Um dos principais debates no campo da estética ao longo do século XX foi precisamente aquele em torno do fim desta disciplina, com ênfase na questão sobre seu divórcio em relação à arte: se a estética foi vista, em suas origens no não tão longínquo século XVIII, como uma via segura para compreendermos os fenômenos artísticos, as profundas transformações do cenário artístico do Ocidente no início do século XX, marcado sobretudo pela ascensão das vanguardas europeias, demonstrou a impossibilidade de se continuar avaliando, ou mesmo apreciando a arte a partir das categorias estéticas tradicionais, especialmente o belo. A filosofia, por sua vez, questionará o paradigma representacional da arte, paradigma cuja validade Hegel, mesmo sem contestá-lo, restringe a um período longínquo na história da arte. Buscando fugir do veredicto hegeliano, segundo o qual a arte teria se desligado da tarefa de expressar o divino, tarefa esta que justificou sua existência ao longo dos séculos, resta à filosofia da arte questionar sua própria definição como filosofia da bela arte1, isto é, negar que o desaparecimento do belo na arte seja, como propõe Hegel, o desaparecimento da arte como um todo.
Ao retornarmos, porém, a Kant e à sua Crítica da faculdade de julgar, marco fundamental da estética filosófica do fim do século XVIII, nos lembramos de que o belo não é, a despeito de todo privilégio recebido na curta história desta disciplina, o único sentimento estético. Ocupando um lugar marginal na pré-história da estética filosófica, o sublime, embora não diretamente associado à arte nas considerações kantianas, será, a partir de sua releitura com Schiller, um conceito cada vez mais importante para pensarmos a arte na modernidade. Levando em conta a definição deste sentimento dada por Kant, segundo a qual este seria “um sentimento de desprazer, causado pela inadequação da imaginação na estimação estética de grandeza, quando comparada à estimação pela razão”2, não é de espantar que ele entre na moda, como afirma Jean-Luc Nancy3, precisamente quando o paradigma representacional da estética – e com ele, o próprio belo – é posto em xeque. Em outras palavras, no momento em que a Darstellung, termo central de todo debate estético alemão, passa a ser problematizada.
Kant deixará, contudo, às gerações seguintes a tarefa de elaborar a relação entre os dois sentimentos estéticos por ele descritos. O sublime, cuja origem remonta a um tratado de retórica do século I da Era Comum, é redescoberto, ao longo do século XVII, através da tradução de Nicolas Boileau e do debate realizado entre pensadores britânicos, como Joseph Addison e, sobretudo, Edmund Burke, cujas Investigações sobre a origem de nossos sentimentos do belo e do sublime servirão de influência determinante para a terceira crítica kantiana. Com Burke e, posteriormente, com o próprio Kant, o sublime é definitivamente reconhecido como sentimento estético, ocupando seu lugar ao lado do belo. O que significa, contudo, a inclusão do sublime ao lado do belo no rol dos sentimentos estéticos? Teria esta inclusão alguma relação com o próprio processo, iniciado por Baumgarten e fortalecido pela contribuição kantiana, de autonomia da estética enquanto disciplina filosófica?
Acreditamos, tendo como referência a ideia de um acabamento da estética proposta por Martin Heidegger e Philippe Lacoue-Labarthe, que a inclusão do sublime no projeto estético do século XVIII é, simultaneamente, fundamental para sua constituição e o motivo de seu desmoronamento, como aponta Lacoue-Labarthe.4 Fundamental, porque oferece a Kant e Burke uma denominação que abarca as experiências de prazer estético que não se definem pelo sentimento de adequação entre forma e percepção observado no belo: em Burke, trata-se de nomear o prazer que sentimos diante da supressão de um perigo que nos assola; para Kant, trata-se do prazer causado pela afirmação de nossa destinação moral em face ao fracasso da imaginação em nos oferecer a representação de certos objetos demasiado grandes ou poderosos. É, contudo, precisamente esta referência do sublime a um além da representação que planta a semente do acabamento da estética. Isto não significa dizer, como lembra Lacoue-Labarthe, contestando Jean-Luc Nancy, que Kant recusa a estética ou que sua obra marque o fim de sua história.5 O acabamento da estética, ou melhor dizendo, o momento em que seu paradigma representacional – aquele que Heidegger identifica como o paradigma da representação eidética do ente – é definitivamente posto em xeque, só virá, como mencionamos acima, no século XX. Hegel, grande nome da estética do século XIX, será, indiscutivelmente, uma figura central para este processo, embora seu veredicto sobre o fim da arte ainda se ampare na ideia da arte como apresentação do Absoluto. Em sua proposta de subsunção da estética no movimento teleológico do Espírito, Hegel acaba por reservar ao sublime o momento de abertura, não o de encerramento, embora possamos enxergar, em sua descrição da arte romântica, estágio derradeiro da história de sua efetividade, uma aproximação com o sublime. Precisamos, portanto, recuar um pouco no tempo para encontrar o pensador cuja contribuição, conforme queremos demonstrar, cumpre um papel determinante, embora pouco analisado, no desenvolvimento do conceito do sublime estético e, consequentemente, no processo de acabamento da estética. Este pensador é o poeta e filósofo Friedrich Hölderlin.
Pedro Süssekind, no posfácio de sua tradução dos ensaios de Friedrich Schiller sobre o sublime, identifica duas vias históricas de desenvolvimento do conceito do sublime a partir do fim do século XVIII, ambas tendo Schiller, principal mentor de Hölderlin, como ponto de partida6: em uma das vias, vemos o debate fomentado pela chamada filosofia do trágico, que tem, como nos mostra Roberto Machado em sua importante obra sobre o tema, Schiller – e não Schelling, como propõe Peter Szondi – como ponto de partida, precisamente a partir de uma transposição do conceito de sublime para a experiência artística.7 Para Schiller, a tragédia serve como veículo privilegiado de uma forma patética do sublime, na qual a fonte do sentimento é transferida da experiência do próprio sujeito para a contemplação de um sofrimento vivenciado por um personagem fictício. Para a realização da experiência deste sentimento, Schiller estabelece duas exigências: “Em primeiro lugar, uma representação vivaz do sofrimento, de modo a despertar o afeto compassivo com intensidade apropriada. Em segundo lugar, uma representação da resistência contra o sofrimento, de modo a chamar à consciência a liberdade interna do ânimo”.8 Com esta descrição, Schiller fortalece o elemento ético do sentimento do sublime, abrindo o caminho que, em outras obras, o levará a postular uma função pedagógica na arte. Embora não haja, na correspondência e nos escritos de Hölderlin, nenhuma indicação segura de que o poeta tenha conhecido os ensaios schillerianos sobre o sublime, a concepção de tragicidade que emerge de suas primeiras incursões no tema corroborará, como veremos, esta visão do dramaturgo.
Na outra via de desenvolvimento do sublime, Süssekind identifica um prosseguimento das reflexões sobre o sublime com vistas à sua utilização para a compreensão da situação da arte no século XX. Nesta via, temos Theodor Adorno e Jean-François Lyotard como grandes expoentes: em ambos, defende ainda Süssekind, encontramos os ecos da concepção schilleriana do sublime, mesmo que estes não abordem a ligação do sublime com o trágico. Destes dois autores da segunda metade do século XX, apenas Adorno faz menção a Schiller em suas breves considerações sobre o sublime na sua Teoria estética9; Lyotard, por sua vez, parece buscar o conceito diretamente de sua fonte em Kant e Burke para aplicá-lo às suas reflexões, cujo ponto de partida se encontra na pintura e no ensaio do pintor estadunidense Barnett Newman. Sem invalidar a análise de Süssekind, que é, a nosso ver, correta do ponto de vista histórico, pretendemos expor o papel central de Hölderlin nestas duas vias de desenvolvimento do sublime: tanto aquela que o utiliza para constituir o conceito filosófico do trágico, quanto aquela, mais recente, que o operacionaliza para compreender os movimentos da arte do século XX. Em suma, pretendemos afirmar, por um lado, que Hölderlin representa um desvio na trilha especulativa traçada pela filosofia do trágico, que busca, de Schelling a Nietzsche, atribuir ao fenômeno trágico um caráter metafísico, e que, por outro lado, as releituras do sublime realizadas por Adorno e Lyotard não seriam possíveis sem a contribuição, mesmo que indireta, do poeta suábio. Em Hölderlin, portanto, as duas vias mencionadas por Süssekind convergem e conectam a estética kantiana à filosofia da arte do século XX. Esta conexão, por sua vez, é precisamente aquela na qual o processo de acabamento da estética, por meio do sublime e de seus conceitos correspondentes, realiza-se.
Não queremos dizer, com isto, que Lyotard e Adorno conscientemente omitam Hölderlin de suas reflexões sobre o tema, até mesmo porque, como veremos, o poeta é citado por ambos os pensadores em reflexões que, direta ou indiretamente, tratam da questão do sublime. A hipótese que queremos defender é antes a de que a metamorfose do conceito do sublime, que transforma um sentimento estético que expressa, em Kant, o descompasso entre as capacidades limitadas da imaginação e as possibilidades infinitas da razão, em uma ferramenta de compreensão da incapacidade, por parte das obras de arte do século XX, de sustentarem a demanda pela representação da verdade, tem nas reflexões e nos “fracassos” literários de Hölderlin um ponto de inflexão fundamental para que, a partir do sublime, vejamos desmoronar a estética enquanto representação eidética do ente. Como reforço à nossa hipótese, evocamos as reflexões finais de Philippe Lacoue-Labarthe em seu ensaio “A verdade sublime”, no qual o pensador francês discorre sobre as relações entre o sublime e o acabamento da estética a partir da obra de Heidegger:
Um pensador contemporâneo de Heidegger – a seu próprio modo, aparentemente teológico-metafísico – exprimiu isso [Lacoue-Labarthe tem em mente o ekphanéstaton, a claridade do ser velada pela aparência] com um raro vigor, num texto que, por diversas razões, Heidegger não podia ter lido e com o qual, em todo caso, “A origem da obra de arte” mantém relações, eu diria, inquietantes. Quero falar de Walter Benjamin e seu ensaio sobre as Afinidades eletivas.10
Lacoue-Labarthe reproduz, em seguida, a passagem do ensaio de Walter Benjamin sobre as Afinidades eletivas de Goethe, na qual Benjamin expõe sua crítica à bela aparência que anima o romance e defende sua concepção do belo como aquilo que não é “nem o envoltório nem o objeto velado, mas sim o objeto em seu envoltório”.11 O que o filósofo francês pretende demonstrar é que Benjamin, no seu ensaio finalizado em 1921, antecipa a condição paradoxal da arte do século XX, que só se torna capaz de expressar o Ser no seu movimento de velamento e desvelamento. Tal como Heidegger, Benjamin não se remete diretamente às discussões sobre o sublime, embora sua crítica do romance de Goethe evidencie, como observa Winfried Menninghaus, a proximidade com o sublime kantiano.12 A afinidade entre Heidegger e Benjamin pode, por sua vez, parecer inusitada a um leitor desatento. No entanto, há mais um elo, além da crítica à estética moderna, que aproxima o ensaio benjaminiano sobre Goethe das reflexões heideggerianas sobre a arte: este elo é precisamente Hölderlin, cujas Observações sobre Édipo, que acompanham sua tradução da tragédia sofocliana publicada em 1804, serve de principal inspiração teórica para o ensaio crítico benjaminiano citado por Lacoue-Labarthe. É preciso, contudo, ressaltar que o Hölderlin de Heidegger é bastante diferente do Hölderlin de Benjamin. O Hölderlin de Heidegger é aquele cuja poesia é “sustentada pela determinação poética de poematizar especificamente a essência da poesia”13, o que significa dizer, em linhas gerais, que sua poesia escapa ao velamento do Ser que caracteriza o pensamento eidético inaugurado por Platão. Por outro lado, o Hölderlin benjaminiano é o contemporâneo de Goethe, Hegel, Schelling e dos primeiros românticos; antes mesmo dos primeiros escritos de Heidegger sobre o poeta suábio, Benjamin já contestava, em um de seus primeiros ensaios, a imagem romantizada do poeta transmitida por Wilhelm Dilthey e Stefan George para devolvê-lo à sua época histórica e aos debates dos quais efetivamente participou. Apesar das diferenças, o que há em comum nestas abordagens é aquilo que, como Lacoue-Labarthe reconhece, aproxima Heidegger e Benjamin: a crítica ao discurso clássico da estética e sua relação matéria-forma ou forma-conteúdo, tenha este discurso nascido com Platão ou com Kant e o idealismo alemão. Dito de outra forma, enquanto Heidegger retira Hölderlin de seu contexto histórico – operação que será duramente criticada por Adorno em seu ensaio sobre a lírica hölderliniana –, reconhecendo em sua poesia um elemento arcaico que escapa do projeto representacional da estética, Benjamin situa o poeta suábio em meio às tensões de sua época, apresentando, através do conceito de cesura proposto na sua obra tardia, um sinal do esgotamento do ideal estético vigente. A cesura poética, descrita na primeira parte das Observações sobre Édipo, representa, a nosso ver, o momento em que Hölderlin rompe, simultaneamente, com a concepção schilleriana de sublime e com a leitura especulativa de Schelling, que serviram de base ao seu projeto de escrever a tragédia moderna A morte de Empédocles, para decretar o fracasso completo da linguagem poética, este fracasso cujo símbolo Benjamin identifica, fazendo referência ao conceito hölderliniano de cesura, no elemento sem-expressão [ausdruckslos] da obra.
As objeções hölderlinianas às aspirações representacionais da estética permanecem, contudo, inauditas por um longo tempo. As lições hegelianas sobre a estética, que serão proferidas pela primeira vez poucos anos após a publicação das traduções höldernianas de Sófocles, preferem interpretar a crise da estética como o esgotamento histórico da possibilidade de expressar sensível e imediatamente a verdade do Espírito, verdade esta que se mantém viva na religião e na filosofia. Nesta interpretação, o sublime passa a ser a marca estética de um estágio anterior à bela arte, estágio este no qual a arte ainda aspira, de forma incerta, à plena adequação entre forma e conteúdo. É, contudo, possível afirmar que o período que antecede o fim da arte, caracterizado por Hegel como “romântico”, também tenha a inadequação característica do sublime como sua expressão. O sublime simbólico dos princípios da arte, com isto, seria, de acordo com Lacoue-Labarthe, refletido por um sublime romântico dos seus estertores.14 Aos olhos de Hegel, o processo de desmaterialização da arte, que acompanha a emergência de novas formas de expressão da verdade, impede a preservação da mais alta tarefa da arte, a saber, a de expressar a relação do homem com o Absoluto. Em outras palavras, esta tarefa suprema da arte não é possível, para Hegel, se ela não for realizada através da contemplação da beleza artística, nascida e renascida do espírito.
Sendo, portanto, o sentimento estético do sublime fruto de uma “inadequação da imaginação”, de acordo com a definição kantiana15, não haveria como, para Hegel, cumprir a destinação histórica da arte – ao menos na forma mais plena, como o fizeram as obras da Antiguidade – através do sublime. O impasse no qual a imaginação se encontra no sentimento do sublime, seja ele diante da grandeza absoluta de um objeto, seja diante do poder representado diante do sujeito, situações que configuram, na terminologia kantiana, as modalidades matemática e dinâmica do sublime, é resolvido, na perspectiva hegeliana, na esfera religiosa ou filosófica, o que corroboraria sua tese do fim da arte, posto que este impasse revelaria tão-somente a incapacidade da arte em representar certos conteúdos mais elevados do espírito.
Esta tese do fim da arte, que, como Heidegger admite no fim de sua Origem da obra de arte, permanece válida até que a decisão sobre sua sentença seja proferida16, coloca, segundo Lacoue-Labarthe, a filosofia da arte em uma encruzilhada: ou Hegel está certo, e a arte chega ao seu fim junto com a possibilidade de uma bela arte, o que confina a estética a um olhar retrospectivo, limitado à apreciação das bem-sucedidas obras de um passado já distante; ou então “a arte não tem nada a ver essencialmente com a apresentação eidética”.17 A despeito da enorme influência da estética hegeliana, é a partir desta segunda possibilidade que o sublime ganha força nas teorias estéticas. Embora possamos encontrar na estética de Kant um momento de curto-circuito da Darstellung no sentimento do sublime, a contribuição fundamental para se pensar esta “apresentação não eidética do ente” será formulada, a nosso ver, poucos anos depois nas Observações de Hölderlin.
A leitura isolada das Observações não nos permite, entretanto, compreender a verdadeira dimensão da virada que se opera no pensamento e na obra poética de Hölderlin, virada esta que oferece uma visão in nuce da crise da própria estética. Para entender o projeto “antieidético” das Observações, é preciso levar em conta que ele é a continuação de uma tentativa – malograda – de comprovar o discurso estético da Modernidade, discurso este do qual Hölderlin foi um importante formulador. A encruzilhada proposta por Lacoue-Labarthe entre o veredicto sobre o fim da arte como fim da bela arte e o divórcio entre arte e a bela aparência pode, neste sentido, ser encarada como a encruzilhada na qual os caminhos de Hegel e Hölderlin se separam no início do século XIX.
Tal como toda a geração de pensadores alemães do fim do século XVIII, o jovem Hölderlin é profundamente impactado pela obra kantiana. Sua correspondência nos revela um interesse especial nas discussões estéticas suscitadas pela Crítica da faculdade de julgar, publicada pela primeira vez em 1790. Em uma carta escrita em julho de 1794, o poeta confessa ao amigo e antigo colega de seminário em Tübingen, Hegel, seu interesse em “tornar-se excepcionalmente familiarizado [vorzüglich vertraut zu werden]” com a “parte estética da filosofia crítica” de Kant.18 Quatro meses depois, Hölderlin oferece a outro amigo dos tempos de Tübingen, Ludwig Neuffer, um ensaio sobre as ideias estéticas, que “podem servir como comentário do Fedro de Platão”.19 Embora Hölderlin não tenha redigido este comentário sobre o diálogo platônico, a incomum associação – ao menos para os dias atuais – entre a estética kantiana e a filosofia platônica nos permite vislumbrar o rumo das investigações estéticas de Hölderlin nesta fase de seu pensamento. Para o jovem poeta, os sentimentos estéticos descritos por Kant em sua terceira crítica não podem ser vistos apenas como frutos de uma contemplação subjetiva que, a partir de um jogo – harmonioso ou não, dependendo do sentimento – entre as faculdades, proporciona prazer. A influência platônica nas reflexões estéticas de Hölderlin o leva a ver no belo não apenas o comprazimento com uma forma dada aos sentidos, mas sim a possibilidade de contemplação de uma verdade suprassensível.20
Seu romance Hipérion, ou o eremita na Grécia, publicado em dois tomos entre 1797 e 1799, é o primeiro grande encontro entre as aspirações poéticas e as reflexões estéticas de Hölderlin. De forma muito similar às Afinidades eletivas de Goethe, publicadas apenas onze anos após o segundo tomo do Híperion, vemos aqui na figura feminina de Diotima, a amada do herói e narrador Hipérion, a própria encarnação da beleza. A própria escolha do nome da personagem, inspirada na sacerdotisa que ensina, no Banquete de Platão, a Sócrates sobre a origem de Eros, já é um indício das intenções de Hölderlin: o amor por Diotima deve levar o protagonista, um grego hodierno em busca do esplendor perdido de sua pátria, à reunificação com o Ser. Esta concepção, contudo, é mais explícita nos esboços preparatórios da obra do que na versão final. Nesta última, o leitor é surpreendido, no segundo tomo, com a morte de Diotima: após despedir-se de seu amado, que atende ao clamor das armas e se junta ao amigo Alabanda na guerra, Diotima morre de forma misteriosa, afastando-se do reino dos vivos como uma santa. Em sua última carta a Hipérion, ela reforça seu papel de elo entre o humano e o divino, que a caracteriza ao longo da narrativa:
Eu serei, não pergunto o quê. Ser, viver é o quanto basta, é a honra dos deuses e, por isso tudo, o que é somente uma vida se iguala no mundo divino, e nela não existem nem senhores, nem servos. As naturezas vivem umas com as outras como amantes. Elas têm tudo em comum, espírito, alegria e a eternidade na juventude.21
Diotima, contudo, precisa morrer. Ao longo do processo de escrita do romance e das teorias poéticas que Hölderlin, paralelamente, desenvolve, a reconciliação entre sujeito e mundo, objetivo máximo da Vereinigunsphilosophie de autores como Shaftesbury, que exerce grande influência sobre todo o projeto do Hipérion, é transposta da realidade concreta e imediata para o plano da rememoração. Aqui podemos identificar o eco de um primeiro dissenso hölderliniano em relação à crença na possibilidade de reunir-se com o Ser nas formas da imanência através da beleza: da mesma forma que as batalhas ao lado de Alabanda não são capazes de restaurar o esplendor da Atenas de Péricles e Platão, o amor e a beleza de Diotima só se tornam capazes de despertar a presença do Ser se acompanhados de sua perda e da consequente rememoração de uma unidade originária que esta provoca. Há, portanto, uma mudança de perspectiva ao longo dos esboços e versões do Hipérion, que poderíamos resumir como a passagem de uma aposta na unificação do sujeito com o Um-Todo por meio da beleza para a constatação da impossibilidade de conservar esta unificação na imanência, sendo esta conservação possível apenas na forma da rememoração. Concordamos, neste sentido, com a afirmação de Wagner Quevedo de que há uma dimensão trágica no Hipérion22: contudo, é importante ressaltar que a dimensão trágica é uma consequência dos processos de transformações e desenvolvimentos do romance. Ela não é um resultado planejado por Hölderlin, mas sim o fruto de um impasse – o do fracasso da unificação entre sujeito e Ser por meio da beleza – que leva Hölderlin à tragédia. Não acreditamos, portanto, que a dimensão trágica tenha sido planejada por Hölderlin em seu romance, ou mesmo que o poeta já a tivesse em mente desde os primeiros esboços. Neste sentido, não é coincidência que o herói do romance se refira, em uma de suas últimas cartas, a Empédocles, herói da tragédia que Hölderlin, à época, já planejava escrever.
É através da irrupção de uma dimensão trágica no Hipérion e de seu interesse em elaborar, como confessa a Neuffer em 1794, o tema da morte de Sócrates “segundo o ideal dos dramas gregos”23, que Hölderlin se insere na filosofia do trágico. Posteriormente, Hölderlin decide substituir Sócrates por Empédocles como herói de sua tragédia, sem que esta troca seja mencionada em sua correspondência. O projeto de escrever uma tragédia sobre a morte do sábio siciliano, contudo, encontra-se em perfeita consonância com as Cartas sobre o dogmatismo e o criticismo, publicadas em 1795 por seu colega de seminário em Tübingen Friedrich Schelling, então com apenas 20 anos. Para o jovem Schelling – e tudo nos leva a supor que estas ideias foram fruto de debate com seus ex-colegas do seminário de Tübingen – o sacrifício voluntário do herói trágico, que concilia, neste gesto, a potência objetiva do fatum com sua decisão livre, abre o caminho para a tão desejada intuição intelectual do Absoluto através da arte. Através da tragédia, Schelling propõe a solução para um dos mais acalorados debates da geração pós-kantiana, que opunha, de um lado, o criticismo de Fichte e, de outro, o pensamento de Spinoza, descrito, sob influência da leitura feita por Friedrich Jacobi, como dogmatismo pelos jovens alemães. A mais importante contribuição de Hölderlin para este debate filosófico consiste no fragmento intitulado Juízo e Ser, cuja redação é contemporânea às Cartas de Schelling. Sem mencionar a tragédia, Hölderlin corrobora a ideia de que o Ser só pode ser pensado quando “sujeito e objeto estão absolutamente e não apenas parcialmente unificados, a ponto de que nenhuma partição possa ser efetuada sem violar a essência do que deve ser separado”.24 Poucos anos mais tarde, em 1800, encontramos uma referência mais direta à relação entre intuição intelectual e tragédia no fragmento intitulado A diferença nos modos poéticos: “O poema trágico, heroico na aparência, é ideal em sua significação. É a metáfora de uma intuição intelectual”.25
Tudo nos permite supor que Hölderlin pretende, com sua tragédia sobre o suicídio de Empédocles, comprovar artisticamente as teses compartilhadas com seus interlocutores: do ponto de vista ético, seu Empédocles deveria ser, em sua resistência ao sofrimento injustamente infligindo por seus antagonistas, um modelo preciso do sublime patético postulado por Schiller; do ponto de vista especulativo, compartilhado com Schelling, sua morte deveria conciliar a decisão livre de se atirar na cratera do Etna com a inevitabilidade do suicídio como reconciliação com as forças divinas. Contudo, após abandonar três esboços, Hölderlin desiste do projeto, sem que encontremos nenhuma justificativa direta para a desistência em sua correspondência. O que se pode concluir, não apenas dos esboços abandonados, como também da produção poética e teórica deste período, que contempla o período entre 1797 e 1800, é que as concepções hölderlinianas sobre a poesia e suas possibilidades metafísicas seguiram em transformação. Tendo a poesia tardia de Hölderlin em mente, que abrange o período em que Hölderlin publica o segundo tomo do Hipérion e se dedica ao seu Empédocles, Friedrich Strack observa que sua
poesia tardia não é mais – como as de sua primeira fase – determinada pela livre ruptura do homem com sua penúria; ela é marcada pela intrusão forçada [zwanghaften Einbruch] do destino e dos deuses em sua bela vida e pela sua habilidade em ‘suportar’, que também pode ser um ‘fracasso’, mas que sempre deve ser conservada.
O belo transforma-se assim, necessariamente, no trágico, que lhe garante, em primeiro lugar, a permanência.26
Como vimos no Hipérion, contudo, esta transformação do belo no trágico já aparece em seu romance. O que nos interessa na leitura feita por Strack é, portanto, a constatação desta migração na obra de Hölderlin, que nos ajuda a compreender, em primeiro lugar, o interesse de Hölderlin pela tragédia após escrever um romance, e, em segundo, a forma como seu pensamento vai do endosso ao paradigma representacional da estética, que vê no belo a possibilidade de reunião entre sujeito e realidade objetiva, à negação de qualquer conciliação entre o homem e seu mundo na arte, como veremos de forma definitiva nas Observações. Se, ao fim do Hipérion, o herói se reconcilia com a natureza, rompendo, de certa forma, com sua penúria, Hölderlin procura, no drama sobre Empédocles, apresentar no herói a habilidade em suportar a intrusão divina, que o aproximaria do sublime schilleriano. A lírica hölderliniana, por sua vez, aos poucos migrará da intrusão para o abandono dos deuses, como vemos, por exemplo, na elegia Pão e vinho (“Mas nós, amigos, chegamos demasiado tarde. Certo é que os deuses vivem, / Mas acima de nós, lá em cima, noutro mundo”).27 De forma análoga, a teoria da tragédia abandona a crença na reunião com o divino através do sacrifício do herói para concentrar-se, como lemos nas Observações, na “infidelidade divina que se deve conservar acima de tudo”.28
Se a tragédia sobre o suicídio de Empédocles deveria servir de comprovação prática e conciliação da leitura especulativa de Schelling com a interpretação ética de Schiller, os esboços deixados incompletos mostram a impossibilidade, por parte de Hölderlin, de cumprir estes objetivos. Uma leitura atenta destes esboços e dos fragmentos redigidos por Hölderlin na tentativa de solucionar os impasses de sua tragédia nos permitem concluir que o impasse hölderliniano se encontra na dificuldade em encontrar uma forma dramatúrgica para os propósitos do autor: encontrar o ponto correto da tensão entre a vontade livre do herói e alguma forma de destino é o problema central enfrentado na escrita da peça. No segundo ato da primeira versão, encontramos esta anotação na margem do manuscrito: “Aqui, os males e afrontas devem ser representados de tal maneira que se torne impossível para ele voltar atrás, e que sua decisão de ir ao encontro dos deuses pareça mais forçada do que voluntária. Que a sua reconciliação com os agrigentinos se represente também com suprema magnanimidade.”29 Em suma, Hölderlin fracassa em fazer de seu herói trágico a “metáfora de uma intuição intelectual”.
Esta intuição intelectual, que Hölderlin e Schelling julgam somente ser possível pela via estética, deveria anular a distinção entre belo e sublime: para Schelling, o belo deve ser pensando de forma transcendente, assumindo o caráter de ilimitação que Kant atribuíra ao sublime. É desta forma que encontramos, nas suas Lições sobre a filosofia da arte, ministradas entre 1802 e 1803, a ideia de que o “sublime, em sua absolutez, compreende o belo, assim como, em sua absolutez, o belo compreende o sublime”.30 Podemos ler esta conciliação entre belo e sublime proposta por Schelling a partir de Lacoue-Labarthe, que defende que o “sublime é o inacabamento do belo, quer dizer o belo buscando seu acabamento”.31 Se o belo, que expressa o comprazimento diante de uma forma limitada, é compreendido “em sua absolutez”, ele naturalmente se aproximará do sublime, posto que, como se torna cada vez mais claro para a estética do fim do século XVIII, o absoluto só pode ser pensado na infinitude, que, por sua vez, só é apresentável no sublime. É bastante provável, se considerarmos os desdobramentos do Hipérion, que Hölderlin ainda concordasse, no início de seu projeto de escrever uma tragédia moderna, com esta indistinção proposta por Schelling. Retomando a trajetória identificada por Strack, A morte de Empédocles seria um momento de indistinção entre belo e sublime no trágico, após a constatação desta mesma indistinção, que, de acordo com Quevedo, identificamos como sendo a irrupção de uma dimensão trágica, nas partes finais do Hipérion. O fracasso em concluir A morte de Empédocles impõe, no entanto, a Hölderlin a necessidade de rever suas posições sobre os limites da representação e a abandonar definitivamente sua crença na bela aparência criticada por Benjamin em seu ensaio sobre Goethe.
Este fracasso não apazigua o interesse de Hölderlin pelo trágico; pelo contrário, ele se aprofundará ainda mais no tema, dedicando-se, a partir da virada para o século XIX, à tradução de duas tragédias de Sófocles, Édipo rei e Antígona. Além das traduções, podemos encontrar, neste mesmo período, diversos fragmentos nos quais Hölderlin também discorre sobre a tragédia. Um deles, intitulado O significado das tragédias e datado entre 1802 e 1803, expõe de maneira incontestável a virada na concepção hölderliniana do trágico e da arte em geral:
O significado das tragédias pode ser mais facilmente compreendido a partir do paradoxo. Pois tudo o que é original, sendo todo poder justa e igualmente partilhado, não aparece na verdade em sua força originária, mas propriamente em sua fraqueza, de modo que a luz da vida e a aparição pertencem propriamente à fraqueza de cada todo.32
Ao admitir o paradoxo como fundamento da tragédia, Hölderlin abdica da pretensão metafísica que ainda dominará a chamada filosofia do trágico até a obra de juventude de Nietzsche. Hölderlin se insurge, portanto, contra a ideia de que a tragédia – ou qualquer outra forma artística – possa expor, no sentido da Darstellung tão cara ao idealismo, qualquer elemento suprassensível. Traduzindo para o vocabulário do idealismo alemão, podemos encontrar, nestas linhas, a própria negação da intuição intelectual. Nas Observações sobre Édipo, encontramos a seguinte confirmação das ideias expostas em seus fragmentos teóricos:
A exposição [Darstellung] do trágico repousa principalmente no fato de que o elemento monstruoso – o modo como o deus e o homem se acasalam e como, ilimitadamente, o poder da natureza e o mais íntimo do homem se unificam na ira –, se concebe em virtude do fato de que a unificação ilimitada se purifica por meio da separação ilimitada.33
A relação entre unificação ilimitada e separação ilimitada mostra que, para Hölderlin, a transgressão dos limites da representação não conduz mais ao suprassensível na forma do deus, mas sim ao afastamento categórico entre o humano e o divino. “O transporte trágico”, como lemos na primeira parte das Observações sobre Édipo, “é com efeito propriamente vazio e o mais livre de ligação”.34 O sentimento do sublime que reencontramos em Hölderlin através do paradoxo trágico não é, portanto, fruto da admissão de uma pretensa superioridade das ideias da razão, tal como lemos em Kant; ele emerge antes da constatação de que o mecanismo trágico, é, como resumirá Lacoue-Labarthe, a catarse do especulativo.35 O que é purificado na catarse trágica, elemento envolto em mistério desde sua primeira formulação na poética aristotélica, é precisamente o desejo humano pela infinitude.
É neste sentido que Hölderlin rompe com a trilha especulativa construída pela filosofia do trágico e acena para as teorias da arte do século XX, que contestarão por outras vias o primado representacional da arte. A crítica benjaminiana das Afinidades eletivas de Goethe, mencionada por Lacoue-Labarthe no fim de seu ensaio sobre o sublime, é, certamente, o primeiro marco na inclusão de Hölderlin neste debate sobre o sublime no século XX. Podemos, entretanto, encontrar outros diálogos com a obra hölderliniana nas discussões de Lyotard sobre o sublime. Em seu ensaio O sublime e a vanguarda, encontramos a seguinte reflexão do filósofo francês: “Não se trata de uma questão de sentido, nem de realidade, incidindo sobre o que ocorre, sobre o que isso significa. Antes de se perguntar o que isso significa, antes do quid, é necessário que, por assim dizer, ‘ocorra’ quod.”36 Lyotard reconhece na pintura de Barnett Newman o caráter paradoxal do sublime, que encontra sua potência precisamente no esvaziamento de seu significado, tal como Hölderlin afirma, em seu fragmento O significado das tragédias, que “a luz da vida e a aparição pertencem propriamente à fraqueza de cada todo”. Se o projeto estético kantiano, grande epicentro do discurso filosófico da Modernidade, pressupõe, através do sublime, uma apoteose da razão diante da demonstração das fronteiras da sensibilidade, o sublime que se inaugura com Hölderlin é antes aquele no qual, como o poeta dirá em suas Observações sobre Édipo, no “limite do sofrimento não restam, com efeito, senão as condições do tempo e do espaço”.37
Influenciado por esta passagem das Observações, mencionada pouco antes em sua obra Pérégrinations, Lyotard reflete sobre a condição paradoxal do sublime ao abordar a “crise dos fundamentos” que caracteriza a condição pós-moderna:
O espírito se encontra, desta forma, situado na condição paradoxal de uma estética do sublime: o espaço e o tempo tomados antes como noções (pensadas) do que como dados, a simples apresentação eliminada pela hegemonia crescente das mídias (logo, das mediações), o pensamento que não tem mais ocupação senão ele mesmo, as imagens e os sons que nos chegam repensadas, pois eles foram calculados. Modo de retraimento do Ser, diria Heidegger, mas talvez não seja um declínio. Talvez este retraimento abra às artes, graças aos meios procurados pelas novas tecnologias, um acesso a formas bem diferentes.38
A referência feita a Heidegger nesta passagem expõe uma diferença fundamental nas leituras que estes autores fazem da obra de Hölderlin. Para Lyotard, Hölderlin, embora não diretamente associado ao sublime, nos oferece um testemunho da crise do pensamento moderno que, para o filósofo francês, já se anuncia na estética kantiana. Esta crise, contudo, é produtiva para o pensamento filosófico, pois é no conflito entre o Absoluto da razão e o absoluto estético, descrita na “Analítica do Sublime” de Kant, que Lyotard enxerga a emergência do différend. Nas conferências heideggerianas, por outro lado, a “palavra de Hölderlin” é identificada como aquela “que diz o Sagrado, e deste modo nomeia o espaço de tempo da decisão inaugural para a estruturação essencial da história vindoura dos deuses e da humanidade”.39 Embora haja um aceno para uma história vindoura, este Sagrado é essencialmente a rememoração de um Ser que o pensamento ocidental e a estética, em sua imposição do par matéria-forma, relegaram ao esquecimento. A relação deste esforço pela rememoração do Ser com o conceito estético do sublime só poderia ser, como Lacoue-Labarthe aponta em várias passagens de seu ensaio “A verdade sublime”, problemática: em todos os seus escritos sobre arte, Heidegger se vê diante da necessidade de fugir do paradigma representativo da estética clássica, mas não parece disposto a abraçar, como o faz Benjamin em sua leitura de Hölderlin, o paradoxo entre o imperativo artístico da apresentação e a Undarstellbarkeit, a impossibilidade de apresentar. Mais do que isso, Heidegger mantém-se preso à nostalgia da “decisão inaugural”, e busca, em suas conferências sobre Hölderlin, confinar o poeta suábio à sua reacionária espera pelo retorno dos deuses.
Neste sentido, não nos parece ser uma coincidência o fato de que uma das mais duras críticas à leitura heideggeriana de Hölderlin venha precisamente de outro responsável pelo resgate do sublime. Se Lyotard ainda se posiciona de forma respeitosa diante da nostalgia heideggeriana, Adorno adota, em seu ensaio “Parataxis”, uma postura muito mais agressiva em relação às interpretações de Heidegger: “Diz-se que ele [Hölderlin] celebrou como Ser o que na sua obra não possui outro lugar senão a determinada negação do Ente. A realidade do poético, prematuramente afirmada, sonega a tensão da poesia hölderliniana em relação à realidade e neutraliza sua obra rumo a um consentimento com o destino”.40 Com esta passagem, Adorno – profundamente influenciado pela leitura benjaminiana – toca não somente em um ponto central da poesia tardia de Hölderlin, mas também, mesmo que indiretamente, em uma questão central para a discussão sobre o acabamento da estética e sobre o papel do sublime neste acabamento. Em suma, a escolha entre a nostalgia do Ser heideggeriana e a aceitação de uma tensão inerente à recusa completa da transcendência nos recoloca diante do dilema proposto por Lacoue-Labarthe: ou o papel da arte é expor, manifestar ou oferecer alguma experiência do Ser, e com isso o veredicto hegeliano e a nostalgia heideggeriana, aproximados no fim da Origem da obra de arte, tornam-se um só; ou a arte, para além de sua possibilidade “antieidética”, deve suportar a Undarstellbarkeit, a constante frustração das tentativas incessantes de significar algo. No mesmo ensaio em que apresenta suas críticas à leitura heideggeriana, Adorno indica que o “Hölderlin idealista inicia aquele processo que desemboca nas frases vazias de protocolo de Beckett”.41 Esta ousada aproximação nos mostra que, se Adorno não associa, seja no seu ensaio sobre a parataxe hölderliniana, seja na Teoria estética, a poesia tardia de Hölderlin diretamente ao sublime, esta ligação pode ser efetuada sem maiores dificuldades. Nesta última obra, que também é a última de Adorno, lemos a seguinte passagem: “A ascendência do sublime confunde-se com a necessidade de a arte não triunfar sobre as contradições fundamentais, mas de as combater em si até o fim; a reconciliação não é para elas o resultado do conflito, mas apenas que este encontra uma linguagem”.42
Se tomarmos estas palavras de Adorno como uma possível definição da situação do sublime na estética do século XX – isto é, a situação do sublime no acabamento de uma estética apoiada no paradigma representacional –, não será na Crítica da faculdade de julgar, nem nos ensaios schillerianos, que encontraremos a primeira tentativa de encontrar uma linguagem para este conflito. É, novamente, nas Observações de Hölderlin que encontramos esta percepção dupla: de um lado, do acabamento da estética, do outro, da possibilidade de seguir criando após este acabamento. É nesta dupla percepção, em suma, que se encontra o impulso que alimentará as principais vertentes da arte do século XX e XXI. Retomando a aproximação entre Hölderlin e Beckett proposta por Adorno, podemos encontrar, no esforço desesperado – e eternamente frustrado – de Hölderlin pela significação em suas obras, uma antecipação da situação aporética do escritor contemporâneo, materializada na obra de Samuel Beckett e descrita magistralmente por Maurice Blanchot: “O autor se encontra na condição cada vez mais absurda de não ter nada para escrever, de não ter meios com os quais escrever e de ser constrangido pela absoluta necessidade de sempre escrever”.43
Referências bibliográficas
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