender a atenção, tanto no próprio poema e na presença do orador como retor, quanto naquilo que o poema narra. Robert von Hallberg descreve essas características formais que concentram a atenção no objeto poético e no orador como musicalidade. “A musicalidade não propriamente ornamenta a poesia, nem enfatiza o seu sentido parafraseável. Antes, ela nomeia a origem da arte: uma ordem de experiência e valor não limitada por conceitos ou referências particulares, e conhecível em carne e osso [in the flesh]”.23 Frequentemente, há uma estrutura FORA-DENTRO-FORA [OUT-IN-OUT], pois um poema lírico se inicia por uma percepção presente de um objeto, cena ou incidente emocionalmente desconcertante que suscita por sua vez reflexão, memória, generalização, associação e avaliação [assessment], até que o poema se encerra com um retorno ao discurso presente para um leitor imaginado. Resumindo o trabalho de Eva Müller-Zettelmann, Culler observa “várias ‘tendências’ que distinguem a lírica de outros gêneros: (1) brevidade, (2) redução do elemento ficcional, (3) estruturação formal mais intensa, (4) maior autorreferência estética, (5) maior desvio linguístico e (6) maior subjetividade epistemológica”.24 De modo geral, podemos dizer que uma poetisa, ao compor um poema lírico, normalmente organiza e está atenta a, e convida os leitores a estarem atentos a: (1) um incidente inicial (percepção ou pensamento), motivando uma sequência de outras percepções, memórias, pensamentos e sentimentos (enredo), (2) um tema geral que torna a sequência, de alguma forma, amplamente relevante para a vida humana, (3) a organização da superfície poética para sustentar um fluxo padronizado ou musical, (4) o desenvolvimento ou a modulação das emoções em relação ao enredo, ao tema e à superfície poética, tudo com o objetivo de (5) um desfecho [closure] dramático em um acalmar ou completar do pensamento e do sentimento em um retorno, vindo da perplexidade em direção a uma abordagem externa mais direta, longe da reflexão interna.

Qual é, pelo menos centralmente e tipicamente, o objetivo ou a função dessa organização poética lírica? Helen Vendler descreve-a como a realização do pensamento vivo, oposto ao clichê, em que os leitores são convidados a participar.

O pensamento vivo deve, assim como o pensamento ordinário, caracterizar, alegorizar, raciocinar, denominar e analogizar – mas também deve saltar para cima e para baixo, por cima e por baixo, para a esquerda e para a direita; deve inchar e contrair, saltar de registro em registro, fazer piada e sentir pontadas [pangs]. Acima de tudo, deve avançar rápido demais para uma inteligibilidade instantânea: o leitor deve aguentar o tranco, saltando para o próximo obstáculo mal tendo recuperado seu assento do último. É como se o poeta quisesse dizer: “É assim que o pensamento realmente é: você já o conheceu?”.25

O desfecho ou a realização do sentido geral que se busca é mais dramático e mais destinado ao ensaio [rehearsal] participativo do que ao assentimento proposicional. Essa organização dramática geral que convida e sustenta a participação imaginativa nos ajuda a entender o que Cleanth Brooks tem em mente quando argumenta que

A estrutura em questão é uma estrutura de significados, avaliações e interpretações; e o princípio de unidade que a informa parece ser o de equilibrar e harmonizar conotações, atitudes e significados. Mas mesmo aqui é preciso fazer importantes qualificações: o princípio não é aquele que envolve o arranjo dos vários elementos em grupos homogêneos, combinando semelhante com semelhante. Ele une o semelhante com o diferente. Entretanto, ele não os une pelo simples processo de permitir que uma conotação cancele a outra, nem reduz as atitudes contraditórias a uma harmonia por um processo de subtração. A unidade não é uma unidade do tipo que pode ser alcançada pela redução e simplificação apropriadas a uma fórmula algébrica. É uma unidade positiva, não negativa; ela representa não um resíduo, mas uma harmonia conquistada.26

Ou seja, a unidade alcançada é uma unidade dramática que encontra um desfecho no alívio ou na atenuação de uma perplexidade inicial27, dando assim corpo à conquista de uma individualidade mais estável e confiante, mais capaz de endereçamento [address], resultante de uma espécie de posse ou endosso do curso da experiência atual que acabou de ser ensaiada.

Uma importante corrente da teoria lírica do século XX, motivada pela suspeita da efusividade romântica como mera irrupção [gush]28 e pela busca da impessoalidade no Objetivismo modernista, considerou o drama da conquista da unidade no desfecho poético como uma questão de invenção, pelo poeta, de uma persona fictícia que vivencia esse drama. Essa tendência trata o poema lírico como um monólogo dramático que oferece uma visão do caráter dessa persona, quase como se todo poema lírico fosse fundamentalmente como “My Last Duchess” de Browning. Como afirmam William Wimsatt e Cleanth Brooks, “uma vez que tenhamos dissociado o orador do poema da personalidade do poeta, até mesmo o menor dos poemas líricos se revela um drama”.29 Contra essa tendência, Jonathan Culler argumenta que ela trata um poema lírico mais ou menos como um romance, considerando-o um texto com personagens fictícios. Em vez disso, ele enfatiza a musicalidade, o caráter ritual, a sua característica de tempo verbal presente e, especialmente, o caráter epidítico de grande parte da lírica: sua demonstração de habilidade retórica na encenação de cerimônias de louvor e culpa, como o panegírico, o encômio e as orações fúnebres. A característica fundamental da lírica”, argumenta Culler, “não é a descrição e a interpretação de um evento passado, mas a performance iterativa e iterável de um evento no presente lírico, no ‘agora’ especial da articulação lírica, .... [onde a articulação lírica é uma questão de] epidêixis – discurso público sobre significado e valor – que se distingue por seus elementos ritualísticos [e musicais]”.30 Normalmente, é ocioso propor um orador fictício e, em geral, é errôneo considerar que o poema lírico está no tempo verbal passado. No entanto, Culler também admite um dos pontos centrais do estilo de leitura da Nova Crítica – um ponto já defendido por Coleridge em “What is Poetry?”, em sua famosa observação de que “a eloquência é ouvida [heard]; a poesia é escutada [overheard]” – de que as palavras do poeta lírico estão lá para que as experimentemos [try on] por nós mesmos. Devemos nos imaginar dizendo-as e, ao fazê-lo, participando do desenvolvimento dramático que elas realizam [enact]. Como diz Culler, “muitas vezes, ao recitar um poema, empregando as palavras que o poeta generosamente ofereceu ao nosso uso, estamos experimentando um pensamento tanto quanto expressando-o, projetando e talvez, acima de tudo, intensificando um estado de espírito [mood]”.31 Isso corretamente desvia a nossa atenção dos detalhes biográficos da vida do poeta que são exteriores à obra; o que importa são as palavras do poema específico e o trabalho que elas realizam.32

Podemos, de fato, entender como essas duas coisas podem ser verdadeiras – a lírica como epidêixis musical e a lírica como a oferta de um papel dramaticamente estruturado disponível para a participação imaginativa do leitor – se delinearmos concepções mais ricas e precisas de individualidade e emoção. Entender a poesia lírica a um tempo como epidêixis e como papel dramático disponível, por sua vez, nos ajudará a entender a função cultural da lírica e sua conquista de autoridade por meio do uso de estruturas formais em relação ao seu tema. A individualidade é, como já observado, um conceito de estado. Não faz sentido pensar no eu como um tipo qualquer de entidade. A locução “eu mesmo” era originalmente um intensificador dramático, como em “Eu, quanto a mim, penso…” [“I, myself, think…”], e as referências ao eu como uma entidade geralmente podem ser eliminadas sem perda, via paráfrase.33 Se o eu [self] fosse algum tipo de entidade não física, enfrentaríamos problemas insuperáveis de interação ao tentar entender como os pensamentos e sentimentos dentro de um eu não espacial poderiam causar eventos no mundo material e vice-versa. Pensar no eu como uma entidade resulta em regressões infinitas de autoconhecimento, pois o eu B deve ser postulado para conhecer os estados do eu A, o eu C para conhecer os estados do eu B e assim por diante.34 Um eu puramente interno e não espacial seria lançado em uma alienação permanente, pois não teria como estabelecer contato com um mundo exterior certificando os estados internos como ideias internas [representers] corretas da realidade externa.35

Mas que tipo de status é a individualidade exatamente? Ela implica a aquisição de um grau de agência, em oposição à mera responsividade causal ao ambiente, à medida que uma pessoa se torna responsiva a razões, capaz de entreter múltiplos planos de ação e de controlar seus impulsos. Todas essas são questões de grau, e o trabalho de conquistar e habitar a individualidade nunca está totalmente concluído. As conquistas e os exercícios da individualidade de uma pessoa como segurança [assurance] na agência apoiada em razões, tanto na formação de crenças quanto na ação, permanecem sempre incompletas e sob ameaça, pois sempre há novas situações a que é preciso responder e novas fontes de atração e aversão a serem formuladas e avaliadas. As tentativas de conquistar e exercer a individualidade como segurança na agência estarão especificamente sob ameaça em um mundo que não faz sentido, onde muitas das coisas que precisam ser feitas – preencher esses formulários de avaliação, inserir kits de fechaduras em guarnições de portas a uma velocidade de vinte por hora, ou estudar poesia na escola – não fazem sentido óbvio e imediato para muitas das pessoas que precisam fazê-las. Nosso mundo social está repleto de coisas assim, e é muito provável que isso resulte em frustração e em uma sensação de agência racional bloqueada ou coagida.

A frustração, por sua vez, será sentida na forma de uma variedade de emoções, talvez reconhecidas conscientemente, mas também talvez reprimidas. Aqui é importante lembrar que uma emoção não é um simples momento de sentimento isolado. As emoções não apenas têm objetos intencionais e conteúdos cognitivos, além de intensidades qualitativas sentidas e disposições corporais para a ação. Como bem observou Peter Goldie, elas também compreendem um padrão desses elementos que se desenvolve ao longo do tempo. Como diz Goldie,

o padrão tem certas características. Ele inclui pensamentos característicos, julgamentos, sentimentos, memórias, imaginações, ações, ações expressivas, ações habituais e muito mais, que se desenvolvem ao longo do tempo, mas nada disso é essencial em um determinado momento. Envolve disposições emocionais, bem como experiências particulares, e haverá interações características entre elas .36

Não apenas vivemos e experimentamos esses padrões, mas também temos potencialmente, e às vezes de fato, uma participação na modificação deles, uma vez que podemos refletir, e às vezes o fazemos, sobre os elementos do padrão e seu desenvolvimento ao longo do tempo. A reflexão abre uma perspectiva sobre os elementos do padrão, permitindo-nos avaliar se eles são coerentes, bem fundamentados e adequados. Nos termos de Goldie,

pensamos em nós mesmos como agentes que persistem ao longo do tempo. Você, o pensador, o “narrador externo”, pode pensar em si mesmo em episódios passados, fazendo e dizendo coisas, e agora você faz isso de uma forma que lhe permite conceber o episódio como tendo uma carga emocional que você não reconheceu à época e, portanto, você é agora capaz de ter uma resposta emocional que não teve à época.37

A lírica em particular envolve um agente, situado no presente e sob a influência do estímulo de um objeto, cena ou incidente de início emocionalmente desconcertante, que empreende um curso de reflexão sobre os elementos de um padrão de emoção, na esperança de esclarecer a emoção – de se apropriar dela, por assim dizer – chegando à sensação de que seus elementos, alguns deles agora reformados, outros recém-adicionados, são, finalmente, coerentes, bem fundamentados e adequados. Lograr essa chegada é um movimento que vai da perplexidade inicial, de um sentido do padrão de emoção sofrido, até a estabilidade comparativa e a clareza da emoção, o padrão ativamente mantido. É esse movimento em direção à clareza e à aptidão que Hegel descreve quando assinala que “[a] tarefa [da lírica] .... é liberar o espírito não do sentimento, mas no sentimento”.38

Quando essa liberação no sentimento acontece por meio da atual modulação reflexiva do poeta lírico quanto aos elementos de um padrão de emoção, então, como diz Hegel, o poeta “se identifica com essa particularização de si mesmo, [...] de modo que nela ele se sente e se visualiza”.39 Em termos espinosistas, o poeta passa de uma ideia passiva de um afeto – meramente sofrendo um complexo emocional, sem uma agência conquistada e assegurada dentro dele – para uma ideia ativa de um afeto, em que o complexo emocional é ajustado e mantido, e a responsabilidade por ele é assumida. Culler observa que “a subjetividade em ação na lírica é um princípio formal de unidade mais do que a consciência de um determinado indivíduo”.40 De certa forma, isso é correto. Como diz Hegel, “não temos nenhuma inclinação para conhecer os caprichos [fancies] particulares [do poeta], seus amores, seus assuntos domésticos; [...] queremos ter diante de nós algo universalmente humano para que possamos sentir-nos em simpatia poética com ele”.41 Mas não se trata apenas de um princípio formal, como se apenas tivéssemos interesse no poema enquanto um todo bem formado e agradável. E o objeto de nossa simpatia e de nossa identificação não é algo abstratamente universal; antes, trata-se do percurso exemplar de compreensão e ganho de clareza por parte deste indivíduo sobre o ocasionar e a modificação de um padrão de pensamento e emoção.

Uma vez que esse trabalho é realizado pelo poeta no tempo verbal presente, muitas vezes incluindo a lembrança atual de algo que é relevante para o padrão emocional, o objeto de atenção e emoção é ele mesmo complexo. Ele inclui não apenas o objeto, a cena ou o incidente iniciante ligado a uma perplexidade emocional, mas também os pensamentos associados a essa perplexidade iniciante ou os sentidos de coisas semelhantes a ela, os quais, por sua vez, geram novos pensamentos e emoções. Além disso, o poeta no presente da escrita está ciente das palavras específicas que estão começando a compor o poema, de seu ritmo e fluxo e das associações que elas suscitam. O esforço do poeta é fazer com que tudo isso – o registro da percepção e dos pensamentos associados, e a expressão e o desenvolvimento da emoção em relação aos objetos de atenção, aí se incluindo as palavras – se integre em uma plenitude de atenção conquistada. Um sinal padrão dessa conquista é a coincidência do desfecho do enredo com o desfecho temático, o desfecho emocional e o desfecho formal, conforme o final de um arco narrativo de reflexão coincida com a ilustração plena de um pensamento, a perplexidade então cedendo à clareza, e com cadência rítmica.42

Em sua busca e conquista de uma plenitude de atenção formalmente estruturada e emocionalmente impregnada, o poema lírico incorpora o que von Hallberg chama de “uma gama de linguagem além das ordens da maior parte da comunicação institucionalizada”.43 O objetivo da lírica não é simplesmente a transmissão de crenças sobre como as coisas são factualmente. “Quando as palavras se unem musicalmente”, acrescenta von Hallberg, “elas aludem a um significado além da paráfrase. [...] Os valores órficos ajudam-nos a distinguir um trabalho especialmente ambicioso de um produto acadêmico ou industrial, e a música é o principal critério”.44 Esses valores órficos consistem na realização [enactment] e na expressão lírica de uma entrada em uma atenção vivida mais plena, mais ativa, mais apropriadamente sentida por parte do poeta: o experimento bem-sucedido do poeta na individualidade. Essa realização e essa expressão são disponibilizadas ao leitor para participação imaginativa e ensaio. A lírica funciona, portanto, como uma rejeição [rebuke] e superação do clichê, da desatenção e da percepção mortiça, não de forma abstrata e a partir da experiência externa, mas sim em relação à experiência de um objeto específico de atenção. Ela pode nos ajudar, como Cavell disse certa vez, a “salvar o amor pelo mundo, até que ele volte a ser responsivo”45, ao julgá-lo, por um momento, bom o suficiente para nele vivermos, como uma arena para o exercício dos nossos poderes. Podemos ser alçados acima do instrumentalismo, da rotina e da desatenção, na direção do discernimento da significância, através da experiência da emoção direcionada a um objeto, e assim na direção de assegurar uma conquista mais plena da individualidade, como uma agência responsiva à razão, articulada com o desejo, na atividade significativa. – Não todo poema lírico bem-sucedido, para todo leitor, em toda ocasião de leitura, naturalmente: a capacidade de resposta imaginativa dos leitores também será informada pelo grau em que o objeto de início emocionalmente desconcertante é também um objeto de sua experiência, por seus hábitos de responsividade a organização formal, e por seu idioleto nativo, entre muitas outras coisas. Mas sim para muitos poemas líricos exemplares, para muitos leitores, em muitas ocasiões de leitura. Esse resultado de uma entrada imaginativa em uma atenção mais plena e em uma individualidade mais plena, inicialmente por poetas e secundariamente pelos leitores que encontram a si mesmos nas palavras do poema, é um senso de orientação na atividade cognitivo-perceptual temporalmente circunscrito, conquistado por meio do exercício adequado dos poderes de criação de significado [meaning-making] e atenção reflexiva. Não se trata (ou não primordialmente)46 de lograr chegar à verdade proposicional sobre objetos individuais com base em justificativas e boas razões, conforme se entende em outros domínios da cognição. Mas ainda assim se trata de uma conquista da verdade da individualidade: uma experiência sentida relacionada a um incidente inicial, temporalmente circunscrita – defensável à sua maneira, por meio do trabalho da imaginação –, do que é e para que serve a individualidade.

Essa entrada em uma individualidade mais plena não é, como às vezes se acusa, “elitista, sub-teorizada e a-histórica, [...] politicamente repressiva e eticamente suspeita, ... [em] mistificar a expressão do sentimento pessoal em cumplicidade com a ideologia privatista do capitalismo moderno”.47 Para já, a lírica aparece em todos os lugares, em todos os períodos históricos, circunstâncias econômicas e formações étnicas. Além disso, os circuitos de responsividade compartilhada à lírica exemplar, embora não sejam universais, são imprevisivelmente amplos. A lírica propõe, contudo, a sua própria política. Uma medida de uma sociedade justa será o grau em que ela torna disponível para seus membros a participação em tais conquistas temporalmente circunscritas de individualidade e plenitude de atenção. Esse será um tipo de liberalismo, uma vez que nem todo mundo se identificará com cada um dos padrões e das habilitações [enabling] de atenção líricos. No entanto, não será um liberalismo de instrumentalismo, exploração e facção, mas sim um liberalismo perfeccionista no qual a busca da individualidade, o respeito mútuo e uma medida de solidariedade, todos cultivados pela lírica, têm algum papel na formação da vida econômica e política. Se de algum modo pararmos de nos abrir aos poderes da lírica (e das outras artes) e negarmos ou ignorarmos sua autoridade estética, sempre preocupados com o que consideramos ser o negócio mais urgente da vida produtiva e consumidora, então que Deus nos ajude.

Referências bibliográficas

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* Rafael Lopes Azize é professor do Departamento de Filosofia da UFBA
** Richard Eldridge é Professor da Universidade do Tennessee (emeritus Swarthmore College). O texto original, inédito, foi lido em palestra do professor Eldridge no Museu de Arte da Bahia, atividade promovida pelo PPGF/UFBA (Salvador, 5/12/2023) quando de uma sua visita possibilitada por uma bolsa CAPES, Edital n.º 02/2023-PRPPG - Professor Visitante no Brasil - CAPES/PrInt/UFBA, processo 88887.892859/2023-00. A palestra está disponível no canal do YouTube do PPGF/UFBA.
1 BACON, 2008, p. 187.
2 BAUMGARTEN, 1954, p. 79.
3 BEARDSLEY, 1981, p. 575.
4 ADORNO, 1998, p. 15.
5 SCHILLER, 1993, p. 245-46.
6 EMERSON, 1956, p. 171.
7 O inglês ‘plight’ congrega a tripla ideia de (1) um contexto no qual (2) há uma necessidade ou um desejo que (3) é obstaculizado. Na falta de um termo em português cujo uso expresse esse conjunto de ideias, escolhemos interpretar ‘plight’ por ‘situação’, evocando um uso específico desse termo no qual ressoam também as ideias de contexto, desejo e dificuldade. (Nota do tradutor.)
8 Marcia Cavell (2008) oferece uma rica elaboração e defesa da visão tardia de Freud de que a ansiedade em resposta a múltiplas demandas é a causa da repressão e não o contrário.
9 GIBSON, 2021, p. 599-602.
10 WORDSWORTH, 1965a, p. 359.
11 Tradução funcional, apenas para referência: 
o mais alto deleite
Que a carne pode sentir … :
… a consciência
Daquilo que são, infundida em hábito
Por cada imagem, cada pensamento,
Os afetos todos pela comunhão convocados 
Da terra ao céu, do humano ao divino;
Donde ocupação infinita para a Alma,
Discursiva ou intuitiva;
Donde alegria para atos da vida diária,
Emoções bem previdentes não precisam temer,
Mais dignas de confiança então quando mais intensas.
Assim, entre males que vexam e desfeitas que abatem
Nossos corações--se aqui palavras das Sagradas Escrituras
Com reverência devida se apliquem--a paz
Que está além do entendimento, que repousa
Nos juízos morais que desta pura fonte
Advêm, ou pelo homem hão de ser em vão buscados.(Nota do tradutor)
12 WORDSWORTH, 1965a, p. 359. Tradução funcional, apenas para referência: “Quem é ele que por toda a sua vida / Preservou, ampliou, essa liberdade em si mesmo?” (Nota do tradutor).
13 CAVELL, 1971, p. 22.
14 WORDSWORTH, 1965b, p. 448.
15 SHKLOVSKY, 1997, p. 24.
16 BERTRAM, 2014, p. 14 e 20.
17 HILGERS, 2017, p. 3.
18 HEGEL, 1998, v. 1, p. 7.
19 HEGEL, 1998, v. II, p. 977.
20 BURT, 2016, p. 430 e 431.
21 ABRAMS, 1971, p. 89.
22 CULLER, 2017, p. 294; 277.
23 HALLBERG, 2008, p. 143.
24 CULLER, 2017, p. 33.
25 VENDLER, 2004, p. 207.
26 BROOKS, 1947, p. 145.
27 COLLINGWOOD (1938, p. 10) e SPINOZA (1930) têm discussões úteis sobre essa forma de desfecho – uma variação moderna da catarse.
28 Isso é, em geral, um equívoco. Embora alguns poetas românticos (talvez Lamartine) transbordem em acessos de emoção descontrolada, a ideia de que o Romantismo é predominantemente isso não faz sentido diante do surpreendente controle formal exercido com muita frequência por Blake, Wordsworth, Coleridge, Shelley e Keats.
29 WIMSATT; BROOKS, 1957, p. 675; citado em CULLER, 2017, p. 109.
30 CULLER, 2017, p. 226 e 350.
31 CULLER, 2017, p. 119-20.
32 A poetisa Augusta Webster satiriza apropriadamente os leitores de biografias ao observar que “eles desprezarão um homem tomado como hipócrita porque, depois de ter escrito e impresso ‘Eu sou o noivo do desespero’, ou ‘Nenhum vinho além do vinho da morte para mim’, ou algum sentimento insociável semelhante, ele sai para jantares e se comporta como qualquer outra pessoa” (WEBSTER, 1879, p. 153).
33 Ver HACKER, 2007, p. 261-262 e infra.
34 Várias versões desse argumento de regressão infinita aparecem em SARTRE, 1957, p. 45; RYLE, 1949, p. 31; HENRICH, 1982, p. 15-53.
35 Hegel apresenta esse argumento na Introdução de The Phenomenology of Spirit (HEGEL, 2019, p. 50).
36 GOLDIE, 2012, p. 62. Philip Kitcher desenvolve um quadro algo semelhante das nossas vidas emocionais ao dizer que vivenciamos o que ele chama de complexos sintéticos, “cujos elementos podem ser radicalmente díspares: memórias de nossas próprias experiências, imagens de percepções anteriores ou encontros com outras obras de arte, julgamentos anteriormente endossados ou rejeitados, emoções agora estimuladas por objetos diferentes ou até mesmo emoções de tipos que não sentimos anteriormente” (KITCHER, 2013, p. 181). De acordo com Kitcher, vivemos dentro desses complexos sintéticos, e as obras de arte podem tanto trazê-los à consciência quanto modificá-los para que respondamos aos fenômenos de forma mais adequada.
37 GOLDIE, 2012, p. 118-119.
38 HEGEL, 1998, v. II, p. 1112.
39 HEGEL, 1998, v. II, p. 1133.
40 CULLER, 2017, p. 350.
41 HEGEL, 1998, v. II, p. 1121.
42 Vale a pena acrescentar aqui que o desfecho formal pode incluir casos de quebra deliberada em um contexto de musicalidade anterior no poema, como no final de “Wie wenn am Feiertage...” de Hölderlin, com o demonstrativo isolado “Dort” compondo sua linha final. Isso também conta como uma instância exemplar de desfecho poético.
43 HALLBERG, 2008, p. 1.
44 HALLBERG, 2008, p. 143 e 234.
45 CAVELL, 1969, p. 212.
46 Revisões bem-motivadas de crenças podem ser elementos da revisão de complexos sintéticos (ver a nota 37). Posso, por exemplo, descobrir que estava errado quanto ao fato de o mundo estar continuamente morto para mim ou continuamente vivo; ou posso descobrir que esse (tipo de) envolvimento com o ritmo ampara e informa a minha atenção às coisas.
47 RAMAZANI (2017, p. 99) usa essas frases para caracterizar as posturas da leitura pós-estruturalista e do Novo Historicismo, atribuindo essas posturas especificamente a Paul de Man e Virginia Jackson. Contra isso, Ramazani argumenta que “a lírica não está morta, e não é apenas uma forma elitista” (p. 97).