Na arte de perder, não é difícil ser mestre;
tantas coisas contêm em si a intenção
de ser perdidas que perdê-las não é nenhum desastre.
Elizabeth Bishop, Uma arte1
Maria Palmeiro, A obra está, 2014. Foto: Lua Perê
Introdução: da arte do contexto
O que foi o modernismo?
Dentre muitas descrições possíveis, é justo dizer que o modernismo foi um regime de exclusões. De acordo com ele, a arte, assim como qualquer outra prática socialmente instituída, era um espaço restrito aos atos de um agente apropriado: o agente autorreflexivo e intencional moderno; o agente que, toda vez que se punha a fazer arte, via a si mesmo e se apresentava como fonte sancionada de atos propriamente artísticos.
O que denominamos modernismo, em suas múltiplas versões2, foi nesse sentido uma espécie de sistema jurisdicional – um sistema altamente eficaz em impor uma rígida distribuição de prerrogativas, papéis e responsabilidades a agentes específicos, especializados e, por definição, contextualizados. Como afirmou a filósofa Isabelle Stengers, o sistema funcionava para “garantir que apenas tipos selecionados (artistas, filósofos e assim por diante) estivessem autorizados a explorar o que assombrava os demais”.3 O espaço da arte era exemplar nesse sentido: se, por exemplo, Marcel Duchamp tinha a prerrogativa de transformar, digamos, um objeto científico (ou qualquer outro tipo de objeto) em “arte”, o inverso não se aplicava: apenas cientistas tinham a prerrogativa de, eventualmente, transformar um objeto não científico em “ciência”. Este era, de fato, um dos fundamentos básicos do que poderíamos chamar de economia geral da performatividade modernista: a força e a eficácia dos atos e dos enunciados performativos desempenhados pelos agentes constituintes modernos estavam sempre adstritas a contextos apropriados. Para lançar mão de um princípio fundamental dessa economia, conforme originalmente descrita pelo filósofo da ação J. L. Austin, a eficácia ou “felicidade” de um performativo – de qualquer performativo – estava necessariamente atrelada ao contexto em que tais enunciados eram proferidos e que assim lhes conferia “significado”. Noutras palavras, e para citar o próprio Austin, “genericamente falando, é sempre necessário que as circunstâncias em que as palavras foram proferidas sejam, de algum modo, apropriadas”.4 Como argumentei em outra ocasião5, na origem do seminal e hoje legendário ato de Duchamp (i.e., lograr transformar, por força de um performativo, um urinol em “arte”) está uma extraordinária intuição: ter percebido à volta de si a emergência de um contexto de enunciação (no caso, o sistema de arte) que, como sua Fonte comprovou, viria a sancionar o performativo “isto é uma obra de arte” dirigido a um urinol – e isso sem a necessidade de qualquer transformação substantiva em seus atributos físicos.6
Esse sistema jurisdicional era extremamente coercitivo com o agente artístico. De fato, sempre que estivesse em ação, isto é, fazendo “arte”, o artista – o artista qua artista – deveria limitar o escopo dos seus atos (e de suas pressupostas intenções subjacentes) ao domínio da “criação artística”.7 Em jogo, claramente, estava evitar que os artistas ultrapassassem sua jurisdição atribuída e, admitidamente ou não, invadissem domínios jurisdicionalmente impróprios – particularmente, o domínio da política propriamente dita. Parafraseando um importante gestor da arte de vanguarda dos anos 1970, aos artistas cabia produzir “ilustrações” da política, jamais fazer política propriamente dita8; do contrário, deixariam de agir como artistas e se transformariam em “ativistas”, “panfletários”, “militantes” – escolha um nome. O fato de a política ser um domínio particularmente impróprio aos artistas se justificava em virtude do alegado excepcionalismo da chamada “experiência estética” – uma experiência que, nos termos do regime estético moderno, deveria ser por definição “desinteressada”, quer dizer, alheia à esfera prática, e portanto política, da vida.
Esse arranjo entrou em crise ao longo da década de 1960 – década na qual mais e mais artistas começaram a contestar o antagonismo entre fazer arte e fazer política propriamente dita.
As reações a essas contestações não tardaram a se manifestar; dentre tantas outras ocorrências, elas deram lugar a dois dos eventos mais célebres (e infames) de um establishment em franca transformação. O primeiro desses eventos foi a expulsão da exposição Guggenheim International 1971 (na véspera de sua inauguração!) do artista “radical” francês Daniel Buren.9 O segundo ocorreu poucos meses depois, também no Guggenheim: o abrupto cancelamento de outra exposição extremamente aguardada – a individual de outro expoente da brigada “politicamente engajada”, o artista alemão Hans Haacke. A justificativa? Nas palavras do diretor do Guggenheim, Thomas M. Messer (aqui referindo-se ao caso Haacke), em virtude do “engajamento ativo do artista em fins sociais e políticos”.10
Mas um fenômeno mais elusivo e significativo estava igualmente em curso durante aqueles anos cruciais – e neste caso, com total apoio de museus e galerias de arte moderna, qual seja: a reconfiguração das prerrogativas, papéis e responsabilidades correlatas atribuídas aos artistas de vanguarda. De acordo com o modelo emergente, já não mais se esperava dos artistas que criassem e expusessem em museus e galerias de arte objetos artísticos, senão que promovessem intervenções contextuais nesses lugares específicos. Noutras palavras, o que se esperava a partir de agora de artistas propriamente “contemporâneos” (o porquê destas aspas irá se esclarecer adiante) é que produzissem o que veio a ser conhecido como arte site specific, isto é, específica do lugar (o fato de o Minimalismo ser considerado “o ponto crucial” da arte contemporânea11 deve-se, nesse sentido, àquilo que é comumente tido e saudado como sua principal realização – a saber, ter alegadamente transformado o objeto modernista autônomo e autossuficiente, dotado portanto de uma qualidade estética e um significado por definição alheios às condições de sua exposição, num objeto situado e contextual, vale dizer, um objeto fenomenológico que não só passava a requerer a plena ativação dos sentidos localizados do fruidor, mas que, para além disso, deveria, deliberada e resolutamente, se inserir e intervir no contexto – físico e institucional – em que se situava e que, como resultado, ativamente transformava12).
Talvez mais do que qualquer observador de época, o crítico Peter Plagens percebeu com clareza a mudança que ocorria à sua volta. Na resenha que escreveu sobre a primeira exposição em um museu realizada pelo escultor Richard Serra, ocorrida na primavera norte-americana de 1970 no Pasadena Art Museum, Plagens descreveu as principais características da exposição de Serra – e mais ainda, as enormes implicações que uma então emergente “arte do contexto” [context art] tinha para o sistema de arte de vanguarda.
“A escultura de toras gigantes”, escreveu Plagens sobre a instalação de Serra, “é arte do contexto. Ela funciona tanto como quebra de cenário (madeira espalhada no interior de um novo museu de ‘arte’) quanto como ‘escultura’”. No entanto, acrescentou ele, “não é tanto a peça em si, mas a combinação de peça e museu que dá o arrepio”.13
O insight de Plagens ia além. Pois ele também percebeu algo ainda mais importante: ao contrário do que diretores de museus e demais gestores do sistema de arte inicialmente suspeitavam e temiam14, os desafios que a “arte que tem de ser construída no local” colocava para o museu de arte moderna não eram de modo algum disruptivos e ameaçadores. Muito ao contrário, eles ofereciam oportunidades altamente auspiciosas para uma instituição já um pouco envelhecida e, àquela altura, visivelmente ameaçada.15 Os fundamentos do novo arranjo? Como Plagens bem percebeu, eles poderiam ser condensados em um código de conduta tácito: enquanto “o artista é encorajado a perseguir ao máximo suas fantasias (estéticas)”, o museu “deve assumir qualquer postura, suportar qualquer fardo, sofrer qualquer inconveniência” que os “artistas difíceis” eventualmente lhe impusessem. Na verdade, Plagens concluiu sarcasticamente, “quanto mais difícil a proposta (toras brutas colocadas em um beco), quanto maior o fardo (toneladas de material), quanto mais extrema a inconveniência (demanda de mão de obra), maior a excitação”.16
Como bem sabe qualquer pessoa minimamente familiarizada com o que ocorreu no mundo da arte ao longo dos últimos cinquenta anos, o que Plagens identificou como um fenômeno incipiente viria a se tornar um dos pressupostos básicos (e também um dos pilares ético-morais) de uma cada vez mais onipresente estética da intervenção. De fato, como viria a reconhecer Louise Lawler algumas décadas mais tarde, “não é mais o caso de tentar subverter ou se intrometer. Essas estratégias são agora reconhecidas e requisitadas [pelos gestores do sistema de arte]”.17
As consequências e implicações do novo arranjo foram de fato notáveis. Como apontou Miwon Kwon, ele transformaria o típico artista contemporâneo de criador de experiências estéticas em prestador de serviços estéticos. Serra (não por acaso uma das mais célebres estrelas do Contemporâneo) viria a se tornar uma figura emblemática do novo arranjo. Pois indo além de sua fixação inicial com ações corporais/físicas elementares (“rolar”, “dobrar”, “entortar”, “rasgar”, “cortar”...)18, encontramos Serra a partir da década de 1990 recorrentemente ocupado com um “conjunto diferente de verbos: negociar, coordenar, compactuar, pesquisar, organizar, entrevistar, etc.”19 – ações típicas do que Benjamin Buchloh sarcasticamente denominou “estética da administração”.20
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Sugerir, como acabei de fazer, que Serra se tornou ao longo dos anos um prestador de serviços estéticos parece, é claro, absurdo. Afinal, poucos personagens encarnam de modo tão exemplar a ideia do artista inconveniente e intransigente quanto ele. Serra, afinal de contas, é o autor de uma das intervenções mais disruptivas e inconvenientes da crônica da arte contemporânea – a escultura Tilted Arc. Como foi extensivamente reportado, a obra (uma estrutura curva de aço COR-TEN de 36 metros de comprimento e 3,6 metros de altura, que trespassava a Federal Plaza de Nova York) foi objeto de uma acirrada disputa entre o artista e a Administração de Serviços Gerais dos Estados Unidos, a qual, em 1979, encomendou a obra a Serra – apenas para se dar conta, pouco tempo depois, de que a monumental estrutura perturbava a outrora agradável e convivial praça nova-iorquina. Após um longo e doloroso processo judicial, no qual Serra lutou arduamente pela manutenção de sua peça, Tilted Arc foi finalmente removida e destruída pelo governo dos EUA.21
Mas focar na oposição entre intervenções disruptivas e intervenções complacentes – entre, de um lado, “um modelo assimilativo de site specific, no qual a obra de arte se volta para a integração no ambiente existente” e, de outro lado, “um modelo interruptivo, onde a obra de arte funciona como uma intervenção crítica na ordem existente do site”22 – embora não totalmente incorreto, é enganoso. Pois o que é realmente decisivo aqui não é tanto o perfil, digamos, ideológico da intervenção em questão – se ela é crítica e disruptiva ou, pelo contrário, complacente e assimilativa –, senão algo que precede essa oposição, a saber, o pressuposto tácito de que, independentemente de sua inclinação ideológica e intenção declarada, a prerrogativa básica e responsabilidade autoatribuída de artistas verdadeiramente “contemporâneos” é, em todo caso, promover intervenções contextuais em lugares específicos. Donde a constatação: se Richard Serra é uma figura pioneira e emblemática da arte do contexto, não é porque muitas vezes23 ele promove intervenções disruptivas na “ordem existente de um lugar”, mas porque, a exemplo do que fazem incontáveis artistas contemporâneos, Serra segue à risca o pressuposto ético-moral da arte do contexto: como um exemplar artista contemporâneo, sua prerrogativa básica e responsabilidade autoimposta é promover intervenções contextuais e situadas em lugares específicos. Isso, uma vez mais, ficou explícito na disputa judicial em torno de Tilted Arc. Diante da oferta de transferir sua obra para um local alternativo, Serra respondeu de modo intransigente; Tilted Arc, esclareceu ele, é “uma obra site specific e, como tal, não deve ser realocada. Remover a obra é destruir a obra”.24
Definitivamente, o ser da obra era o estar da obra.
A obra está
Há exatos dez anos, a artista carioca Maria Palmeiro exibiu na galeria Casamata, localizada no bairro de Botafogo, Rio de Janeiro, uma série de pinturas de grande formato, reunidas sob o sugestivo título A obra está. O que Palmeiro apresentava ali, contudo, não era a rigor uma mera exposição de pinturas, mas o estágio atual de uma série de operações distintas e encadeadas, iniciadas havia cerca de um mês. Quando, alguns meses antes, apresentou aos gestores da Casamata sua proposta de exposição (à qual apôs a singela epígrafe: “Pintura se expõe na parede”), Palmeiro descreveu nos seguintes termos o conteúdo dessas etapas:
O trabalho começa com o levantamento prévio do espaço expositivo. (O levantamento não deve durar mais do que um dia, e deve ser feito com pelo menos um mês de antecedência da data da exposição).
Com uma folha ou tela contínua forrarei a parede da galeria para criar uma faixa continua com a extensão total do perímetro do espaço, e marcarei com grafite sobre esta as arestas da CASAMATA.
Essa mesma folha, depois do levantamento, vai para o meu ateliê. Lá eu repito o mesmo processo de forração, para depois trabalhar sobre a folha.
Assim, surgem novas arestas e novas condições para a pintura. O espaço pictórico passa ser definido diretamente pela disposição da folha no meu ateliê e pelo levantamento do perímetro da galeria.
O trabalho permanece sobre a parede e é desenvolvido no meu ateliê até o dia da montagem da exposição, quando ele voltará a estar no espaço da galeria.25
Sobre o título que escolheu dar ao trabalho, Palmeiro se restringiu a anotar: “O nome do trabalho, ‘A obra está’, se refere ao estado vacilante da pintura e ao lugar físico que ela ocupa na galeria ou no ateliê”.
É sobre esse “estado vacilante da pintura” e o “lugar físico que ocupa na galeria ou no ateliê” que eu gostaria de escrever hoje.
Hoje: quer dizer, dez anos depois de ter acompanhado de perto o processo constituinte – na verdade, destituinte – de A obra está. E gostaria de começar pelo começo – isto é, pela primeira afirmação que Palmeiro faz em sua proposta de exposição: “O trabalho começa com o levantamento prévio do espaço expositivo”.
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Sobre essa primeira operação, pode-se dizer que é, de toda evidência – e para lançar mão de uma das categorias mais instrumentais do discurso da arte contemporânea –, “indiciária”.
De fato, ao estender e afixar o rolo de tela sobre a superfície das paredes da galeria, criando, em suas palavras, “uma faixa contínua com a extensão total do perímetro do espaço”, e marcar a lápis suas arestas (leia-se, as quinas e esquinas que conformam o espaço da galeria), Palmeiro parece estar reproduzindo um dos gestos mais recorrentes da chamada arte indiciária: a impressão.
Maria Palmeiro, A obra está (levantamento), 2014. Foto: Otavio Leonidio
Em Notas sobre o index, Rosalind Krauss estabeleceu os termos gerais dessa arte, esclarecendo a razão pela qual ela depende de um tipo específico de signo: o índice. “Por índice”, escreveu Krauss, “quero dizer aquele tipo de signo que surge como a manifestação física de uma causa, da qual traços, impressões e vestígios são exemplos”.26 A especificidade do índice seria portanto esta: diferentemente tanto do signo icônico (caracterizado pela semelhança física com seu referente), quanto do signo simbólico (sempre codificado), o index é também o registro ou prova do contato físico ocorrido entre dois corpos – tenha-se em mente o mais famoso dos signos indiciários, a impressão digital. Noutras palavras, todo index é o testemunho de uma co-presença, a evidência de que, em algum momento específico prévio, dois corpos estiveram ali presentes e efetivamente se tocaram, deixando como prova disso um “índex”.
Diferentemente do que faz grande parte d_s artistas que exploram a estética do indiciário (tenha-se em mente, por exemplo, a obre do pintor carioca Daniel Senise, eminentemente indiciária),27 Palmeiro não demonstra qualquer interesse em registrar a qualidade matérica/háptica da superfície das paredes que registra. Em vez do decalque, sua operação é mais próxima do que, no campo da arquitetura (campo do qual a artista é egressa), chama-se de fato de “levantamento”, e que consiste no recenseamento e registro, para fins operacionais diversos, das medidas horizontais e verticais dos planos que constituem os espaços levantados. Diferentemente de um levantamento arquitetônico convencional, contudo, o levantamento de Palmeiro é razoavelmente limitado e, em termos propriamente arquitetônicos, incompleto: a artista se limitou a levantar um trecho específico e limitado das paredes que, em conjunto com os planos de piso e de teto, definem a o espaço interno da Casamata – uma faixa horizontal contínua que se afasta regularmente tanto do piso quanto do teto da galeria.
Maria Palmeiro, A obra está (levantamento), 2014. Foto: Maria Palmeiro
Não foi uma escolha fortuita. Como indica a epígrafe que Palmeiro apôs à sua proposta (“pintura se expõe na parede”), o que a artista escolheu levantar foi de fato o espaço da pintura, vale dizer, o espaço que, há séculos, é reservado em museus e galerias de arte para a exposição e contemplação da pintura – precisamente a faixa virtual de parede que, distanciando-se regularmente do piso e do teto, constitui o espaço ideal para a contemplação exercida por um observador que, de pé e ocupando o espaço à frente dessa faixa, pode visualizar frontalmente e a uma distância adequada, o espaço da pintura.
O que a operação indiciária de Palmeiro registra não se restringe, portanto, à dimensão planar/bidimensional dos segmentos de parede levantados. O que seu levantamento registra e captura é de fato um espaço: o espaço que cada um desses planos verticais opacos (essas diversas paredes), por força da frontalidade, gera diante de si, e que constitui o espaço ideal para a exposição/contemplação da pintura.
Finda essa primeira etapa do trabalho, têm início os movimentos subsequentes de A obra está – uma vez mais:
– deslocar o levantamento feito na Casamata até o ateliê e, uma vez lá, repetir o mesmo processo de forração de paredes efetuado na galeria. Isso feito,
– trabalhar sobre as telas, que agora recobrem continuamente as paredes do ateliê da artista, tomando tanto as marcações a lápis quanto as particularidades desse espaço (não apenas suas próprias quinas e esquinas, mas também os vãos de portas e janelas) como limites dos campos pictóricos específicos sobre os quais a artista irá pintar. Isso feito,
– retirar o rolo de tela da parede do ateliê, deslocá-lo até a Casamata, recolocá-lo em sua posição original e exibi-lo ao público com o título A obra está.
Arte do desastre
É a partir desse primeiro deslocamento que A obra está realmente se complexifica. Porque ao deslocar até o ateliê e estender sobre suas paredes o levantamento espacialmente indiciário feito na Casamata, Palmeiro deliberadamente promoveu uma desastrosa justaposição espacial. De fato, uma vez recoberto com o rolo de tela trazido da Casamata (rolo que, como vimos, registra as seções de parede que conformam o espaço da galeria), o ateliê passa a comportar simultaneamente dois espaços ou sistemas espaciais distintos e até aquele momento específicos – quais sejam: (1) o espaço atual do ateliê da artista; e (2) o espaço virtual da Casamata, quer dizer, o espaço levantado, deslocado, realocado e virtualmente presentificado no ateliê da artista. É nesse espaço congestionado, fruto da justaposição de dois espaços/sistemas espaciais outrora distintos e independentes, mas agora co-presentes, que Palmeiro irá trabalhar. É também esse espaço congestionado que, uma vez findo o trabalho de pintura, Palmeiro irá deslocar, realocar e, finalmente, expor no espaço da galeria com o título A obra está.
Maria Palmeiro, A obra está (ateliê da artista), 2014. Foto: Maria Palmeiro
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A primeira consequência dessa sequência de deslocamentos, realocações e justaposições espaciais é de ordem institucional. De fato, ao justapor e confundir o espaço do ateliê e o espaço da galeria, Palmeiro arruinou uma das distinções mais fundamentais de regimes estéticos alicerçados justamente na especificidade de dois espaços/contextos institucionalmente específicos e independentes (mas também mutuamente implicados): o espaço da produção/criação da arte (o ateliê) e o espaço da exposição da arte (a galeria). Mais especificamente, A obra está desativa aquilo que o artista francês Daniel Buren denominou “a função do ateliê”. O que a define? Nas palavras de Buren,
De todas os enquadramentos, invólucros e limites – geralmente não percebidos e certamente nunca questionados – que encerram e constituem a obra de arte (moldura, nicho, pedestal, palácio, igreja, galeria, museu, história da arte, economia, poder, etc. .), há um hoje raramente mencionado que continua a ser de primordial importância: o ateliê do artista [studio]. Menos dispensável ao artista que a galeria ou o museu, ele precede ambos. Além disso, como veremos, o museu e a galeria, por um lado, e o ateliê, por outro, estão ligados para formar a base do mesmo edifício e do mesmo sistema. Questionar um e deixar o outro intacto não adianta nada. A análise do sistema de arte deve inevitavelmente ser realizada em termos do ateliê como espaço exclusivo de produção e do museu como espaço exclusivo de exposição. Ambos devem ser investigados como costumes, os costumes ossificados da arte.
Qual é a função do ateliê?
1. É o local de origem do trabalho.
2. Geralmente é um lugar privado, uma torre de marfim talvez.
3. É um local estacionário onde objetos portáteis são produzidos. A importância do ateliê já deve agora ficar aparente; é o primeiro enquadramento, o primeiro limite, do qual todos os enquadramentos/limites subsequentes dependerão.28
Buren não foi o único artista contemporâneo a investigar a função do ateliê. Um ano antes da publicação de A função do ateliê, Bruce Nauman (um dos mais influentes artistas contemporâneos) estabeleceu, por meio de um simples silogismo, as premissas subjacentes às ações que, dia após dia, vinha desempenhando em seu ateliê – e o papel que este último desempenhava para a qualificação propriamente artística do que fazia naquele lugar específico. Eis o que ele afirmou a esse respeito em uma entrevista de 1978:
Quando deixei a escola e consegui um emprego no Art Institute de São Francisco, aluguei um ateliê [studio]. Eu não conhecia ninguém por lá e, sendo um professor iniciante, dava as aulas da parte da manhã e consequentemente via muito pouco meus colegas. Eu não tinha uma estrutura de apoio para minha arte naquela época; não havia contato ou oportunidade de contar às pessoas o que eu fazia todos os dias; não havia chance de falar sobre meu trabalho. E muitas das coisas que eu estava fazendo não faziam sentido, então parei de fazê-las. Isso me deixou sozinho no ateliê, o que por sua vez levantou a questão fundamental sobre o que um artista faz quando é deixado sozinho no ateliê. E minha conclusão foi que eu era um artista e estava no ateliê, então o que quer que eu estivesse fazendo no ateliê deveria ser arte.29
Subjacente às reflexões e ações de Nauman e de Buren está, claramente, a mesma questão: não apenas o que, afinal, qualifica, ou pode qualificar, algo como “arte”, mas sobretudo qual o papel desempenhado pelo ateliê e pela galeria para tal qualificação.
A questão não era nova; ela está, uma vez mais, na origem da qualificação artística da famosa Fonte de Duchamp. Como afirmei há pouco, tal qualificação fora alcançada por força de um performativo: o “isto é uma obra de arte” dirigido por Duchamp a um objeto acintosamente não artístico. Tal qualificação não se consumou, contudo, apenas por força de um enunciado performativo (consubstanciado sobretudo na aposição, na superfície visível daquele objeto ordinário, de uma marca propriamente artística: a assinatura de seu autor/criador). A força desse performativo dependia de uma ação adicional: sua realocação/recontextualização. Com efeito, para que aquele objeto ordinário efetivamente se transfigurasse em um objeto artístico, era preciso fazer com que ele adentrasse, e de modo sancionado, um contexto apropriado para a exibição da arte. E foi exatamente isso que Duchamp logrou fazer: ao cabo de um tortuoso caminho, ele logrou realocar seu ready-made em um espaço/contexto institucionalmente apropriado para a exposição de arte – o espaço da galeria. Foi só a partir dessa recontextualização que seu performativo de fato se consumou. O que se seguiu a isso é história: como afirmou o crítico e historiador Thierry de Duve, desde que sua Fonte foi exposta pela primeira vez, “ninguém foi capaz de remover dela o rótulo onde se lê: isto é uma obra de arte”.30
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A operação de Palmeiro não se restringiu, contudo, a justapor dois espaços institucionalmente específicos. Como a artista deixou claro em sua proposta de exposição, A obra está também justapõe e confunde dois espaços fisicamente específicos: o espaço físico da Casamata e o espaço físico do ateliê da artista. E, uma vez mais, se a artista logrou fazer isso foi graças à especificidade de seu levantamento indiciário – um levantamento que, como destaquei há pouco, não se limitou a registrar a dimensão superficial das paredes levantadas, mas também e sobretudo um espaço: o espaço gerado por aquelas paredes específicas, com suas dimensões, limites, posições e interrelações espaciais igualmente específicas – tudo aquilo que, na prática, conforma o espaço físico da Casamata. Foi esse espaço que, por força de uma sequência de operações de deslocamento e realocação, Palmeiro manipulou e perturbou de modo desastroso.
Ser uma artista egressa do campo da arquitetura se revelou aqui uma vantagem. Pois, como nós arquitetos de formação costumamos saber, Palmeiro sabe que, bem mais do que os elementos construídos, o espaço arquitetônico é constituído pelos vazios gerados por esses elementos; que esses vazios têm não apenas “caráteres”, “atmosferas” ou “ambiências” distintas, mas também dimensões e formatos específicos; que no caso da arquitetura prismática ocidental, eles se constituem em unidades espaciais que os planos de piso, teto e sobretudo parede (por força da frontalidade, leia-se em decorrência do vínculo frontal que a parede estabelece com quem se posta à sua frente)31 geram diante de si; que as maiores realizações da arquitetura moderna – em especial a arquitetura de Le Corbusier, cujos planos “são como facas prontas a dividir o espaço em fatias proporcionadas”32 – não decorrem apenas da manipulação dos elementos planares da arquitetura (piso, teto e parede), mas sobretudo do desenho dos vazios que esses elementos geram – vazios, portanto, que não são absolutamente amorfos ou monolíticos (como podem sugerir as esculturas de Rachel Whitehead), mas, ao contrário, seccionados, divididos, delimitados e segmentados, e que assim dão lugar a unidades ou compartimentos espaciais virtuais que se articulam, justapõem, encadeiam, interpenetram e colidem. Le Corbusier, de fato, é a grande referência aqui; como afirmou Colin Rowe, “se pudéssemos atribuir ao espaço as qualidades da água, então seu edifício seria como uma represa, por meio da qual o espaço é contido, moldado, conduzido, canalizado [...]”.33 O que Palmeiro capturou e manipulou foram justamente esses compartimentos espaciais.34
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Bem entendido, manipular e justapor disruptivamente sistemas espaciais distintos e específicos não é uma operação sem precedentes na história da arte e da arquitetura. Foi exatamente isso o que fez, por exemplo, Constatin Brancusi quando, em 1937, executou um conjunto monumental de esculturas na cidade romena de Târgu Jiu, dando lugar ao que Rosalind Krauss denominou “o ardil de Brancusi”. Nas palavras de Krauss, “a composição em três partes de Târgu Jiu é, efetivamente, a sombra projetada de uma outra combinação axial, ela também tripartite, que Brancusi projetou de Paris até o coração da cidade romena”. O caráter disruptivo da operação de Brancusi, argumenta Krauss, reside na criação “de um monumento cujo próprio sítio não pode ser localizado, e que se tornou uma ficção impossível, uma ausência, um sistema de referências que fazem sempre pensar que a localização da obra é alhures, uma falta”.35
Outro precedente importante vem do campo da arquitetura, e foi projetado em 1978 pelo arquiteto estadunidense Peter Eisenman para a cidade de Veneza, Itália. A operação de Eisenman consistiu, em primeiro lugar, em projetar sobre o sítio existente, localizado no distrito de Cannaregio, a grade espacial virtual que estruturava originalmente o projeto que Le Corbusier desenvolveu em meados dos anos 1960 para aquele sítio, mas que jamais foi executado. Em vez de partir exclusivamente da morfologia urbana atual (com seus canais, pontes, caminhos, edificações, quadras, contínuos edificados, tipologias arquitetônicas e urbanas, relações entre cheios e vazios, em síntese, tudo aquilo que constitui não apenas o espaço urbano, mas também a memória e a história que este espaço traz consigo), Eisenman tomou como base de seu projeto um chão palimpsesto virtualmente tumultuado, a um só tempo real e ficcional, atual e virtual, concreto e abstrato.
O contexto em que seu projeto operava (ou que instaurava) deixava, portanto, de ser exclusivamente a especificidade espacial e temporal de um sítio real (subsumido na categoria “morfologia urbana”), senão também o traço fantasmático de um espaço que, concretamente, jamais viu a luz do dia – uma não-presença, portanto, não uma presença.
Eloquentemente, a operação de Eisenman ia na contramão do que preconizava à época (e segue ainda hoje preconizando) o chamado “urbanismo contextualista” – um urbanismo que toma imperativamente a morfologia urbana atual como contexto espaço-temporal para intervenções propriamente “contemporâneas” (leia-se, intervenções que não apenas recusam o urbanismo arrasa-quarteirão modernista, mas que, para além disso, afirmam seu pertencimento ao espaço da História, vale dizer, o espaço daquilo – e só daquilo – que existe e se situa num presente por definição atrelado ao “desenvolvimento histórico” e à “evolução urbana”).36
O que Eisenman fazia ali era essencialmente diverso: em lugar de um contexto historicamente situado, seu projeto operava em (e conjurava) um espaço-tempo vacilante, a um só tempo situado e dessituado, presente e não-presente, histórico e anistórico. Se, como afirmou Eisenman com ironia e extraordinária lucidez, “o contextualismo é uma nostalgia do presente”, sua operação não era apenas anti-contextualista, mas contra-contextual: em vez do presente e da presença contemporâneos, o espaço-tempo que conjurava era desastrosamente atravessado por traços, suplementos, diferenças, espectros.
Como fica claro, o propósito de Eisenman não era apenas conturbar o espaço; era também afetar o tempo. Um tempo no qual todos os “contemporâneos” (vale dizer, todos aqueles que viviam no “presente da contemporaneidade”)37 estavam, sincrônica e sintopicamente, situados, e do qual a “cidade contemporânea” era – ou, como queria o urbanismo contextualista, deveria ser – a manifestação palpável, indiciária. Um tempo que, como Robert Smithson não cansou de reiterar, havia sequestrado o espaço, fazendo dele um mero “cadáver do tempo”.38
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A operação de Palmeiro é, contudo, mais específica, e apenas enganosamente mais simples. Porque a matéria manipulada por A obra está não é apenas o espaço da arquitetura (na ocorrência, o espaço da Casamata e o espaço do ateliê da artista), senão o espaço no qual se mesclam e confundem o espaço da arquitetura e o espaço da pintura.
É este, me parece, o sentido da singela epígrafe que Palmeiro apôs à sua proposta de exposição (“Pintura se expõe na parede”): afixada sobre uma parede, uma pintura, qualquer pintura, não se restringe a ocupar um trecho da superfície da parede; passa a ocupar e compartilhar com a parede um espaço comum: o espaço que, por força da frontalidade, tanto parede quanto pintura projetam conjuntamente diante de si.
Também nesse espaço Palmeiro se moveu sobre rastros históricos – no caso, os rastros deixados por um dos grandes mestres da pintura modernista, Jackson Pollock. Como argumentou Allan Kaprow, este foi talvez o maior legado de Pollock: ter ignorado “o confinamento do campo retangular [da tela] em favor de um continuum, seguindo em todas as direções simultaneamente, para além das dimensões literais de qualquer trabalho”. Ao fazê-lo, argumenta Kaprow, Pollock pôs fim ao corte (físico mas também ontoepistemológico) característico de um regime de fruição pictórica no qual a borda da tela, reforçada pela presença reiterativa do passe-partout e da moldura, estabelece uma categórica separação entre a realidade da pintura (“o mundo do artista”) e a realidade à frente dela (“o mundo do espectador”). 39
A operação de Palmeiro é, contudo, mais radical e específica, e de fato apenas enganosamente mais simples. Porque a artista não se restringiu a confundir dois “ambientes” ou “mundos” diversos, senão dois espaços geometricamente específicos: o espaço físico da Casamata e o espaço físico de seu ateliê – precisamente os espaços capturados por seu levantamento espacialmente indiciário. Aqui fica claro que, se as telas de Palmeiro são, como as de Pollock, “murais”, elas o são num sentido, ele também, bastante peculiar. Pois, diferentemente de Pollock, suas pinturas não ignoram “o confinamento do campo retangular em favor de um continuum, seguindo em todas as direções simultaneamente”. Ao contrário, elas operam e ativam o espaço que, por força da frontalidade, a pintura aposta sobre a parede projeta diante de si. (Aqui vale notar que, sempre que estendidas, as telas de A obra está se mantiveram não apenas apostas sobre a parede, mas literalmente pregadas a ela, reiterando assim não apenas o contato superficial de parede e tela, senão uma co-planaridade espacialmente ativa, no sentido de que, juntas, geram um espaço comum – um espaço que é, a um só tempo, da pintura e da arquitetura. O fato de Pollock pintar sobre telas estendidas no chão, para em seguida, uma vez seca a pintura, enquadrá-las e pendurá-las na parede, apenas atesta uma evidente dissociação entre o espaço da pintura e o espaço da arquitetura.40 Se, portanto, é lícito dizer que, assim como ocorre com as telas murais de Pollock, as telas de Palmeiro ignoram “o confinamento do campo retangular” da tela, elas não o fazem absolutamente em favor de um continuum que segue “em todas as direções simultaneamente”, senão frontalmente em direção ao espaço que, em conluio com as paredes às quais estão pregadas, elas projetam diante de si e que o observador da pintura, de pé e ocupando o espaço da pintura/arquitetura, atavicamente ocupa.)
Maria Palmeiro, A obra está (levantamento), 2014. Foto: Maria Palmeiro
A divergência de Pollock é clara. Pois se, como afirma Kaprow, as pinturas em escala mural de Pollock “deixaram de se tornar pinturas e se transformaram em ambientes”, as telas murais de Palmeiro não são propriamente “ambientais”, senão pictórico-arquitetônicas: ocupam e ativam um espaço que pertence não apenas genericamente à arquitetura e à pintura – senão àquela arquitetura e àquela pintura específicas.
Maria Palmeiro, A obra está, 2014. Foto: Lua Perê
Maria Palmeiro, A obra está, 2014. Foto: Lua Perê
Um estado vacilante
Aqui, uma vez mais, se manifestou a dimensão arquitetônica de A obra está – mais especificamente, seu viés lecorbusieriano. Afinal, como nenhum arquiteto antes ou depois dele, Le Corbusier levou às últimas consequências os vínculos entre o espaço da arquitetura e o espaço da pintura.
Foi esta, de fato, a grande contribuição do arquiteto, doublé de pintor, para a constituição do espaço moderno – qual seja, incorporar ao espaço da arquitetura, e de modo radical, o espaço da pintura, em especial o espaço da pintura cubista. É este, com efeito, o elemento decisivo da famosa Promenade architecturale (literalmente, caminhada arquitetural) lecorbusieriana. De que ela consiste? Precisamente de um caminhar no qual se conjugam, de modo intercalado, duas experiências espaciais distintas e complementares. Uma delas advém justamente dos achados pictóricos da pesquisa cubista e do espaço oscilante que ela instaura. Um espaço no qual oscilam, de um lado, a ilusão de profundidade (no caso, a profundidade rasa do campo pictórico cubista explorado sobretudo por Picasso e Braque) e, de outro lado, a constatação da materialidade dos meios da pintura – evidenciada pela presença desconcertante e literalmente perturbadora de elementos apostos sobre a tela (notadamente, recortes de jornal e estêncis) – elementos que se intrometem e arruínam um espaço (em termos convencionais) essencialmente ilusionista.
No campo da pintura, entretanto, este espaço oscilante era, por definição, voltado a um único órgão: o olho – mais precisamente, um olho estático, estacionado; o olho de um observador que, de pé e defronte do quadro, experimentava retinianamente as oscilações entre duas realidades distintas: de uma parte, a realidade ilusionista da pintura, de outra, a realidade matérica do pintado.
Foi justamente a oscilação entre essas duas realidades distintas que Le Corbusier transpôs, de modo radical, para o espaço da arquitetura, dando lugar ao que Colin Rowe denominou de oscilação entre “transparência literal” e “transparência fenomênica”41 – quer dizer, entre, de um lado, a constatação da profundidade atual dos espaços arquitetônicos e, de outro lado, a ilusão de uma profundidade virtual, de natureza pictórica.
Mas repare-se: a força da operação de Le Corbusier não se restringiu a transpor para o espaço da arquitetura os dispositivos e efeitos pictóricos do cubismo. Ele os inseriu no decurso de uma caminhada arquitetural na qual o caminhar contínuo e fluido pré-estabelecido e controlado pela planta-baixa (uma planta-baixa que, nas palavras de Le Corbusier, “porta a essência da sensação”) é pontualmente interrompido por ocorrências “pictóricas” de altíssima intensidade, concentradas sobretudo nos planos de fachada, verdadeiros “imãs visuais”42 a serem percebidos, conforme estabelece a planta baixa, frontalmente.
Em Transparência literal e fenomênica, Colin Rowe deixou claro como a frontalidade era de fato decisiva nas operações “pictóricas” de Le Corbusier: “a partir de um ponto de vista frontal”, afirma Rowe, o arquiteto “eliminou a tridimensionalidade inerente à arquitetura”, produzindo “um conflito entre um espaço real e profundo e um espaço ideal e planar”. 43
A força e a complexidade das operações pictórico-arquitetônicas de Le Corbusier residem justamente aí. Não apenas porque acrescentou pernas e pés ao olho estacionário do cubismo, mas porque de fato colocou o sujeito da experiência da arquitetura em uma condição oscilante, na qual a presença temporalmente fluida, estendida, sequencial e cumulativa – numa palavra, cinemática – vivenciada por uma consciência encarnada e imersa no fluxo temporal do mundo fenomênico (mas também histórico) convive com a presentidade epifânica, incorpórea, transcendente e intemporal de uma experiência estética que, pontual e repentinamente, arranca (ou, como queria Michael Fried, “liberta”)44 esse mesmo sujeito do fluxo temporal no qual, até um segundo atrás, estava mergulhado.
É esta, em última instância, a radical oscilação promovida pela promenade architecturale de Le Corbusier: o sujeito que ela conjura vive, alternadamente, dentro e fora do mundo.
E é justamente aqui que o viés lecorbusieriano da operação de Palmeiro termina. Pois em lugar de uma condição oscilante, A obra está estabelece, como a artista explicitou de saída, um estado vacilante – e, como veremos, não apenas da pintura.
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Antes de mostrar como e por que isso ocorre, é hora de chamar a atenção para um aspecto decisivo, embora raramente discutido, da arte site specific – a arte que A obra está, ao modo de um agente duplo, que opera com-e-contra seu oponente, arruína em seu próprio território e em seus próprios termos. Que aspecto é este? O fato de, tendo partido de uma (bem-vinda) atenção à especificidade do lugar, e de uma (em certa medida justificada) recusa dos pressupostos idealistas da pintura e da escultura modernistas, ter se tornado não apenas uma estética redutora, mas também, muitas vezes, uma estética moralista.
Poucos enunciados evidenciam isso de maneira tão explícita quanto o livro O complexo arte-arquitetura, do crítico estadunidense Hal Foster. De fato, mais do que exaltar as qualidades da arte site specific (ou como prefiro chamá-la, depois de Plagens, de arte do contexto), Foster deixa claro nesse livro quão visceralmente empenhado está em combater e mesmo desmoralizar práticas artísticas ou arquitetônicas que não estejam alinhadas com o imperativo moral da arte do contexto – uma vez mais, promover intervenções contextuais em lugares específicos.45 Para Foster, de fato, tudo que não vier a se enquadrar nessa pauta é tratado como coisas tão retrógradas e impróprias quanto: “a idealidade da forma”, o “transcendental”, “falsas fenomenologias”, “efeitos dos signos da mídia”, “totalizações idealistas”, “pictorialismo”, o “mundo idealista” e daí para baixo.46
Que o conceito de “virtual” seja recorrentemente concebido e tratado por Foster em termos da oposição categórica real/concreto vs. falso/enganoso, não chega a surpreender: de acordo com sua visão de mundo realista e de seu indisfarçado entusiasmo com “o retorno do real”, não há nem pode haver lugar para qualquer coisa que, virtualmente que seja, se disponha a ocupar o espaço impróprio porventura existente entre o real e o ideal.
Tampouco surpreende que Richard Serra desempenhe no livro de Foster o papel de super-herói não apenas da arte site specific, mas da arte contemporânea como um todo – e por bons motivos. Afinal de contas, exalta Foster, Serra jamais deixou de afirmar um inarredável compromisso com a escultura “situacional”, vale dizer, uma escultura que “envolve a particularidade do lugar, não a abstração do espaço, o qual ela redefine imanentemente em vez de representar transcendentalmente”. Para Foster, é esta, de fato, a marca registrada da escultura de Serra: veio ao mundo investida de uma missão: “afirmar as condições fenomenológicas de corpos específicos em espaços específicos”47 – tudo aquilo que a condição vacilante de A obra está profana e arruína.
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E é precisamente por isso, por seu aspecto titubeante, que A obra está se aparta e distancia da arquitetura pictórico-arquitetônica de Le Corbusier (e que dirá do realismo contextualista – o contemporaneismo! – da arte site specific e de sua versão paroxística, a arte indiciária). Porque, diferentemente de Le Corbusier, não se trata aqui de uma condição oscilante, senão, como de saída deixou claro Palmeiro, de um estado vacilante.
A distinção é radical. Pois se a primeira é a condição de um sujeito que ora está e ora não está no mundo – no mundo da presença e do presente, dos lugares específicos e das ações apropriadas –, a segunda conjura um sujeito que, simultaneamente, está e não está no mundo. Um sujeito que, absurdamente, está simultaneamente no espaço da Casamata e no espaço do ateliê da artista; no espaço atual e no espaço virtual; no espaço da presença e da não-presença, do presente e do fora-do-presente, do contemporâneo e do destemporâneo. Um sujeito reiteradamente desalojado, despejado, dessituado, sem lugar específico nem contexto apropriado. Um sujeito descontextualizado que, melancolicamente, procura um lugar que confira sentido e torne suas ações, uma vez mais, apropriadas.
Da arte de perder
O que A obra está oferece a esse sujeito melancolizado não é absolutamente da ordem da resignação (e menos ainda, da irresignação melancólica). É antes a possibilidade de um trabalho de luto. O luto pela perda de um sonho longamente berçado pelo sujeito-agente constituinte moderno: estar e pertencer ao mundo – mais especificamente, a um mundo feito de lugares específicos e contextos apropriados. O mundo do presente e da presença. O mundo materializado por uma arte cujos feitos, efêmeros que fossem, serviam de prova de que seus autores e autoras de fato estiveram e agiram ali, em lugares e tempos específicos, e que, portanto, foram – simplesmente foram. (Rosalind Krauss não estava absolutamente enganada quando identificou nos feitos da arte indiciária o mesmo traço que Roland Barthes viu na fotografia: a presença de um índex que, ao modo de uma prova forense, atestava que os agentes na origem de todas aquelas intervenções situadas tinham, de fato, “estado ali”, naquele lugar e naquele tempo específicos, e que portanto tinha vivido em situação, no presente e na presença).48
Reside aí a dimensão libertária de A obra está: ao expor a inespecificidade de espaços alegadamente específicos, esta exposição-performance não se limita a arrancar do agente constituinte moderno a possibilidade de pertencer a contextos apropriados e desempenhar performativos “felizes”; afetivamente, o faz perceber que contextos apropriados são também e sobretudo contextos apropriadores: reiteradamente, colocam (ou pretendem colocar) o sujeito intencional e interventor moderno a serviço da ordem que subjaz a toda e qualquer “circunstância apropriada”.49 O que Austin deixou de nos contar foi exatamente isto: um performativo “feliz” é feliz sobretudo para o contexto a serviço do qual seu autor deve se assujeitar, sob pena de produzir um performativo “infeliz” e sem “significado”. Dito de outro modo, não é apenas o contexto apropriado aquilo que define de antemão a força e a eficácia de um performativo feliz, mas também o inverso disso: a função precípua e a força de um performativo feliz é, por definição, reinstituir o contexto que ocupa e apropria seu autor, e além dele, a ordem que subjaz a todo e qualquer contexto apropriado – uma ordem que, como Austin inadvertidamente deixou transparecer, é acintosamente falocêntrica.50
Diante dessa evidência, entre o perplexo e o emasculado, o sujeito-agente interventor moderno repete melancolicamente a pergunta que lhe endereçou Paul B. Preciado: “E quem seremos se corrermos o risco de um outro performativo?”51
O que A obra está lhe oferece como resposta não parece à primeira vista grande coisa. É um mundo de atos sempre impróprios, desempenhados por um sujeito que, à falta de um contexto apropriado, está como que condenado a performar atos impertinentes, intempestivos, temerários. Atos que não reiteram contextos que lhes antecedem, nem se põem a serviço de futuros mais ou menos plausíveis, utópicos ou distópicos, dá no mesmo.52 Atos que o situam/dessituam em um mundo vacilante, no qual nunca está propriamente, nem propriamente está.
Um desastre? Sim e não. A arte de perder, afinal, não é nenhum desastre.
Ou talvez seja: se, como afirma Freud, “a prova de realidade” foi aquilo que, no trabalho de luto, “mostrou que o objeto amado já não existe mais e agora exige que toda libido seja retirada de suas ligações com esse objeto”, a prova de contrarrealidade exposta por A obra está permite não propriamente que a libido se abra uma vez mais a um mundo de outros, senão que corra o risco de se expor aos outros do mundo.
Hoje
A obra está, a exposição, fechou para o público no dia 16 de novembro de 2014. Poucos dias depois, Maria Palmeiro voltou à Casamata e foi ter de novo com suas telas; uma vez mais, ela as despregou da parede, enrolou, e carregou de volta para o ateliê. Nos dias e semanas seguintes, deu início a uma nova sequência de manipulações: cortou os segmentos de tela, enquadrou alguns deles em chassis e os colocou à venda. Comercializadas, as telas seguiram sua errância pelos espaços da arte, em busca de novos lugares e novas paredes – em casas de colecionadores, galerias de arte, ambientes corporativos, uma foi parar no cenário de uma novela da Globo. Em todos esses lugares, como também nas páginas ou na tela que você, leitor_, tem em mãos neste exato momento, elas seguem projetando à frente de si os espaços – específicos/inespecíficos – que, ao longo dos últimos dez anos, silenciosa e clandestinamente, capturaram e que, de modo inapropriado e desastroso, seguem despejando no mundo.
Maria Palmeiro, A obra está, 2014. Foto: Lua Perê
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