O estado da arte da crítica
Caracterizar a crítica de arte em Danto nos reporta ao mundo da arte norte-americana, em que atuou como crítico, marcando posição como o filósofo interlocutor da neovanguarda Pop, Conceitual e Minimalista sob o impacto de Duchamp, que se estabelece em Nova York em 1942 (e em 1956 pinta seu Étant Donné e associa-se a Man Ray e aos surrealistas emigrados), num confronto deflagrado contra a estética formalista que abalou o establishment modernista. Mas, sobremaneira, situa-o na arena da crítica que confrontou, atualizada por James Elkins ao examinar o estado da arte dessa crítica contemporânea e seus impasses no livro What Happened to Art Criticism?1, abordando a situação da crítica de arte anglo-americana nas últimas décadas. Trata, assim, de elencar os tipos de críticas que despontaram em reação à crítica pós-moderna, sob influxo desconstrucionista e pós-estruturalista dos célebres editores das revistas Artforum, e a seguir, October.2 Para além deste eixo, constatando a dispersão que assola a crítica, Elkins agrupa a produção contemporânea da crítica em sete títulos:
Se eu fizesse um retrato da crítica de arte atual, eu descreveria uma hidra com suas tradicionais sete cabeças. A primeira cabeça representa o ensaio de catálogo, do tipo encomendado para galerias comerciais. [...] A segunda cabeça é o tratado acadêmico, que exibe uma série de obscuros ensinamentos filosóficos e referências culturais, de Bakhtin a Buber e de Benjamin a Bourdieu [...]. O terceiro é a crítica cultural, na qual as belas-artes e imagens populares se misturaram, dando à crítica de arte um único sabor como um rico ensopado. Em quarto lugar está a arenga conservadora, na qual o autor decreta como a arte deve ser. O quinto é o ensaio do filósofo, onde o autor demonstra a coerência ou desvio da arte de conceitos filosóficos selecionados. O sexto é a crítica descritiva, a mais popular segundo pesquisa [...] seu objetivo é ser entusiástica, mas não crítica, para levar os leitores, via imaginação, às obras de arte que não podem visitar. E o sétimo é a crítica poética, em que a própria escrita é o que conta.3
Além de deixar evidente o esvaziamento crescente do juízo e das generalizações históricas em favor da descrição, este esquema aponta uma ausência ‘preocupante’ de unidade orientando essas práticas, como indica o título do artigo, How unified is Art Criticism?.4 Para Danto, isso não seria senão um sintoma do pluralismo emergente das artes incompatível com critérios formais unânimes e padrões históricos que são inoperantes na arte contemporânea. Um problema transversal que ultrapassa o âmbito das agendas críticas e dados empíricos para refletir a crise deflagrada das filosofias da história, suas historiografias e iconologias, pondo em questão as políticas da história.
O autor atribui essa diversidade irreconciliável da crítica à circunstância de “uma crise mundial” que a dispersa sob a confusão de fundo da crítica cultural, ainda que cada vez mais pessoas continuem a produzi-la. “Nesse sentido, a crítica de arte está florescendo, mas de forma invisível, fora da vista dos debates intelectuais contemporâneos. Está morrendo, mas está em toda parte”.5 Elkins reitera que a agonia da crítica, em razão da lacuna deixada pelo juízo e investigação sistemática, paradoxalmente promove uma produção de textos “em massa” ignorando a compreensão crítica.
A deflação do juízo, privilegiando a apreciação local às especulações teóricas, levaria os críticos a emitirem “opiniões informais, pensamentos transitórios”, com isso sinalizando um ponto de inflexão dialética em que essa fraqueza acena com um potencial de renovação. A crítica de arte que fora antes veemente, polêmica e “crítica”, agora é dominada pela “neutralidade, ambiguidade e descrição matizada”, e embora assídua em jornais, revistas e catálogos, está praticamente ausente da pesquisa acadêmica e exilada da compreensão. Ao que Elkins propõe como profilaxia um julgamento mais ambicioso, uma reflexão sobre o próprio juízo atentando para sua relevância em “críticas suficientemente importantes para contarem como história e vice-versa”6, reintroduzindo a exigência de unidade do discurso crítico.
Dito isso, observamos que esta caracterização das “formas” da crítica contemporânea compartimentaliza com rigor supérfluo uma atividade em que a linguagem se modula pelo seu objeto, antes de conformar-se a princípios teóricos. Essa parece ser a dificuldade de Elkins, ainda refém da “lógica” modernista, suas prescrições e estrutura teleológica (equívoco que atribui a Danto) que o impedem de compreender a arte filosoficamente e a complexidade de sua linguagem como o desafio da crítica.
Disjunção sistemática entre filosofia e crítica de arte
Em seu artigo Learning to live with Pluralism7, Danto reitera o que se propôs incialmente com sua filosofia da arte, qual seja, uma definição suficientemente abrangente capaz de incluir todo e qualquer tipo de arte.
Na minha opinião, uma filosofia da arte digna desse nome deve ser elaborada num nível de abstração tão geral que não seja possível deduzir dela a forma de qualquer estilo específico de arte. Deve-se aplicar à arte moderna e antiga, à arte oriental e ocidental, à arte representacional e abstrata.8
O que significa caracterizar tão somente uma “estrutura metafisica” da obra como “artefato semântico”, coisas cujo esse est interpretari, para discriminar a arte do resto das coisas. Mas, logo a seguir, adverte: “... a filosofia só pode discriminar entre obras de arte e coisas reais; não pode discriminar entre obras de arte, as quais devem se adequar às suas teorias para que essas sejam satisfatórias”.9
Enquanto sua filosofia da arte trata de estabelecer as condições de possibilidade para que algo seja arte, como teoria metafilosófica, de segunda ordem, não lhe cabe exercer a função da crítica de arte que trata de distinguir entre diferentes obras de arte, ajuizar seu valor como arte boa/ruim ou apreciar, descrever e identificar suas práticas e produções, envolvendo conteúdos específicos da crítica. Danto, assim, explicita suas razões para atribuir à crítica e à filosofia funções distintas10 caracterizando uma disjunção entre filosofia e crítica de arte que assinala em várias ocasiões, partindo do caráter formal e sistemático da primeira e da perspectiva histórica e descritiva da segunda. Ainda, estabelecer essa distinção entre ambas implica que a crítica vai se delimitar em oposição à universalidade da primeira, e por conseguinte, como uma narrativa pessoal (écriture), que reintroduz diferenças e singularidades históricas e estilísticas.
Sua teoria filosófica da arte formula uma definição que elenca condições necessárias e (conjuntamente) suficientes para algo ser uma obra de arte que qualquer obra deve satisfazer. Ou seja, propõe uma definição que deve aplicar-se universalmente a todo tipo de arte. Isso confere a sua filosofia, que não prejulga sobre particulares, uma “liberdade de escolha irrestrita”, e seria inconsistente supor que um certo estilo ou obra particular exemplificasse sua filosofia com precisão, pois este é um traço absolutamente universal e comum a toda e qualquer arte que não se adequa mais a um tipo que a outro.
Igualmente, em consequência dessa disjunção entre a filosofia e sua prática crítica, na medida em que a primeira não trata senão da ontologia da obra, também não se restringe a crítica a uma agenda ou temas substantivos, de modo que essa será complementar à filosofia no sentido de produzir taxonomias, teorias e narrativas que permitam identificar obras mediante uma “interpretação constitutiva” a um “contexto interpretativo” ou “mundo da arte”, contrapondo a universalidade abstrata de uma e a especificidade local da outra.
Uma vez estabelecida essa diferença, a função requerida pela crítica de discriminação e identificação de obras mediante narrativas e vocabulários estéticos supõe uma interpretação que identifica a obra delimitando seu sentido e relacionando-o a seu modo de apresentação sensível e historicamente contingente. Do mesmo modo, Danto estende seu conceito central de interpretação, para delimitar nesses termos a sua crítica. Comentadores como Cynthia Freeland11, no entanto, objetam que essa equação da crítica com o conceito dantiano de interpretação se mostra insuficiente para atender exigências de caráter judicativo e avaliativo tradicionalmente atribuídos à crítica, que sem se determinar pela questão do valor (estético) tampouco seria meramente descritiva. Assim, ao desconsiderar a função avaliativa da crítica nesses termos, tomando-a antes como interpretativa e descritiva, destinada a produzir “narrativas identificadoras” e teorias articuladas num discurso de razões históricas que reintroduz particularidades, memória cultural etc., Danto rejeita o juízo de valor e a função avaliativa da crítica.
Danto, contudo, recusa aquelas abordagens, com base na caracterização do “valor estético” por Greenberg que “universaliza” a “qualidade estética” nos termos formais do juízo do “gosto”. Centrado na abstração e pureza da forma (especificidade do medium) esse juízo exclui a pluralidade de sentidos e a heterogeneidade da arte. Desse modo, Danto se contrapõe a um critério particular hipostasiado como valor universal, fundado em um gosto normativo que não explicita suas razões, e por isso mesmo é arbitrário.
Mas é quando caracteriza a relação interpretativa da crítica ao embodiment ou modo de apresentação, ao explicitar as relações entre a superfície estética e o sentido que a articula nessa forma (obra) que, reciprocamente, o corporifica e expressa que Danto chega mais próximo de delimitar a função da crítica. Com efeito, diz Danto:
A tese que emergiu do meu livro The Transfiguration of the Commonplace é que as obras de arte são expressões simbólicas e corporificam [embody] os seus significados. A tarefa da crítica é identificar os sentidos e explicar o modo como se dá sua corporificação [embodiment]. Assim interpretada, a crítica é apenas o discurso das razões, em cuja participação se define o mundo da arte [...]: ver algo como arte é estar pronto a interpretá-lo em termos do que e como significa.12
Desse modo, o desafio da função interpretativa da crítica reside em compreender a complexidade da relação do sentido com sua apresentação sensível, delimitar esse sentido sem, contudo, abstraí-lo de sua rede de conexões ou do “círculo hermenêutico” em que gravita a interpretação na órbita de seu objeto. Com efeito, se a crítica em Danto é uma função da interpretação destinada a discriminar o sentido da obra, e por meio deste, delimitar sua identidade, isso requer ainda qualificar seu conceito de interpretação, que não é simplesmente coextensivo a uma hermenêutica discursiva, mas supõe ainda uma estética e seu repertório retórico capaz de descrever inflexões da linguagem requeridas pela fenomenologia do embodiment.
Crítica de arte como análise filosófica?
É possível constatar-se dois modos em que a prática crítica de Danto se caracteriza por empregar a forma do ensaio filosófico. De uma parte, especulativamente, emulando problemas filosóficos em usos imaginativos (problemas de linguagem e Gedankenexperimente) que exploram o contrassenso das proposições filosóficas e verdades contraintuitivas para frustrar expectativas do senso comum, para então propor explicações filosóficas que desmentem a platitude do visível. De outra, no modo como preconiza na crítica suas teses filosóficas (tese da indiscernibilidade e “fim da arte”) investigando e descrevendo uma arte pós-histórica que revoga imperativos históricos e pressupostos normativos ampliando e reconfigurando repertórios.13
Já o esquema introduzido por Elkins enquadra a crítica de Danto na categoria “ensaio filosófico”, juntamente com Thomas Crow e, mesmo considerando Danto o pioneiro desse gênero, atribui à Crow “um tom mais denso e mais articulado filosoficamente”14 ao tratar do minimalismo e da arte conceitual, movimentos programáticos que propõem problemas de metalinguagem já esboçando uma crítica filosófica.15 Com respeito à Danto, supõe uma distinção entre sua crítica de arte e o ensaio filosófico, este último equacionado à análise filosófica usando exemplos como ilustração de conceitos, sem considerar a peculiaridade da linguagem da crítica que incide na forma do ensaio:
Danto escreve com tom mais leve, mas também se preocupa com a força filosófica e a capacidade de certas obras de arte servirem como exemplos de problemas lógicos e filosóficos. Os seus ensaios filosóficos - em oposição à sua crítica de arte [...] tendem a circular em torno da sua conhecida afirmação de que a história da arte terminou com as Brillo Boxes de Warhol em 1963.16
Ora, aqui confunde dois aspectos que Danto se esmera em distinguir como consequência do “fim da arte”, qual seja, a crítica e a filosofia como atividades e métodos distintos. Não só confunde sua crítica com sua filosofia, mas parece entender a crítica em Danto como efeito residual de um relativismo hermenêutico17 (“everything goes”), antes que o corolário de uma filosofia da história (“Fim da arte”) pautada no pluralismo e numa teoria da interpretação artística.18
Sem esclarecer a natureza do ensaio filosófico em Danto, Elkins não distingue o ensaio da sua filosofia sistemática ou contabiliza implicações do seu historicismo nas rupturas formais, giros semânticos e políticas do embodiment que balizam a interpretação da crítica numa hermenêutica complexa. Ignora a caraterização do “contemporâneo” em contraposição ao “moderno”, segundo a matriz da “colagem”19 como combinatória anacrônica, suspendendo a “periodização” histórica e cânones historiográficos em repertórios como o readymade Pop, a apropriação, o abjeto, o arquivo etc., minando os fundamentos do discurso normativo do projeto moderno. Com efeito, a crítica de arte em Danto, sob a forma do ensaio filosófico, caracteriza-se não só pela análise filosófica, mas pelas inflexões retóricas da descrição e pelo escrutínio fenomenológico do embodiment – como corporificação sensível e expressão do sentido em um certo medium artístico – muito além do exame analítico e da lógica discursiva.
Pelo contrário, insiste que Danto prolonga o modernismo sem contabilizar efeitos do seu perspectivismo pragmatista20 e do pluralismo artístico que o levam a reformular princípios e categorias da estética, introduzindo a noção de “beleza interna” e a ampliação de predicados estéticos como “inflectores pragmáticos” numa política da estética. Desqualifica sua teoria como inócua, pautada pela equivalência das interpretações e, por isso mesmo, incapaz de renovar repertórios recaindo numa “cacofonia de vozes incomensuráveis”. Elkins não somente ignora implicações filosóficas e sistemáticas da teoria de Danto para a crítica, como parece assimilar a crítica à sua filosofia sem distinguir a sua metodologia disciplinar da livre especulação (ensaio filosófico). Sua leitura se ressente de uma consideração estética do ensaio como um gênero, limitando a abordagem filosófica à clareza conceitual, à explicação e a inferências dedutivas, ao passo que o ensaio deve responder a condições específicas da obra de arte que exorbitam condições cognitivas. Se a arte em sua complexidade se reporta a uma ontologia diversa, ao ‘mundo-da-arte’ como um contexto interpretativo que supõe usos metafóricos, isso implica também um deslocamento na linguagem em que se fala da arte.
Guinada estética do ensaio como gênero da crítica
Um breve excurso por pensadores modernos que se debruçaram sobre a natureza do ensaio nos permite contabilizar as características e razões que fazem dele o gênero de escrita que expande a linguagem da crítica para além da generalidade discursiva e hierarquias conceituais, conferindo-lhe amplitude de horizontes e capilaridade suficiente para apreender a contingência histórica e a heterogeneidade sensível da arte. Passamos em revista considerações sobre o ensaio de Lukács, Starobinski e Montaigne (examinado pelo último) que assinalam suas modulações e o vasto domínio em que transita para refletir o contingente e mutável da realidade humana, em busca de um núcleo comum que o individualize e distinga como um gênero. Na análise desses autores sobressai um tipo de dualidade gerando uma tensão instável entre particular e geral, conceito e imagem-objeto, diegese e mimese, especulação e estética, que adensa no percurso errático do ensaio e destila o pensamento sem congelar na abstração do signo. Trata-se de textos breves, uma carta e um discurso de agradecimento, que nem por isso são menos incisivas. Como o próprio ensaio, não comportam uma elaboração dissociada da fricção com o presente, mas seu caráter revelador e inconclusivo, com a rapidez precisa de um gesto, traduz uma fisionomia.
As primeiras considerações sobre a natureza do ensaio na modernidade remontam aos escritos de Lukács. Em uma carta dirigida ao poeta Leo Popper, entabula uma discussão que busca discernir algum princípio capaz de estabelecer uma “nova forma”, assim delimitando a “verdadeira questão” suscitada pelo ensaio. Qual seja, se os melhores escritos desse gênero possuem uma forma que lhes é própria, uma forma particular da arte e não da ciência. “Na ciência são os conteúdos que agem sobre nós, na arte são as formas; a ciência nos oferece fatos e suas conexões, a arte, por sua vez, almas e destinos”21. Contudo, sem perder seu poder reflexivo, de pensar a realidade a partir dela mesma. Uma forma gerada no exercício do pensamento voltado à existência do objeto, uma forma impura, não contida em si mesma. Lukács indaga “em que medida essa sua forma é autônoma; em que medida o modo de ver e sua configuração subtraem a obra do campo das ciências e a colocam ao lado da arte sem, contudo, apagar as fronteiras entre ambas”.22 Ora, é justamente essa transição que lhe confere a força necessária para uma reordenação conceitual da vida e o “mantém distante da perfeição gélida e definitiva da filosofia”.23 Ao admitir um modo completamente diferente de expressão do temperamento humano, supõe assim um outro meio de expressão, do mesmo tipo que a escrita sobre a arte. Lukács pretende distinguir esse novo gênero não nas belas letras, mas na crítica, como o discurso filosófico que substitui a demonstração pelo ensaio como meio de expressão. Sem distinguir entre a filosofia especulativa, a mística, a crítica e o ensaio, assinala que escritos dos maiores ensaistas – “dos diálogos de Platão e escritos dos místicos aos ensaios de Montaigne e às páginas imaginárias de diários e novelas de Kierkegaard” –, mesmo compartilhando o mesmo princípio, não são obras de arte ou literatura. Mas a despeito dessa separação ostensiva, insiste que há uma transição possível, mediante “uma série infinita de quase imperceptíveis transições sutis”24 que operam a passagem da crítica e da filosofia à literatura. Assim, ao refletir sobre o poema trágico, a meio caminho entre os acontecimentos e o enredo do destino que lhe confere forma, aponta um núcleo comum: uma duplicidade entre duas “realidades” ou duas “vidas” – a ordem das coisas e a ordem das ideias. Transpondo essa “duplicidade” para os “meios de expressão”, qual seja, para a linguagem da crítica filosófica e do ensaio, Lukács distingue uma oposição entre a imagem e o significado, entre um princípio criador que produz imagens, e para o qual existem apenas coisas, e outro princípio que atribui significados e admite apenas relações, conceitos e valores. É nesse contraponto que ele reivindica que tanto a poesia como a crítica (o ensaio filosófico) não são puras abstrações, pois representam “as últimas relações entre o homem, o destino e o mundo”. Assim caracteriza o ensaio por sua forma diversa e sutil, “se compararmos as diferentes formas da literatura com a luz do sol refratada pelo prisma, os escritos dos ensaístas seriam os raios ultravioletas”25, sugerindo a forma de um equilíbrio instável de opostos preservando a ambivalência entre pensamento e objeto.
De outra parte, Jean Starobinski, num texto intitulado “É possível definir o ensaio?”26, que se tornou referência nos estudos sobre ensaística, reflete sobre a história do gênero. Investiga as características mais notáveis desta forma permeável, a partir de um exame etimológico da palavra: essay do Francês deriva do baixo latim exagium que significa balança e o ato de pesar, examinar, mensurar. No sentido contrário, reivindica:
Mas um outro sentido de “exame” designa o enxame de abelhas, a revoada de pássaros. A etimologia comum seria o verbo exigo, forçar para fora, expulsar, e daí exigir. Quantas tentações, se o sentido nuclear das palavras atuais devesse resultar do que significaram num passado longínquo! O ensaio seria a pesagem exigente, o exame atento, mas também o enxame verbal cujo impulso se libera.27
Observa ainda que ensaiar se estende ao sentido de provar [prouver], comprovar [éprouver] em sotaques locais do francês, enriquecendo o ensaio a ideia de pôr à prova [mise à l’épreuve], ou buscar a prova [quête de la preuve]. Mas é a obra ensaística de Montaigne como exemplo lapidar que conduz o exame dessa forma particular da escrita, muito embora o “ensaísta” se desenvolva na Inglaterra do século XVII, servindo a ideias novas e interpretações originais de antigos problemas filosóficos como em Hume e Locke, e, ainda, ganhando um tom pejorativo de escrita menor em Ben Johnson. É nesse tom bastante distinto da prosa espontânea de Montaigne que o ensaio passa a ser empregado. Entre altos e baixos, o ensaio como gênero recupera seu vigor com Théophile Gautier, “autor de obras sem profundidade”, mas é a sutileza de Montaigne em ironizar o pedantismo do saber que frustra os detratores do ensaio. Starobinski assinala com ênfase o ressentimento acadêmico contra a liberdade do ensaio como ameaça ao método e à cientificidade:
A universidade, no apogeu de seu período positivista, tendo fixado as regras e os cânones da pesquisa exaustiva séria, rechaçava o ensaio e o ensaísmo às trevas exteriores, com o risco de banir, no mesmo movimento, o brilho do estilo e as audácias do pensamento. Visto da sala de aula, pelo júri de tese, o ensaísta é um amável amador que vai juntar-se ao crítico impressionista na zona suspeita da não-cientificidade.28
Pelo contrário, impressões e imagens enriquecem o ensaio, imiscuindo-se à existência ordinária e declinando-se em seus subgêneros, “crônica de jornal, panfleto polêmico, conversa variada”, não extingue sua potência formal ou sua acuidade crítica. Antes, refina a crônica em “pequeno poema em prosa; o panfleto, se é Constant quem o escreve, pode intitular-se De l’esprit de conquête; a conversa pode falar com a voz de Mallarmé”.29 Mas é seguindo os passos de Montaigne, examinando seu modus operandis que se torna revelador para compreender a natureza esquiva, errática, personalíssima e prismática do ensaio. Como sublinha Starobinski, ao declarar-se autor de ensaios Montaigne deixa clara a dificuldade do desafio que se impõe de produzir um livro/obra eloquente, inconclusivo, mundano e autorreflexivo, “que permaneça em aberto, não atinja nenhuma essência, que ofereça apenas uma experiência inacabada, que consista apenas de exercícios preliminares – desde que remeta estritamente a uma existência, à existência singular de Messire Michel, seigneur de Montaigne”.30
A pergunta fundamental para entender o que está em jogo no ensaio, segundo o autor, indaga “de que realidades, que objetos fez Montaigne o ensaio?”. E o título de sua obra, Ensaios, confirma o que imediatamente constatamos – que seu objeto é a diversidade, que o traço particular do ensaio é plural, múltiplo. O ensaio não se reduz a seu caráter incoativo, incipiente, da energia infatigável de um jogo que reconduz sempre a novas tentativas, a infindáveis pesagens e ponderações. Mas, antes, dispõe de um campo de aplicação ilimitado, de uma diversidade que desde a criação do gênero só uma obra como a de Montaigne, exemplificando o arco de possibilidades abertas pelo ensaio, poderia dimensionar.
Aponta assim duas vertentes, uma objetiva, outra subjetiva, em que o trabalho do ensaio reside em estabelecer entre ambas uma relação indissolúvel. De um lado a experiência do mundo e os objetos que oferece à sua apreensão, a matéria experimentada, submetida à sua pesagem, que é menos o ato de mensurar que “uma ponderação a mãos nuas, uma moldagem, um manejo”. Em Montaigne, praticar o ensaio significa assim tatear a realidade, “pensar com as mãos”, porque requer saber ao mesmo tempo meditar e manejar a vida. Starobinski destaca a aspereza desse roçar as coisas, quando se é, ao mesmo tempo, afetado pelo contato, pelo atrito da subjetividade com o real. Insiste que Montaigne “faz o ensaio do mundo, com suas mãos, com seus sentidos” e a resistência que lhe opõe o mundo, ele ressente em seu corpo como “apreensão”. Significando assim que implica sua existência nesse exercício especulativo para refletir o mundo através da sensibilidade, como natureza que se dá a sentir no prazer e na dor do próprio corpo, que sofre e contempla sua enfermidade, testando seus estados de semiconsciência. Montaigne não deixou de desfrutar a vida com o mesmo afinco que dedicava ao mundo e aos livros, escutou seu corpo com intensidade, como o derradeiro refúgio de angústias e gozos.
Essa, contudo, é apenas uma das vertentes, a mais decisiva reside no modo autorreferente e reflexivo, um poder de “ensaiar”, experimentar, uma faculdade de julgar observando-se, já que a única lei do ensaio é testar, ensaiar a si mesmo. Mas disso não se segue nem um diário íntimo, nem uma biografia, Montaigne se espelha no mundo para se reconhecer num Outro, “se define indiretamente, como que esquecendo de si”. Exprimindo sua opinião, se autorretrata a partir de questões humanas – a presunção, a vaidade, o arrependimento, a amizade, meditando sobre a razão de Estado, evocando o massacre dos indígenas. De modo que, em Montaigne o exercício da reflexão interna é inseparável da inspeção da realidade exterior. Depois de perpassar as grandes questões morais, escutar os clássicos, enfrentar os dilaceramentos do presente, ele se descobre consubstancial ao seu livro, oferecendo de si mesmo uma representação indireta: “Sou eu mesmo a matéria de meu livro”. A seu modo, com essas vertentes do ensaio entre o sujeito senciente e a exterioridade do mundo, reintroduz aquela tensão constitutiva do ensaio que apontou Lukács, entre particular e geral, pensamento e objeto, significação e imagem.
O limite permeável entre filosofia e literatura
Retornando à discussão inicial com o contraponto dessas exegeses do ensaio, dilata-se o equívoco de caracterizar a crítica de arte em Danto como ensaio filosófico que estende a análise filosófica a par de uma hermenêutica relativista, sem levar em conta o ensaio como gênero literário. Essa leitura é contestada de modo significativo quando se considera a reflexão de Danto sobre a influência da forma no modo de expressar a verdade filosófica mediada por uma cultura histórica na tradição da filosofia. Comparando a filosofia com a literatura trata de investigar o amplo arco da linguagem filosófica em seus estilos históricos, gêneros literários documentados na história da filosofia que evidenciam uma sobreposição formal entre literatura e filosofia.31
Esse movimento errático do ensaio que exorbita a discursividade nos leva a examinar a análise de Danto no texto “Filosofia e/como/da Literatura”, em que trata das afinidades estilísticas relativas à forma e inflexões da escrita, quando se propõe a distinguir a filosofia da literatura sublinhando seus pontos de contato. Embora a literatura enquanto uma arte se separe da filosofia como conhecimento da verdade, mediante métodos rigorosos e convenções de linguagem, Danto não hesita em apontar a rivalidade acirrada por homologias formais entre uma e outra, destacando o traço de reflexividade que partilham. Mas é decisivo o modo como enfrenta essas questões, destacando o papel do leitor na recepção da obra literária, fazendo da generalidade dessa recepção o núcleo daquela diferença. A epígrafe do texto é reveladora, destacando a ênfase dada à recepção, destinada ao espectador pelo modo de apresentação estético (embodiment) como modo característico (retórico) da obra se endereçar a ele:
Ao mostrar o que é subjetivo, a obra, em toda a sua apresentação, revela o seu propósito existindo para o sujeito, para o espectador e não para si mesma. O espectador está, por assim dizer, nela desde o início, é considerado com ela, e o trabalho [crítico] existe apenas para este fim, ou seja, para o indivíduo apreendê-la.32
Danto observa que as questões do estilo provaram ir na direção oposta das preocupações filosóficas, visto que relações fundamentais com o texto, como seus modos de significação, mudam consideravelmente se o considerarmos da perspectiva da literatura (conotações, referências cruzadas e intertextualidade). Ao apontar as limitações do paper como padrão do artigo filosófico, Danto sugere o quanto esse padrão excluiu a forma, os estilos de escrita em que os filósofos historicamente enunciaram a verdade em seus textos, eliminando camadas de sentidos ao reduzir um antigo diálogo ou meditação à prosa convencional dos periódicos. Considerar de algum modo a filosofia sob a ótica da literatura, pelo contrário, permitiria perceber a importância que assume a forma, o estilo ou o modo de apresentação na recepção histórica da verdade filosófica. A própria verdade, em última instância, é comunicada e apreendida historicamente e, portanto, supõe e envolve bem mais do que apenas enunciá-la discursivamente.
Assim, para chegar a compreender essas verdades históricas é imprescindível uma transformação do público, qual seja, uma mudança envolvendo um tipo de adesão similar a uma iniciação, reportando à forma de vida em que se inscreveram.33 Em contrapartida, adverte que dificilmente poderíamos pensar em “um campo tão fértil às possibilidades da escrita como a filosofia”, quando se trata da geração de formas de expressão literária. Com efeito, assinala que a literatura acumulou um repertório formidável de variedades de estilos, enumerando modalidades das mais extravagantes às mais ordinárias, desde:
[...] diálogos, notas de leitura, fragmentos, poemas, exames, ensaios, aforismos, meditações, discursos, hinos, críticas, cartas, sumas, enciclopédias, testamentos, comentários, tratados” e assim por diante, além dos “post-scriptum, genealogias, histórias naturais, fenomenologias e tudo o que o Mundo como Vontade e Representação ou o corpus póstumo de Husserl, ou os últimos escritos de Derrida, sem esquecer as formas literárias – romances, peças de teatro e afins– a que os filósofos recorreram quando podiam delas dispor.34
O que poderia ser uma evidência mais tangível da relevância da forma na prática filosófica e suas condições de verdade, significação e recepção que esta simples listagem de estilos históricos? O que nos informam sobre a filosofia essa variedade de estilos, e o fato de serem indissociáveis de sua história? Ao explicar essa mediação das formas da linguagem, o argumento faz um recuo para tratar a questão da referência ficcional. Contrapondo-se à teoria da “falácia referencial”35, argumenta que toda a literatura não é senão sobre literatura, e não lhe compete referir o mundo conhecido. Pelo contrário, obras se reportam umas às outras “em uma órbita referencial”, assim substituindo a relação semântica vertical por uma relação lateral.36 A literatura não se refere diretamente à realidade, mas na melhor das hipóteses, a outras literaturas, a outros textos, pressupondo a noção de “intertextualidade”.37 Para Danto, esse conceito designa a palavra/o texto como um lugar dinâmico em que processos relacionais e práticas sociais são centrais, e mais estruturas e produtos uma vez que um texto “é uma intersecção de superfícies textuais antes que um ponto (um sentido fixo), como um diálogo entre vários escritos”38
Ajustando essa visão que tem por base a dinâmica do texto, agora entendido como uma “rede de efeitos recíprocos” em que reside o significado literário, Danto propõe uma explicação alternativa. Mantendo em parte a noção de intertextualidade, a referência da obra se processa levando em conta suas “conexões ao mundo”, o que significa que um texto deve referir em ambos os sentidos, tanto no âmbito extratextual quanto no intertextual, tanto no conteúdo como em suas mediações formais. Com isso, torna perfeitamente compatível uma conexão ao mundo através de “uma rede de efeitos recíprocos”, em que o texto significa em ambos os sentidos.39
Mas para além de questões filosófico-semânticas e teórico-literárias, Danto considera central aquilo que nos faz interessados na literatura, levando à adesão do público espectador. Considerando que, se “não somos estudiosos literários, por que razão deveríamos nos preocupar com essas intrincadas redes de efeitos recíprocos?”.40 Desse modo, desloca a literatura para o plano das questões humanas, escapando daqueles esquemas de relações teóricas abstratas, e propõe em seu lugar uma “coordenada z” que abre uma nova dimensão de referência, qual seja, a do espectador que perfaz a recepção da obra.
A diferença filosófica entre literatura e filosofia remonta à Aristóteles, para o qual esta diferença não reside nas superfícies das obras, mas na natureza universal da literatura. Mas em que consistiria então essa diferença, se são ambas universais? Ora, a filosofia pressupõe ainda o necessário – verdadeiro para todos os mundos possíveis, enquanto a literatura apresenta um tipo de universalidade distinto que envolve suas condições de recepção. Em conformidade ao pensamento de Hegel, ele especifica essa diferença, qual seja: “que a obra existe para o espectador e não por si mesma, existe apenas para o indivíduo que a apreende, e completa a obra dando sua substância final”.41
Com essa análise, Danto converte a referência ao leitor numa função universal da literatura, uma vez que, “na universalidade da referência literária, se trata apenas de cada indivíduo que lê o texto no momento em que o lê, e assim contém um indexical implícito”.42 Portanto, cada obra se refere àquele que a lê e se identifica, não com o leitor implícito, mas com o próprio sujeito do texto de tal modo que cada obra possa se tornar uma metáfora para cada leitor, transferindo a força normativa do autor para o leitor. Danto agora atribui à posição deste último o estatuto da literatura, pressupondo a equidade universal da recepção e da experiência estética a todo e qualquer sujeito imanente que “a apreende e completa”.
Do pluralismo pós-histórico ao polimorfismo da estética
Se a ampliação das funções da crítica (em narrativas identificadoras), em Danto, decorre do colapso das estéticas filosóficas e da historiografia tradicional que por séculos sujeitaram a arte a seus imperativos, a arte pós-histórica parece ainda produzir um novo desdobramento contrário àquela tendência antiestética43 dos movimentos da arte dos anos 1960-70. Com a virada do milênio, a teoria de Danto torna-se sensível ao papel desempenhado pela estética na articulação do sensível mediante operações e vocabulários que delimitam as latitudes da experiência artística como “experiência estendida”44 que exorbita condições empíricas, restringindo-a (caso da beleza e do gosto) ou ampliando-a em novos repertórios. Nesse sentido, Danto constata a importância de uma revisão de pressupostos teóricos da estética, tendo em vista a reconfiguração de suas relações e taxonomias, por muito tempo refém do formalismo modernista.45 Com efeito, uma reconfiguração da estética se impõe em consequência da supressão de padrões dominantes e do pluralismo que desencadeia a diversificação das formas.
Desse modo, se a neovanguarda e os movimentos posteriores ao pós-guerra permitiram à crítica de arte assumir um protagonismo decisivo nos anos 1960-70, mudanças de outra natureza marcam o século XXI. A crítica social e institucional desse período esboçou uma reação contundente às estéticas tradicionais e à abstração modernista cuja estética formalista (Greenberg, C. Modernist Painting, Homemade Aesthetics) associou-se ao imaginário do individualismo liberal do capitalismo tardio. Esse período de efervescência sociopolítica, de novas teorias e movimentos de contracultura, marcou uma produção caraterizada pelo repúdio à estética, desencadeando, a seguir, um novo ponto de inflexão. Como argumenta Danto, a questão da recusa da estética em favor da crítica sócio-política, que mobilizou a arte antiestética das décadas revolucionárias de 1960-70, não significou o repúdio à estética em geral, à experiência estética no sentido ampliado, mas antes à estética do formalismo modernista cujos pressupostos e dogmas estéticos impuseram um domínio restritivo e excludente em nome da “pureza da forma&rdquo.
Já em The Abuse of Beauty e O que é Arte?, Danto reivindica uma revisão do papel da estética na experiência artística, expressamente propondo uma ampliação significativa dos repertórios estéticos numa vasta gama de predicados pragmáticos destinados a provocar reações e atitudes no espectador, suplantando a contemplação do belo que confinou à apreciação formal o amplo domínio da experiência da arte. Com efeito, refletindo sobre as novas taxonomias que proliferam na arte contemporânea, Danto adverte sobre a normatividade restritiva dessa estética tradicional,
O que o repulsivo e o abjeto – e no mesmo sentido, o tolo – nos ajudam a entender é a sombra densa que o conceito de beleza projetou sobre a filosofia da arte. E porque a beleza se tornou tão aferrada ao conceito de gosto no século XVIII, ela obscureceu o quão ampla e diversa é a gama de qualidades estéticas.46
Com efeito, esse movimento revisionista anuncia um “aesthetic turn”, uma virada estética que implemente a reformulação de princípios e conceitos de modo a responder à diversidade das práticas e sociabilidades, novas subjetividades e configurações da arte contemporânea. Uma manobra decisiva, essa estratégia consistira, de uma parte, em revisar conceitos chave da estética clássica ao inverter a noção de beleza, não endereçada a propriedades formais do objeto, mas como beleza interna ou semântica, em contraposição à beleza externa, inadvertidamente, reportando-se às noções de beleza livre e beleza dependente em Kant (KU§14). Os exemplos de “beleza interna”, assim, corresponderiam àqueles em que o modo de apresentação ou embodiment se vale de qualidades estéticas que, no entanto, derivam do sentido da obra como nas Elegies for the Spanish Republic de Robert Motherwell, Vietnam Memorial de Maya Lin, ou Em busca do tempo perdido, de Proust e O casamento de Peleus e Tetis, de Joachim Wtewael, de 1610. Mas além de introduzir sua distinção entre beleza externa e beleza interna, o problema consiste em que a beleza foi tradicionalmente considerada como única qualidade estética relevante, assim reduzindo drasticamente o escopo da estética.
Danto insiste na ampliação do repertório das qualidades estéticas, que irá redefinir como predicados pragmáticos na medida que impactam nossas atitudes e ações. “Existem outros modos, além da beleza”, replica, “para conectar sentimentos e pensamento em obras de arte: repulsa, erotismo, sublimidade, como também piedade, medo e outros...”.47 Desse modo, parece finalmente conceder a devida relevância à estética, não como condição necessária da arte, mas da experiência humana lato sensu, para, ao mesmo tempo, reconfigurá-la como uma “estética do sentido”.48 A ambição dessa nova abordagem da estética alinhada ao pluralismo é, sem dúvida, a ampliação das qualidades estéticas na chave retórico-pragmática, mediante modos de inflexão (inflectors) que redimensionam de forma significativa o vocabulário e domínio estético tendo em vista seu impacto na recepção.
Mas existe um vasto número de outros casos, como o abjeto, ou o ridículo, que claramente suscitam desprezo, ou lubricidade visando despertar sentimentos eróticos. De certo modo essas propriedades pragmáticas correspondem ao que Frege designa como “coloração” – Farbung – em sua teoria do sentido. A variedade de características pragmáticas é muito mais ampla do que qualquer cânone compreendido por tratados de estética, assim como as características semânticas incluem bem mais que representações miméticas, tornando claro o quanto aquele conceito tem sido interpretado de modo obtuso na literatura crítica e filosófica da arte.49
Nessa perspectiva pluralista, é esse amplo repertório de propriedades retórico-pragmáticas que inflectem o sentido e passam a constituir a dimensão estética da obra. Ora, essa reconfiguração da “estética” leva Danto a rever noções da estética clássica como a forma autônoma, contrapondo sua noção de embodiment em lugar dessa forma externa, uma vez que se baseia numa relação interna entre o sentido e seu modo de apresentação que constitui a obra como embodied meanings.
O propósito aqui não é senão a pluralização da estética, sua reconfiguração em novos vocabulários, tropos e atitudes como a condição mesma de sua validade e pertinência face à diversidade e deslocamentos semântico-epistemológicos da arte pós-histórica. Do mesmo modo, questões relativas à forma e inflexões estéticas da linguagem são decisivas à crítica, no sentido que a tornam apta a distinguir e identificar a multiplicidade incontornável de práticas e objetos artísticos que passam desapercebidos, indiscerníveis sob padrões estéticos tradicionais ou meras análises discursivas. Investigar aqui a capilaridade da crítica requer levar em conta essas operações que lhe permitem acessar zonas da experiência artística que escapam à normatividade de repertórios tradicionais, de modo que é a tessitura e permeabilidade da linguagem da crítica que poderá distinguir a obra em saliências do objeto, conferindo sentido ao descrever o que foi relegado à invisibilidade, redescrevendo com percepção amplificada numa interpretação prospectiva aspectos impensados. É nessa estrita confluência de hermenêutica e estética na forma do ensaio que a intersecção entre Adorno e Danto interessa a este exame.
O ensaio como forma: estética e subversão em Adorno
A reflexão mais incisiva sobre o ensaio, investigado de uma posição teórica radical em que estética e política confluem no impacto desarticulador da discursividade e verdade científicas, encontramos em Adorno. No entanto, não se trata aqui de forçar uma comparação ou sugerir uma influência. Em suas réplicas a textos que apontam uma aproximação com Adorno, Danto admite nunca tê-lo lido ou se interessado de modo a justificar uma interlocução.50 Trata-se antes de tomar seu texto antológico como defesa do vigor e radicalidade dessa “forma” que se engendra no livre exercício do pensamento e da diversidade articulando a escrita, mas ainda valendo-se da capilaridade e polifonia estética que subverte a normatividade do logos discursivo aprisionado nas regras do método e objetividade científicas que a modernidade consolidou. Nesse contraponto, considerando a interpretação crítica que compara, perscruta e reflete o objeto artístico em vez de classificá-lo, fica saliente a afinidade entre a linguagem da crítica e a forma errática do ensaio filosófico investigada por Adorno, que caracteriza exemplarmente a natureza ambígua do ensaio, a um tempo estética e especulativa, em seu texto antológico “O ensaio como forma”.51
Se tomamos em consideração as sutilezas e inflexões da forma do ensaio em Adorno, a meio caminho entre especulação filosófica e estética literária, em que as contingências do encontro sensível com o objeto, as descrições imagéticas e a circularidade do pensamento reiteram não a univocidade do discurso, mas a equivocidade da linguagem e a polissemia das artes, é difícil ignorar que também na crítica de Danto o ensaio se distingue da linguagem convencional e do método sistemático. Pelo contrário, é em virtude da forma do ensaio – errática, inquisitiva e capaz de diferenciações imprevistas, que a crítica adquire uma capilaridade apta a apreender a heterogeneidade das configurações do embodiment da arte
A aproximação com as teses de Adorno, nesse respeito, nos leva a um breve recuo numa coletânea de crítica de arte onde Danto discorre sobre seu percurso, esclarecendo sua posição como crítico de arte, que claramente se distingue de, embora embora se reporte a seu background filosófico. Nesse intuito, elenca uma série de outros críticos do seu milieu, examinando a relação que cada um estabelece entre sua prática crítica e alguma outra disciplina ou atividade profissional em que atuam. Nesse inventário de tipos, Danto revela ingredientes diversos que compõem um estilo de crítica no contexto interpretativo da arte. Começa com Fairfield Porter que, por conta de sua condição de artista, “via a arte da perspectiva do estúdio, sendo melhor crítico daqueles trabalhos afins com o seu [...]”.52 Do mesmo modo, Donald Judd e Robert Smithson, ambos escultores, um minimalista e o outro site specific, eram melhores críticos quando lidavam com obras com afinidades com as suas. Trata ainda dos críticos acadêmicos, os historiadores da arte que faziam análises comparativas entre obras em textos repletos de referências. A seguir, vêm os críticos poetas que marcaram época, John Ashbery, David Shapiro, Kenneth Koch, James Shuyler, Frank O’Hara, e o crítico do jornal The Voice, Peter Schjedahl, todos eles poetas que mantinham uma relação íntima com a arte e com o que amavam – a cidade, paisagens familiares ou o que os inspirasse a fazer poesia.53 Ainda um outro tipo, os críticos “intelectuais” interessados em uma certa teoria que aplicavam à arte, como Clement Greenberg, mentor do modernismo norte-americano, e Harold Rosenberg.
Nesse contexto, Danto, além de ser um crítico, foi um filósofo profissional num sentido bastante distinto de ser um intelectual no livre exercício de suas habilidades. Assim, insiste que não pratica a crítica de arte como um filósofo, nem escreve crítica do mesmo modo como um filósofo escreveria. Declara que sua crítica, assim como a dos críticos acima, é antes uma “narrativa pessoal”, e caracterizá-la implicaria em uma prospecção biográfica, examinando seu percurso, influências, afinidades, identificações.
Adorno, por sua vez, é pródigo em caracterizar as diferenças do ensaio, discorrendo sobre dicotomias (verdade e método, ciência e arte, subjetivo e objetivo, racional e irracional, logica e estética), em torno das quais ele gravita destacando sua independência de prescrições e convenções linguísticas, em que o objeto baliza a interpretação e o caráter hermenêutico que se declina em uma narrativa pessoal. Admite que o ensaio nada cria, apenas reflete objetos dados que são atraídos a nossa órbita afectiva, e tudo o que se segue à reflexão pautada no objeto é interpretação e jogo:
O ensaio, porém, não admite que seu âmbito de competência lhe seja prescrito. Em vez de alcançar algo cientificamente ou criar artisticamente alguma coisa, seus esforços ainda espelham a disponibilidade de quem, como uma criança, não tem vergonha de se entusiasmar com o que outros já fizeram. O ensaio reflete o que é amado e odiado, em vez de conceber o espírito como uma criação a partir do nada .... Prazer e jogo lhe são essenciais, ele não começa com Adão e Eva, mas com aquilo sobre o que deseja falar, diz o que lhe ocorre e termina onde sente ter chegado ao fim.54
O procedimento decisivo é a interpretação, que sem nada acrescentar ao objeto, não cria nada ex-nihilo, mas trabalha com o que dispõe e amplifica suas particularidades por articular suas relações num conjunto cuja coesão e ajuste destilam uma forma, sem com isso truncar seu caráter especulativo
Nada se deixa extrair pela interpretação que já não tenha sido, ao mesmo tempo, introduzido pela interpretação. Os critérios desse procedimento são a compatibilidade com o texto e com a própria interpretação, e também, sua capacidade de dar voz ao conjunto de elementos do objeto. Com esses critérios, o ensaio se aproxima de uma autonomia estética que pode ser facilmente acusada de ter sido apenas tomada de empréstimo à arte, embora o ensaio se diferencie da arte tanto por seu meio específico, os conceitos, quanto por sua pretensão à verdade desprovida de aparência estética.55
Essa mesma ambiguidade se constata em Danto quando se refere à tensão entre a arte pictórica e a das palavras, imagem e discurso, conferindo à descrição o poder de produzir imagens mentais e metáforas que articulam conotações e expressão em descrições evocativas e écfrases. O exemplo acabado da écfrase para Danto “[...] é a recriação verbal do escudo de Aquiles na Ilíada, um relato tão estupendo que é difícil não supor que Homero se viu competindo com o próprio criador do escudo, embora ele fosse um deus”. Nesse ensaio crítico sobre uma coletânea de John Updike, Just Looking, Danto aponta a apreensão de aspectos sutis e psicológicos constitutivos do sentido pela forma ou imagem mental que exorbitam qualquer explicação:
A descrição ecfrástica, afinal, é mais e menos do que uma caracterização crítica de obras de arte. Um relato crítico tornará salientes as características de uma obra que o crítico então explica com uma avaliação positiva do projeto artístico abordado. A crítica produz uma melhor compreensão da obra, enquanto a écfrase produz uma melhor compreensão do escritor e suas inquietações. Updike pode ser um crítico de arte muito bom, e alguns destes ensaios são exemplos maravilhosos de explicação crítica, mas são as preocupações psicológicas do romancista que conduzem o olhar de uma obra à outra numa exposição, até emergir uma compreensão profunda da arte.56
Muito embora Adorno se insira em um contexto muito diverso daquele de Danto, com a filiação deste à filosofia analítica da linguagem e à estética anglo-americana, envolvido com a vida cultural e artística da cidade de Nova York e as produções dessa arte desde a década de 1960, é conhecido o engajamento de Adorno com a arte experimental da vanguarda europeia, sobretudo sua intensa participação nos cursos de Darmstadt (1952-1966) e sua produção ensaística voltada à música desse período. Neste texto em questão, Adorno pretende redefinir o ensaio por antítese, confrontando a restrição da verdade à verdade científica, à objetividade, à lógica formal e linguagem predicativa que promovem a ciência positivista em detrimento da arte como negatividade inócua e falsa aparência. A pertinência de suas afirmações é relevante não apenas pela ênfase na forma como modo de apresentação de um conteúdo, numa relação ao objeto da arte distinta daquela ao objeto de conhecimento, mas pela defesa da dimensão propriamente estética da linguagem em que se fala sobre a arte, uma linguagem não indiferente à forma, mas corporificada em uma forma estética:
[...] a tendência geral positivista, que contrapõe rigidamente ao sujeito qualquer objeto possível como sendo um objeto de pesquisa [científica], não vai além da mera separação entre forma e conteúdo: como seria possível, afinal, falar do estético de modo não estético, sem qualquer proximidade com o objeto, e não sucumbir a vulgaridade intelectual nem desviar do próprio assunto?57
Adorno atribui ao positivismo científico e sua exigência de objetividade a postulação de uma linguagem discursiva que usurpa o espaço e legitimidade da especulação, do exercício digressivo, da livre associação e das linguagens expressivas que interessam ao ensaio. Mas, ao eliminar qualquer traço de subjetividade, inversamente, incorre na perda do objeto. “Para o instinto do purismo científico”, afirma Adorno, “qualquer impulso expressivo presente na exposição ameaça uma objetividade que afloraria após a eliminação do sujeito, colocando também em risco a própria integridade do objeto, que seria tanto mais sólida quanto menos contasse com o apoio da forma...”.58 Pelo contrário, a reivindicação de Adorno por uma forma da linguagem, em contraposição à indiferença do método, remete à estética como produtora de sentidos e melhor antídoto contra a generalidade ociosa e a falta de sentido dos sistemas.
A ambiciosa transcendência da linguagem para além do sentido acaba desembocando em um vazio de sentido, que facilmente pode ser capturado pelo mesmo positivismo. [...] Sob o jugo de tais desenvolvimentos, essa linguagem [do ensaio] aproxima-se do artesanato, enquanto o pesquisador conserva, em negativo, sua fidelidade à estética, sobretudo quando, em vez de degradar a linguagem a mera paráfrase de seus números, rebela-se contra a linguagem em geral.59
O ensaio passa a ser o lugar desse questionamento do racionalismo e do empirismo como um “método”, torna-se esse dispositivo crítico na medida em que se concentra no detalhe e amplia seu escopo à alteridade, levando em conta “a consciência da não-identidade, mesmo sem expressá-la”, abstendo-se da redução a um princípio para acentuar, no caráter fragmentário, “o parcial diante do total”.60 Adorno, assim, contrapõe o modo errático, experimental, do ensaio ao conceitualismo, às inferências da racionalidade científica e às regras do método que remontam ao essencialismo spinozista, para impugnar o dogmatismo dos princípios e a tautologia da abstração em favor do pensamento diverso do mutável e contingente. Advertindo que a ordem dos conceitos, sem lacunas, não equivale ao que existe, Adorno sublinha que o ensaio não pretende uma construção fechada, dedutiva ou indutiva, mas antes, trata de confrontar “a doutrina, desde Platão, segundo a qual o mutável e o efêmero não seriam dignos da filosofia; revolta-se contra essa antiga injustiça cometida contra o transitório, pela qual este é novamente condenado no conceito”.61
Longe de ser inconsistente ou desconexo, o ensaio se vale da diversidade e polissemia seguindo critérios lógicos de outro tipo, pressupostos pela ordenação do conjunto de suas frases, compondo de modo coerente. Antes, faz um desvio decisivo produzindo um pensamento distinto da lógica discursiva que se aproxima da “lógica musical”, não deriva de princípios nem infere de observações, mas coordena os elementos em vez de subordiná-los:
O ensaio não utiliza aqui equívocos por negligência, ou por desconhecer o veto cientificista que recai sobre eles, mas para recuperar aquilo que a crítica do equívoco, a mera distinção de significados, raramente alcançou [...] chama a atenção para uma unidade, ainda que oculta, presente na própria coisa [...].62
O mais fundamental no ensaio, por conseguinte, reside na relação recorrente à experiência do objeto, que sem abstrair completamente da existência restitui sentidos da história, a qual guarda uma coesão interna além dos acontecimentos, convertendo a memória ou “humanidade histórica” em matriz das sintaxes e formas da linguagem e das artes. É mediante essa relação hermenêutica com a experiência mediada pela história que pode dizer que “o ensaio confere à experiência tanta substância quanto a teoria tradicional às categorias – uma relação com toda a história”, na medida que a experiência individual é ela mesma já mediada pela “experiência mais abrangente da humanidade histórica”.63
Referências bibliográficas
ADORNO, T. “O ensaio como forma”. In: Notas de Literatura. Tradução e apresentação de Jorge de Almeida. São Paulo: Livraria duas cidades/Editora 34, 2003.
_____. Noten zur Literatur II. Frankfurt am Main, 1961.
_____. Äesthtische Theorie. Hrsg. von Gretel Adorno und Rolf Tiedemann. Frankfurt am Main 1970; 13. Auflage, 1995.
ALLEN, Graham. Intertextuality. Psychology Press, 2000.
HERWITZ, Daniel; KELLY, Michael (Ed.). Action, Art, History: Engagements with Arthur Danto New York: Columbia University Press, 2008.
DANTO, Arthur Coleman. Embodied Meanings. Critical Essays and Aesthetic Meditations. New York: Farrar, Straws and Giroux, 1994.
_____. “What MoMA done tole him”. The New York Times. October 15, 1989, Section 7, Page 12.
_____. After the End of Art: Contemporary Art and the Pale of History, 1997 (trad. Português) Após o Fim da Arte. São Paulo: Edusp-Odysseus, 2006).
_____. Beyond the Brillo Box: The Visual Arts in Post-Historical Perspective N.Y.C.: The Noonday Press, Farrar, Strauss and Giroux, 1993.
_____. Nietzsche as Philosopher. New York: Columbia University Press, 2005.
_____. The Abuse of Beauty. Chicago: Open Court, 2004.
_____. The Philosophical disenfranchisement of Art. New York: Columbia University Press, 1986.
_____. Unnatural Wonders. Essays from the Gap between Art and Life. N.Y.C.: Farrar, Strauss and Giroux, 2005.
_____. “The Pigeon within Us All: A Reply to Three Critics”. The Journal of Aesthetics and Art Criticism, Vol. 59, No. 1 (2001a), p. 39-44
ELKINS, James. What Happened to Art Criticism? Chicago: Prickly Paradigm Press, 2004.
FOSTER, Hal. The Anti-Aesthetic: Essays on Postmodern Culture. New Haven: The New Press, 2016.
FREELAND, Cynthia. “Book Review”. The Journal of Aesthetics and Art Criticism 67:2 Spring 2009, p. 245-7.
_____. “Danto and Art Criticism”. Contemporary Aesthetics, v. 6, 2008.
HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Aesthetics: Lectures on Fine Art. Tradução de T. M. Knox. Oxford: Oxford University Press, 1975.
KRISTEVA, Julia. “A palavra, o diálogo e o romance”. In: KRISTEVA, Julia. Introdução à Semanálise. São. Paulo: Editora Perspectiva, 1974.
LUKÁCS, Georg. “Sobre a essência e a forma do ensaio: uma carta a Leo Popper”. Tradução de Mario Luiz Frungillo. Revista UFG, Goiânia, v. 9, n. 4, 2017. Disponível em: https://revistas.ufg.br/revistaufg/article/view/48186.
STAROBINSKI, Jean. “É possível definir o ensaio?” Tradução de Bruna Torlay. Remate de Males. Campinas-SP, v. 31, n. 1-2, p. 13-24, jan./dez. 2011. Disponível em: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/remate/article/view/8636219. Acesso em: 17 jun. 2024.
UPDIKE, John. Just Looking, New York: Alfred A. Knop, 1989.