Introdução
A partir da década de 1990, especialmente com a publicação de Após o fim da arte, a expressão “significado incorporado” (embodied meaning) passou a ocupar um papel central na filosofia da arte de Arthur Danto. Ela representa, em forma de conceito, as duas condições necessárias apresentadas pelo pensador estadunidense para definir uma obra de arte: “ser uma obra de arte é ser (i) sobre algo e (ii) incorporar o seu significado”. Ou, conforme o idioma original, “to be a work of art is to be (i) about something and (ii) to embody its meaning”.1 Grosso modo, a fórmula designa que para algo (p.ex., um objeto) vir a ser arte, necessariamente deve dizer respeito a alguma coisa ou assunto, e ter essa significação incorporada. Designa, portanto, que obras de arte são significados incorporados.
Embora essa fórmula só tenha sido apresentada em Após o fim da arte, seus termos elementares estão presentes na obra de Danto desde A transfiguração do lugar-comum, de 1981, quando Danto destaca, entre as condições para definir algo como arte, os conceitos de aboutness (sobre-o-quê) e embodiment (incorporação). É a esses dois conceitos que os grifos em itálico, na formulação dos anos 1990, se referem. About (sobre) e embody its meaning (incorporar seu significado) são, respectivamente, referências a aboutness e embodiment, e a função desses dois conceitos no enunciado determina o significado da fórmula.
Cabe observar, contudo, que na Transfiguração esses dois conceitos não são apresentados como as únicas condições para definir uma obra de arte. Outras condições, como o estilo, a retórica elíptica, a interpretação e o contexto histórico circunstanciado das obras de arte estão ali muito bem demarcadas em suas funções, tendo sido posteriormente estruturadas em uma formulação por Noël Carroll, notadamente elogiada pelo próprio Danto.2
Ao apresentar uma formulação própria em Após o fim da arte, e adotar apenas duas entre as demais condições da arte na Transfiguração, Danto aparentemente estabelece uma contradição em relação a sua própria teoria, mas não é este o caso. Sua insistência em afirmar que a sua fórmula procura apresentar apenas as condições necessárias para definir uma obra de arte, e que isso não implica que outras condições não possam ser apresentadas, é, ao mesmo tempo, sintomática de uma cautela em apresentar uma fórmula da definição, mas, especialmente, um mecanismo para associar a sua definição ao veredito hegeliano de que no contexto do fim da arte a estética deveria ser substituída pela crítica de arte, cabendo a ela refletir apenas sobre o conteúdo e os meios de apresentação da obra de arte. É a partir dessa sentença de Hegel que Danto subtrai, em analogia associativa, a sua fórmula das condições necessárias para definir uma obra de arte como ser “sobre alguma coisa e incorporar seu significado”.3
Entretanto, se por um lado a formulação das obras de arte como significados incorporados intenciona dotar a teoria dantiana da arte de uma perspectiva hegeliana, isso não implica que a sua formulação não apresente um conjunto de problemas, seja no sentido de a fórmula, dada a sua cautela em apresentar apenas duas condições necessárias, ignorar muitas outras condições da arte apresentadas desde “O mundo da arte” e, especialmente, na Transifuguração, mas, principalmente, em razão de sua fórmula nos conduzir à reflexão – e crítica – se o seu conteúdo possibilita de fato definir o que é uma obra de arte e discerni-la de outras classes de objetos.
Tais observações são levantadas, dentre outros, por Robert Kudielka, ao observar que muitos objetos cotidianos também possuem significado e o incorporam, mas nem por isso são obras de arte, e Noël Carroll, cuja contundente crítica adverte que a fórmula dantiana (por ele considerada uma nova fórmula)4, ignoraria não apenas o conceito de atmosfera de teoria artística como, principalmente, não possibilitaria a Danto resolver a questão central de sua própria filosofia da arte, o problema dos indiscerníveis. Cito Kudielka:
Existem muitas formas dignas de apreciação, nas quais os significados podem ser incorporados, sem no entanto pretenderem apresentar um conteúdo. Pode-se dar um nó em um cachecol, mas com um significado particular e que diz respeito apenas a si mesmo; acender uma vela numa igreja católica é uma oferenda, e cujo significado permanece em segredo para quem a acende; e as crianças brincam com paus e pedras, o que para elas pode significar cavalos, lugares, ou mesmo pessoas [...]. Estes são apenas alguns exemplos de incorporações que são definitivamente sobre alguma coisa, mas ninguém as consideraria como obras de arte porque escondem ou ocultam o seu significado, ao invés de o revelarem ou o expressarem. Por outro lado, há muitas coisas que manifestam abertamente o seu conteúdo, sem nunca serem tratadas como obras de arte. Estes são, antes de mais nada, os objetos de uso cotidiano que apresentam o seu significado através da sua função, em graus de adequação claramente distinguíveis. Mas também há coisas significativas, que são menos óbvias porque não satisfazem uma necessidade nem servem um propósito. Um ramo de flores, por exemplo, transmite uma mensagem amplamente reconhecível. E, no entanto, tal coisa carece da qualidade de uma obra de arte, por mais satisfatória que seja esteticamente. O conceito de arte que Danto apresenta levanta, portanto, algumas questões críticas: será o termo “incorporação de significado” realmente específico o suficiente para distinguir entre obras de arte e outras manifestações significativas?5
Cito Noël Carroll:
Devo dizer que fiquei muito surpreso ao ler essa definição [...]. Danto sabe que suas condições, conjuntamente, não são suficientes. Mas eu me pergunto se ele percebe o quão distantes elas estão de alguns de seus temas mais importantes. A distinção entre obras de arte e coisas reais talvez seja o seu tema principal. É para ele a questão da filosofia da arte. Mas a sua nova e explícita definição da arte não consegue responder a essa questão. Danto exige de uma obra de arte que ela possua um conteúdo sobre o qual ela diz [aboutness] e o incorpore [embodiment]. Mas essas são apenas condições necessárias. Muitos objetos que não são obras de arte atenderão a essas condições [...]. Talvez o exemplo mais embaraçoso, nesse aspecto, sejam as verdadeiras caixas de Brillo, em oposição às de Warhol. As caixas de Brillo reais têm um tema – Brillo – sobre o qual a sua iconografia cuidadosamente escolhida comunica algo: que Brillo é limpo, brilhante, moderno e que está associado a frescura, dinamismo e vivacidade. Talvez seu esquema de cores, em vermelho, branco e azul, associem o produto a “limpeza americana” [...]. Porém, a nova definição da arte de Danto não fornece os meios filosóficos para diferenciar uma simples caixa de Brillo de uma de Warhol, falhando assim em responder ao que o próprio Danto acredita ser a questão central da filosofia da arte.6
As passagens de Kudielka e Carroll apresentam, em comum, uma crítica ao caráter deficitário da formulação de Danto. Não se trata, propriamente, de juízos contra o fato de o pensador de Ann Arbor ter apresentado apenas condições necessárias para definir uma obra de arte, mas, de tais condições não conseguirem delimitar a especificidade das obras de arte em relação a outras classes de objetos. É essa, portanto, a questão levantada por Kudielka, ao questionar se a incorporação de significado é um termo realmente específico para distinguir obras de arte e outras manifestações significativas, e de Carroll, de um modo mais específico ao problema dos indiscerníveis, ao considerar que a fórmula “ser sobre alguma coisa e incorporar o seu significado” não permite diferir uma obra de arte e um objeto comum, quando este último é resultante, por exemplo, de um trabalho de arte comercial (design gráfico).
Danto não ignorou esse tipo de observações críticas à sua formulação. E, apesar de não ter objetado diretamente o texto de Kudielka, suas considerações a respeito dos conceitos de representação, aboutness e embodiment, na Transfiguração, consideram em certa medida o problema. Por outro lado, em sua objeção direcionada à crítica de Carroll, desenvolvida especialmente no artigo “Art and Meaning”, Danto não sustenta seu argumento na própria fórmula por ele apresentada em Após o fim da arte, mas remete a solução do problema ao conceito de retórica, cujo papel, na Transfiguração, era o de uma das condições da arte.
Pretendo demonstrar, neste artigo, que os elementos retóricos presentes nas obras de arte não são apenas relevantes, mas elementares para a teoria da arte de Arthur Danto, estando esses elementos correlacionados com a sua definição de obra de arte – ainda que o próprio filósofo não tenha atribuído, em alguns de seus textos, o devido destaque a esse conceito.
1. Incorporação de significado, indiscernibilidade e a representação da arte
A passagem citada de Kudielka considera a existência de dois modos de incorporação de significado em objetos e situações, sem que sejam, propriamente, obras de arte. No primeiro, referente à apropriação dantiana do veredito de Hegel sobre o fim da arte, encontram-se os casos em que temos formas dignas de apreciação, dotadas de significados incorporados, sem que haja a pretensão de apresentarem um conteúdo. É a questão, por exemplo, do caráter simbólico subjacente ao ato de alguém que acende uma vela em uma igreja católica, e cuja significação representa um interesse particular dessa pessoa, ou dos conteúdos simbólicos das brincadeiras de crianças, por exemplo, ao interpretarem um cabo de vassoura como um cavalo, e cuja significação está delimitada ao contexto das brincadeiras infantis (e, obviamente, ao modo como as crianças representam e interpretam significados a partir de suas brincadeiras). No segundo, encontram-se os objetos de uso cotidiano, e cujos significados incorporados derivam da função para as quais esses objetos servem. Kudielka não oferece exemplos a esse respeito, mas poderíamos pensar, por exemplo, nos significados “objeto de corte” para uma faca, “calçar os pés” para um sapato ou um tênis, ou “embalar esponjas de aço da marca Brillo” para uma caixa de papelão para depósitos de supermercado da marca Brillo (Figura 1).
A passagem de Carroll, por outro lado, diz respeito a um domínio mais específico: a distinção entre arte (no sentido de belas artes) e arte comercial (por exemplo, design gráfico). Ao observar que as caixas de Brillo dos depósitos de supermercados (Figura 1) resultam de um trabalho de arte comercial, e que elas possuem uma autoria (James Harvey), um tema (a própria marca), e elementos iconográficos cuidadosamente elaborados para comunicar sobre o objeto que representa e comercializar a marca como um objeto de desejo para um determinado público (pois sua imagética e coloração límpida, brilhante e moderna pretende associar o produto Brillo à ideia de limpeza, mas também às cores da bandeira estadunidense, azul, vermelho e branco, interseccionando ao seu conteúdo, referenciado à função do produto, um estímulo para despertar no público uma sensação de pertencimento patriótico), o pensador novaiorquino traz à tona, ao mesmo tempo, o caráter criativo subjacente aos trabalhos de arte comercial, e, igualmente, que esse processo preenche as duas condições necessárias apresentadas pela fórmula de Danto para definir uma obra de arte: o design gráfico de uma caixa de Brillo comum é sobre alguma coisa, e incorpora o seu significado, seja para referenciar a marca do produto, mas também para torná-la atrativa.
Figura 1: Caixa de Brillo. Desenho comercial por James Harvey, 1963, papelão ondulado impresso, 43,1x43,1x35,5cm.
Figura 2: Andy Warhol, Brillo Box (Caixa de Brillo), 1964, acetato de polivinila e tinta serigráfica sobre compensado, 43,3x43,2x36,5cm.
A objeção carrolliana, contudo, não se delimita ao problema da distinção entre arte comercial e belas artes, mas ao fato de que, ao reconhecermos que o trabalho de Harvey para as caixas de Brillo preenche os requisitos da fórmula da definição da arte apresentada em Após o fim da arte, consequentemente a teoria dantiana se vê emparedada, e, ao mesmo tempo, em seu principal problema filosófico e em seu exemplo mais conhecido: a questão da indiscernibilidade entre obras de arte e objetos comuns, e o exemplo histórico desse acontecimento filosófico na arte, representado pela obra Brillo Box, de Andy Warhol (Figura 2), que, por ser um fac-símile das caixas de Brillo de Harvey, conduziu o pensador de Ann Arbor, em “O mundo da arte”, a interrogar pela essência da arte para além dos atributos perceptuais das obras de arte.7
Kudielka, ao compreender que a função dada a um objeto é, também, uma forma de representar significados e incorporá-los, levanta um primeiro problema para a fórmula de Danto, mas apenas se interpretarmos a sua fórmula em um sentido literal. As coisas que participam de nossas vidas no cotidiano não nos são dadas pelo acaso, mas são o resultado de um processo no qual agimos tanto em sentido físico, interferindo sobre as coisas, como de modo intelectivo, ao designarmos a elas uma função, que elas passam a significar e incorporar no uso que delas fazemos. Isso se aplica tanto aos artefatos manualmente ou industrialmente fabricados, para a construção de imóveis e espaços urbanísticos, ou, ainda, para os diferentes modos de intervenção seletiva na criação de animais e plantas, seja para fins agrícolas, pecuários ou para a domesticação afetiva. O problema dessa consideração crítica de Kudielka, entretanto, está no fato de ela delimitar a fórmula da definição de Danto ao papel de atribuir representação às coisas, no sentido de compreender que, para Danto, a essência da arte estaria na mera ação de atribuir e incorporar significados (em um sentido geral do termo). De fato, é essa a interpretação para a qual somos conduzidos em uma primeira leitura da formulação, já que ela diz que “ser uma obra de arte é ser (i) sobre algo e (ii) incorporar seu significado”. Entretanto, como observei anteriormente, os grifos em itálico nos termos “sobre” (about) e “incorporar seu significado” (embody its meaning) não podem ser adequadamente desvencilhados dos conceitos de aboutness e embodiment, que exercem uma importância basilar para uma interpretação adequada do enunciado. A teoria dantiana da arte não ignora a existência de diferentes modos de representar, e, embora o pensador de Ann Arbor compreenda a arte como um modo de representação, sua filosofia não limita a arte a essa função representativa e nem, tampouco, nega a outros domínios essa mesma perspectiva representacional. Cabe ressaltar, a esse respeito, que para Danto a representação é o problema central da filosofia, e não apenas da filosofia arte.8 Nesse sentido, representar não é, para o pensamento dantiano, uma peculiaridade artística, e o papel da filosofia da arte, consequentemente, é pensar o papel da representação na arte.
O primeiro ponto a se destacar é que a fórmula de Danto pressupõe uma ação. Em “ser uma obra de arte é ser (i) sobre alguma coisa, e (ii) incorporar seu significado”, temos pressuposta a presença de um agir e sua intencionalidade, qual seja: fazer com que algo passe a dizer sobre alguma coisa. E, por conseguinte, na segunda etapa do processo, a realização desse agir, sua consumação, que se dá pela incorporação do conteúdo que se pretende fazer ser dito no objeto, ou, em outras palavras, fazer que o objeto adquira o significado intencionado pela ação, que agora passa a ser a ele incorporado. Trata-se, deste modo, de um procedimento constitutivo. Isso designa, obviamente, que o objeto passa a ser dotado de uma complexidade para além daquilo que a sua materialidade antes figurava.
Aboutness e embodiment são os conceitos-chave da fórmula de Danto, e não o fato de sua fórmula implicar um caráter representacional, no sentido de obras de arte serem objetos que meramente dizem sobre algo. Deste modo, não é o “algo” (something) o termo que se deve ter, na interpretação da fórmula, como seu fundamento, mas o fato de esse algo ser derivado do aboutness, e vir a resultar em uma embodiment (incorporação), sendo os conceitos da fórmula imbricados e a interpretação do conteúdo formulado indissociável do seu processo e conceitos. Entretanto, o conceito de aboutness corresponde, para Danto, a um direcionamento simbólico da atribuição de significado, e isso implica um dado importante para uma adequada interpretação de sua fórmula da definição.
2. Sobre o sobre-o-quê (About aboutness)
No pensamento dantiano, o conceito de aboutness é elementar para responder à questão da distinção entre objetos reais e obras de arte, pois é por meio dele que o pensador de Ann Arbor demonstra que o conteúdo sobre o qual uma obra de arte versa é distinto daquele dos objetos comuns, tendo em vista que enquanto estes versam sobre conteúdos referenciais, as obras de arte projetam um conteúdo sobre aquilo a que se referem. Trata-se, nesse sentido, de uma retomada do conceito do “é da significação artística”, anteriormente abordado em “O mundo da arte” para designar o caráter simbólico das obras de arte, mas aplicado a uma função linguística no processo artístico enquanto atividade de atribuir um determinado tipo de significação para objetos (vide o primeiro postulado da fórmula dantiana da definição: “ser uma obra de arte é ser (i) sobre algo”). De acordo com Danto, na Transfiguração, a adoção desse conceito em sua filosofia é proveniente do emprego que ele possui no pensamento de John Langshaw Austin. Cito-o:
As coisas possuem, para com as representações, uma relação (ou um conjunto de relações) muito diferente da que mantem umas com as outras, assim como as palavras têm entre si relações muito distintas das que mantem com as coisas [...]. Minha tese é a de que todos os conceitos filosóficos, e somente eles, exigem uma análise de cada termo em relação à sua respectiva classe. Aqui não pretendo defender, ou mesmo sustentar, essa tese genérica, mas observar que noções semânticas podem ser estendidas, com as variações pertinentes, além da mera classe de palavras ou proposições [...]. Uma coisa é “real” quando pode dar lugar a uma representação de si mesma, assim como uma coisa é “portadora de nome” quando a ela atribuímos um nome. Austin expõe esse argumento com maestria na seguinte passagem: “Para que haja alguma comunicação, é necessário um acervo de símbolos de algum tipo (...) e podemos chamá-los de ‘palavras’ [...]. Deve haver também outra coisa diferente das palavras, comunicável por meio das palavras: essa coisa podemos chamar de ‘mundo’. Não há razão alguma para que o mundo não inclua as palavras, em todos os sentidos, exceto o sentido da própria declaração, que em qualquer ocasião particular está sendo feita sobre o mundo” (Philosophical Papers. Oxford University Press, 1970, p. 55). “Em todos os sentidos” obviamente implica: pode ter todas as propriedades possuídas por itens no mundo, exceto o sentido de que um diz respeito [about] ao outro, e o outro é aquilo acerca do que dizem respeito [about] – sendo esse ‘sobre-o-que’ [aboutness] a propriedade diferenciadora fundamental.9
Para Austin, não há algum tipo de isomorfismo ou semelhança estrutural entre a linguagem e a realidade (o que levaria a comunicação a superpovoar o mundo com entidades linguísticas), mas declarações que são diferentes em razão de diferentes utilizadores, e em diferentes condições de uso, de tal forma que em expressões como “suas palavras finais foram muito verdadeiras”, o sentido de “verdadeiro” reflete seu emprego por uma determinada pessoa em uma determinada ocasião, o que designa uma compreensão de mundo: uma afirmação sobre a qual dizemos ser verdadeira refere-se a uma parte do mundo que inclui a própria frase em que a afirmação é feita.10 Igualmente se dá o problema de entidades icônicas, como as fotografias ou mapas, por exemplo, que são portadoras de significado em um sentido semântico, mas não porque sejam sinais do mundo, e sim por serem representações referenciais dele. É sob essa perspectiva que a questão do aboutness, abordada por Danto, refere-se não propriamente a um sentido referencial, em que o dizer-sobre (about) remeteria a um vocabulário semântico direcionado às coisas reais, a partir de inferência, denotação ou exemplificação, mas, distintamente, reconhecendo outros tipos de veículos semânticos, como imagens, conceitos, gestos, crenças, sentimentos, ou representações pictóricas como pinturas, mapas, diagramas etc., em conformidade com o caráter intensional (e, portanto, conotativo e contextualmente circunstanciado) das declarações e suas intenções subjacentes. Desta forma, o aboutness não é apenas um dizer sobre algo, mas a propriedade diferenciadora das classes de objetos para as quais se aplicam as declarações.
A devida atenção a esse caráter do conceito de aboutness demonstra que para Danto esse conceito-chave de sua fórmula da definição é um termo para além de um uso prepositivo, e não pode ser reduzido ao mero domínio da implementação fortuita de conteúdos semânticos sobre objetos, pois designa igualmente um direcionamento a uma classe específica de significação, que é conotada ao pertencimento e vinculação a essa classe. É sob essa ótica, vale ressaltar, que o aboutness determina uma transfiguração do lugar-comum de um objeto, tornando o significado que ele incorpora não mais o de uma função referencial, mas de uma expressão circunstanciada a um “mundo”.
Essa peculiaridade do conceito de aboutness no pensamento de Danto, deste modo, demonstra que a crítica de Kudielka não se aplica, de forma adequada, à formulação apresentada em Após o fim da arte. “Ser uma obra de arte é ser (i) sobre algo” e “ser uma obra de arte é ser (i) sobre algo” não são, em sua totalidade, expressões isomórficas. Enquanto esta última permite considerar o conteúdo referencial dos artefatos como significados incorporados, tendo em vista que a presença de um conteúdo semântico aplicado a um objeto corresponde a ele dizer sobre algo, o grifo itálico em “sobre” (about), no primeiro postulado da fórmula de Danto, implica o reconhecimento de um contexto de significação, um ponto de vista circunstanciado por uma classe de objetos no qual esse aboutness exerce a sua função.
Jerrold Levinson demonstra, de uma forma que me parece bastante adequada, compreender essa complexidade inerente ao conceito dantiano de aboutness em seu poema filosófico trilíngue “About Aboutness: Poema Pazzo Pour Arturo”, presente no volume do periódico italiano Rivista di Estetica dedicado a Arthur Danto. Afirma Levinson, em uma passagem do poema trilíngue, e cujo título pode ser traduzido por Sobre o Sobre-o-quê: Poema louco para Arthur:
Porque Danto se perguntou, não
“Do que se trata?”, mas sim
“O que é sempre sobre alguma coisa?”
E a esta pergunta ele respondeu,
em parte, “A Arte”.
Mas outras coisas também dizem respeito a outras coisas.
Então o que há de especial
sobre o sobre-o-quê
da arte?
Pergunta difícil, sem dúvida.
Mas a resposta nos é dada pela própria
teoria da arte
de Danto,
Arthur.
Arte é sobre o que é sobre-o-quê
com estilo,
com expressividade
metaforicamente,
e retoricamente
Além disso, ela é sempre sobre a sua própria temática:
Arte é sempre, e em todo lugar,
um pouco sobre arte.11
A passagem acima é, como mencionei, apenas um recorte do poema de Levinson, mas me parece suficiente para abordarmos a complexidade inerente ao conceito dantiano de aboutness. Segundo as duas primeiras estrofes do poema, a questão em torno do referido conceito não versa sobre o significado prepositivo de “about”, no sentido em que o termo indica sobre aquilo que algo diz respeito, mas da tomada desse dizer-respeito-sobre-algo como a acepção do próprio conceito e sua função: “ser sobre-o-quê” é o conteúdo subjacente que define toda obra de arte. É nesse sentido que o aboutness, no problema da definição da arte, não se ocupa com aquilo acerca do que uma obra de arte versa, mas com o fato próprio de as obras de arte serem o que são por versarem sobre alguma coisa enquanto classe de objetos. Em outras palavras, a preocupação dantiana diz respeito à compreensão da arte enquanto um domínio de conhecimento cuja característica essencial consiste em seus objetos possuírem carga simbólica (serem sempre sobre alguma coisa, e, portanto, terem nesse sobre-o-quê de seu conteúdo semântico). É nesse sentido, portanto, que a questão da indiscernibilidade demonstra a sua razão de ser no âmbito filosófico da arte de Danto: à pergunta “diante de dois objetos perceptualmente indiscerníveis, o que torna possível que um seja arte e o outro permaneça sendo um mero objeto comum?”, está em jogo, ao mesmo tempo, o fato de uma obra de arte ser dotada de um conteúdo semântico que a difere de um objeto cotidiano (isto é, de ela possuir um about como propriedade diferenciadora), mas, igualmente, de que esse conteúdo semântico seja uma condição que a faça pertencente a uma classe específica de objetos, todos eles igualmente tendo por condição de pertencimento serem dotados dessa capacidade transfigurativa (aboutness), e, deste modo, de suas declarações possuírem uma significação cujo sentido esteja claro em seu domínio (ou mundo). O aboutness, deste modo, implica para o sentido da formulação de Danto um domínio de mundo, no sentido de que o processo de constitutividade da obra, e o significado incorporado que a obra de arte passa a designar, não dizem respeito à realidade dos objetos comuns, nos quais o significado é um referente da realidade (qual pensara a crítica de Kudielka), mas de um significado pertencente a um mundo próprio, em que o conteúdo semântico apresentado pelo objeto-obra-de-arte possui significado-contextual, e efetiva possibilidade de interpretação dentro daquele “mundo”.
As estrofes seguintes do recorte do poema de Levinson, entretanto, problematizam (tal qual a crítica de Carroll) o alcance do aboutness para enfrentar o problema da especificidade da arte: há outros domínios que também dizem respeito a outras coisas, então, o que haveria de especial no sobre-o-quê da arte? Não seria necessário ao seu conceito outras condições (presentes, por sinal, na própria teoria dantiana na Transfiguração), e que pudessem permitir a distinção entre o trabalho de arte comercial de James Harvey para as caixas de Brillo e as Brillo Boxes de Andy Warhol? Observarei, a seguir, que mesmo Danto, em sua objeção a Carroll, apesar de não reconhecer a necessidade de revisão de sua fórmula da definição, igualmente emprega um conceito fundamental abordado tanto por Carroll quanto por Levinson, qual seja, de retórica, para delimitar essa diferenciação entre obras de arte e trabalhos de arte comercial. Anteriormente, entretanto, esclarecerei o que Danto compreende por retórica, e o papel dos conceitos de elipse e metáfora em sua fundamentação.
3. Retórica como conteúdo entimemático, elíptico e metafórico
A compreensão dantiana da retórica advém da perspectiva desse conceito por Aristóteles, especialmente no que diz respeito à lógica do entimema e sua função no discurso. Para o filósofo grego, a retórica emprega três gêneros de discursos, o legislativo, o forense e o epidítico, e a sua natureza tem por objetivo cuidar não das verdades imutáveis da natureza (theoria), cujo papel é dado ao domínio da ciência, mas das verdades contingentes (phrónesis), que envolvem crenças e valores, a exemplo das definições de justiça, beleza ou utilidade, nas quais o que está em jogo não é a irrefutabilidade dos argumentos (isto é, de seus silogismos), mas a proposição de argumentos que versam sobre o convencimento para o que é aceitável, provável, verossímil. Trata-se, deste modo, de uma proposição em que é o discernimento dos meios de persuasão para cada questão o que está em questão. Aristóteles denomina entimema o correspondente retórico do silogismo, e o caracteriza como um raciocínio que, apesar de não possuir o mesmo grau de certeza apresentado pelo silogismo, cuja validade é necessária, busca todavia mostrar-se evidente e crível para o convencimento de seus interlocutores.12
Em sua leitura da retórica aristotélica, Danto destaca que o entimema é um tipo de silogismo truncado, ou, mais precisamente, um silogismo em que ocorre um tipo de elipse, que consiste na supressão, em um enunciado, de um termo que pode ser facilmente subentendido pelo contexto linguístico ou pela situação contextual. Na elipse retórica, um dos elementos do discurso, por exemplo, uma das premissas ou a sua conclusão, podem ser ocultados na sua formulação a fim de ao mesmo tempo direcionar o discurso para um determinado viés (isto é, demarcar um ponto de vista de quem realiza a declaração), e incitar o público, por meio desse recurso entimemático/elíptico, a uma determinada emoção que incita e engaja para o preenchimento interpretativo do significado daquele enunciado. Trata-se, deste modo, de conferir ao discurso retórico uma especificidade no trato de seus conteúdos, tendo em vista o caráter persuasivo da própria retórica e sua natureza, que tem por objeto a busca pelo convencimento, ou conduzir interlocutores a uma determinada espécie de emoção, atuação e interrelação entre quem formula e quem interage com um determinado discurso. Afirma Danto:
Para um retórico, não basta demonstrar que devemos sentir determinada emoção, ou que é legítimo senti-la e talvez injustificável não a sentir: o orador só prova sua competência se fizer você sentir essa emoção, ao invés de apenas dizer o que deve ser sentido. O orador precisa descobrir um meio de estimular as mentes e conduzir a plateia ao estado de espírito que ele pretende; pois, afinal, ele não está lidando com autômatos ou meros seres racionais [...]. O entimema produz um silogismo válido quando, além de satisfazer as condições normais da validade silogística, torna a linha faltante uma verdade óbvia ou tida como óbvia – algo que qualquer pessoa aceita sem esforço especial. Entretanto, o entimema faz mais do que demonstrar sua conclusão em face da verdade de suas premissas: envolve uma complexa interrelação entre quem o formula e quem o lê. Cabe a esse último preencher sozinho a lacuna que o primeiro deliberadamente deixou: ele precisa completar o que falta e tirar suas próprias conclusões [...]. O público do entimema deve participar do processo, ao invés de apenas obter informações codificadas como se fosse uma tábula rasa.13
Para Danto, deste modo, a retórica tem a função de induzir o público a tomar determinada atitude em relação ao assunto de um discurso, o que significa fazer com que as pessoas compreendam um conteúdo discursivo sob determinado ângulo. Não se trata de expor fatos, mas sugerir no trato do tema um modo de interpretação, interferindo na forma como um interlocutor recebe as informações. Diferentemente do que acontece em outras formas de discurso, a exemplo das práticas científicas, quando o interesse é de caráter descritivo, ou informar acerca dos fatos – e nos quais são os fatos que devem falar por si – a retórica tem por finalidade provocar atitudes, e é a essa classe de abordagem discursiva que Danto compreende – e delimita – o papel essencial da arte. É por essa razão que os conteúdos semânticos da arte não devem ser confundidos com formulações proposicionais ou referenciais, já que “talvez um dos principais serviços que a arte nos presta não seja tanto o de representar o mundo, mas o de apresentá-lo de modo a nos fazer percebê-lo de determinada maneira e perspectiva”.14
É nesse sentido que os conceitos de aboutness e embodiment representam, na formulação apresentada por Danto em Após o fim da arte, ao mesmo tempo ação e receptividade, estímulo e interação, atribuição de conteúdo semântico sobre o objeto e a incorporação de seu significado, e, por fim, interrelação entre o ato de atribuir significação e incorporá-la a um objeto e interpretação crítica acerca da adequabilidade da incorporação desse conteúdo semântico. Trata-se, deste modo, de uma prática específica e delimitada a uma concepção contextualizada de suas declarações, e cuja natureza pressupõe a ação e a intencionalidade de seus agentes, de forma que a retórica da obra está interseccionada com a expressão e o estilo nela manifestos por seu agente criador, com a manifestação expressiva de uma atitude sobre um determinado assunto contido na obra, e com a interação de quem interpreta esse modo específico de representação.
Deve-se observar, ademais, que para Danto esse exercício ramificado e interrelacional da arte é sustentado no processo característico que torna as elipses retóricas possíveis: as metáforas. Estas consistem em um tipo de tropo, uma figura de linguagem em que ocorre uma mudança de significado a partir da associação de ideias em caráter comparativo (uma descrição ou caracterização de a como b, mas mantendo a identidade de a), exemplificando o porquê do caráter simbólico das obras de arte. Cito Danto:
Uma escultura de Napoleão como imperador romano não se limita à sua representação em trajes arcaicos, com a indumentária que se crê terem sido usadas pelos imperadores romanos. O escultor, nesse caso, pretende fazer com que o espectador adote, em face do tema de sua obra (isto é, Napoleão), uma atitude apropriada aos mais prestigiados imperadores romanos, como Cesar ou Augusto. Aquela figura, vestida daquela maneira, é uma metáfora da dignidade, autoridade, grandiosidade, poder e primazia política. Toda descrição ou caracterização de a como b tem essa estrutura metafórica [...], como se tornasse imperioso ver a com os atributos de b (mas deixando implícito que a não é b) [...]. Faz parte da estrutura de uma transfiguração metafórica que o objeto da metáfora mantenha sua identidade o tempo todo, e seja como tal reconhecido. O que significa dizer que se trata mais de uma transfiguração do que de uma transformação. Napoleão não se converte em imperador romano: ele simplesmente porta os atributos daquele. A metáfora é o mais conhecido dos tropos retóricos, e para cada um deles é possível encontrar, com alguma criatividade, uma contrapartida na representação pictórica.15
Para Danto, deste modo, é por meio do processo de metaforização que a atribuição de significado sobre o objeto o transfigura de seu significado original (enquanto coisa real/referencial) para um tropo metafórico (no qual projeta um conteúdo sobre aquilo que representa): o seu significado enquanto obra de arte é consumado pela comparação associativa entre a identidade real do objeto e o seu “deslocamento” para um ponto de vista que o agente de sua autoria anseia nele incorporar. É por esta razão que os significados incorporados das obras de arte não se apresentam de forma clara à interpretação, mas de modo obtuso, entimemático, tornando o ato de interpretar um exercício que exige participação no contexto da prática artística. Como bem observa Noël Carroll, “as obras de arte não são apenas sobre alguma coisa; elas projetam algum conteúdo sobre o que quer que sejam”, de forma que “enquanto as meras representações aspiram à transparência, as obras de arte expressam atitudes em relação a tudo o que representam. São referencialmente opacas, encasuladas, por assim dizer, nas atitudes intencionadas pelos artistas”.16
Figura 3: Roy Lichtenstein, Retrato de Madame Cézanne, 1962, acrílica magna sobre tela, 170x140cm
Figura 4: Erle Loran, Diagrama para o Retrato de Madame Cézanne, de Paul Cézanne, prancha XVII (LORAN, 1943, p. 85).
Danto apresenta, na Transfiguração, um exemplo bastante ilustrativo para diferir o caráter referencial e o caráter retórico dos significados, ao refletir em sua filosofia a polêmica entre a obra Retrato de Madame Cézanne, de Roy Lichtenstein, de 1962, (Figura 3), e o diagrama para o Retrato de Madame Cézanne, apresentado pelo pintor e historiador da arte estadunidense Erle Loran, em seu livro de estudos da questão da forma na obra de Paul Cézanne, intitulado Cézanne’s Composition, publicado em 1943 (Figura 4).
A querela entre Lichtenstein e Loran advém de motivos óbvios: a pintura do artista pop, apesar de sua diferença de dimensão e de recursos técnicos, reproduz o conteúdo imagético do diagrama apresentado pelo estudo de Loran, cujo livro, aliás, era bastante conceituado na comunidade acadêmica à época. A atitude da obra de Lichtenstein gerou uma forte contrariedade por parte do historiador da arte, que passou a acusá-lo de ter plagiado e se beneficiar financeiramente de uma criação artística alheia, ao que Lichtenstein replicou que a sua obra não se tratava de uma imitação daquele diagrama, não consistindo, deste modo, em um plágio, mas o manifesto de uma declaração irônica por meio de sua pintura, oriunda de seu espanto com a tentativa de Loran ao isolar a mulher da obra de Cézanne fora do contexto da pintura e reduzi-la à simplificação de um gráfico esquemático.17
O que interessa a Danto, nessa seara da contenda Loran-Lichtenstein, diz respeito ao problema da indiscernibilidade perceptual e das distinções dos conteúdos de significado nas duas representações. Para o pensador de Ann Arbor, é óbvio que as duas obras são perceptualmente indiscerníveis, mas entre elas não há um problema entre arte verdadeira e arte falsa, mas uma distinção entre arte e realidade, já que, apesar do diagrama de Loran ser um desenho, seu conteúdo semântico não implica que ele seja uma obra de arte. Danto destaca, em sua análise do diagrama de Loran, o limite referencial de seu conteúdo, por servir apenas a um caráter instrutivo e explicativo da obra de Cézanne, e observa que, ainda que se possa considerar que as declarações do estudo do pintor e historiador possam ser esteticamente questionáveis, a natureza do que ele declara refere-se ao próprio conteúdo da realidade do objeto representacional que o diagrama, e sua função ilustrativa para enunciados descritivos, representa. Afirma Danto:
A ilustração [de Loran] contém tudo aquilo que se espera de um diagrama: setas, linhas pontilhadas, áreas legendadas. E apresenta de forma precisa as variações na direção e proporção do que Loran pretende explicar [...]. O diagrama, de modo impressivo, tem a função de mapear os movimentos dos olhos que o Retrato de madame Cézanne [de Paul Cézanne] suscita no observador, e realiza essa função ao representar graficamente os movimentos do olho absorto. Um diagrama pode ser verdadeiro ou falso, e para dirimir a dúvida nós o submetemos a testes. A fim de cumprir a sua função, o diagrama deve ser claro e simples, até mesmo belo – isto é, possuir certas propriedades estéticas – sem ser, contudo, uma obra de arte. Não se espera, ao menos, que a forma diagramática seja usada retoricamente. A única finalidade do seu discurso é informar um público específico acerca de certos fatos [...] sem haver a necessidade de qualquer intervenção do orador ou do escritor, que permitem aos fatos falarem por si. Não há, neste caso, a necessidade de nenhuma ‘arte’ além das habilidades cognitivas e discursivas da comunicação ordinária a fim de produzir essa atitude [...] Apesar da diferença de escala e substância, o quadro de Lichtenstein é visualmente tão indiscernível do diagrama de Loran quanto poderiam ser as fotografias de ambos, o que levou Loran a processar Lichtenstein por plágio. Entretanto, sabia-se que naquele período de sua carreira Lichtenstein ‘plagiou’ de tudo: a imagem de uma banhista tirada de um anúncio, Picassos, e uma série de objetos ordinários [...]. Essa questão, todavia, não nos interessa no aspecto ético, e sim pela questão filosófica que ela suscita, e que diz respeito à diferença entre o diagrama de uma obra de arte e uma obra de arte [...]. O diagrama de Loran é sobre uma pintura específica, e diz respeito aos seus volumes e vetores. A pintura de Lichtenstein, por outro lado, é sobre a maneira como Cézanne pintou a sua mulher: é sobre ela, da maneira como Cézanne a viu. É bastante curioso que Cézanne via o mundo sob a forma de áreas legendadas, setas, retângulos e linhas pontilhadas [...] e não por acaso, tempos depois das especulações de Cézanne, os cubistas pintarem o mundo em termos semelhantes. Mas foi um notável achado [de Lichtenstein] aplicar essa visão geometrizante da esposa de Cézanne e tratá-la como um problema euclidiano! [...]. Já o diagrama de Loran, não é uma obra de arte, mas somente e afinal o diagrama de uma pintura. A questão do plágio é inconsequente, pois os objetos dos dois trabalhos pertencem a categorias distintas, embora se possa admitir que ambos sejam veículos de representação.18
A passagem do texto de Danto, acima, pode conduzir a uma polêmica em torno da sua interpretação da retórica do quadro de Lichtenstein. Teria o artista pop, de fato, a intenção de problematizar apenas a tendência à redução geométrica por Cézanne, mas não, em conformidade com o próprio Lichtenstein, a redução diagramática do estudo de Loran? Não seria mais apropriado afirmar que a retórica da pintura de Lichtenstein versa sobre o problema da redução formal ansiada pela pintura de Cézanne, e da qual o estudo diagramático de Loran seria a melhor representação? Muitos me parecem ser os apontamentos críticos possíveis a esse respeito, mas cabe observar que Danto não ignora que a obra de Lichtenstein realizou, em sua pintura, um uso retórico do diagrama de Loran, e que para o pensador de Ann Arbor a obra do artista almeja apresentar – e induzir – o público a tomar uma determinada atitude em relação ao assunto do qual a sua própria obra versa (qual seja, o Retrato de Madame Cézanne, de Paul Cézanne), a partir do objeto (o diagrama de Loran da pintura de Cézanne) que lhe serve como tema.19 Nesse sentido, como bem enfatiza o próprio Danto, a distinção que caracteriza a representação de Lichtenstein (como obra de arte) e a representação de Loran (como diagrama) não é só uma diferença de conteúdo, mas o fato de a pintura do artista pop ser uma metáfora (isto é, um tropo retórico) sobre a radicalidade da forma geométrica na obra de Cézanne.
4. Incorporação do significado como especificidade da retórica da arte
A abordagem dantiana da distinção dos tipos de conteúdo semântico em imagens perceptualmente idênticas, no embate entre Loran e Lichtenstein, demonstra que a diferença entre conteúdo referencial e conteúdo retórico responde ao problema da indiscernibilidade entre objetos comuns e obras de arte, quando os primeiros estão, obviamente, delimitados a um significado descritivo/explicativo, e os segundos a uma significação retórica. Sob esse aspecto, o conceito de retórica está em plena consonância com o emprego do aboutness na fórmula dantiana apresentada em Após o fim da arte, seja por compreender a existência de diferentes modos de discursos e determinar, por meio de seu emprego, que tais discursos condicionam suas significações aos seus contextos de mundo. Observarei, agora, que essa consonância se revela problemática diante da crítica de Carroll, quando temos na caixa de Brillo de Harvey e na Brillo Box de Warhol dois objetos igualmente portadores de conteúdo simbólico, mas pertencentes a diferentes classes de objetos. Sob esse aspecto, a falta da retórica como um conceito complementar ao conceito de incorporação de significado, na fórmula de Danto, torna sua definição de obra de arte “ser (i) sobre algo e (ii) incorporar seu significado” imprecisa.
Em “Art and Meaning”, artigo presente no volume Theories of Art Today, organizado por Noël Carroll, Danto se propõe a responder às principais objeções de sua fórmula da definição, ocupando a crítica carrolliana um papel de destaque. Danto reconhece a importância desse juízo, e afirma que a análise de Carroll consiste em uma objeção imediata ao conteúdo de sua fórmula, já que exige que a sua definição ou aceite que as caixas de Brillo dos supermercados sejam também obras de arte, ou que a sua formulação reconheça a necessidade de demarcar uma linha entre a arte comercial e a arte propriamente dita.20 Entretanto, o passo seguinte da réplica de Danto antes reforça essa perspectiva crítica à sua formulação do que, propriamente, apresenta à questão de Carroll uma objeção consistente: ao defender o conteúdo da sua fórmula da definição, Danto o faz por meio do emprego de seu conceito de retórica, demonstrando que as especificidades dessa condição delimitam os diferentes tipos de conteúdo (e, portanto, de contexto) das Brillo de Harvey e de Warhol, mas também entre a obra de Warhol em relação a outra obra pertencente à sua mesma classe de objetos. Revela, assim, que o conceito de retórica também exerce um papel elementar para a interpretação de objetos vinculados em uma mesma classe e contexto interpretativo, e, obviamente, que não pode ser um conceito ignorado por sua fórmula da definição da arte.
Danto dá início à sua abordagem do embate entre as Brillo de Harvey e as Brillo de Warhol observando que um dos elementos interessantes do design da caixa original é o fato de seu autor, James Harvey, ter sido um artista plástico ligado ao movimento expressionista abstrato, cujas necessidades financeiras obrigaram ao trabalho em arte comercial. Para o pensador de Ann Arbor, ter sido feita por um artista plástico, obviamente, não pode ser empregado como um argumento legítimo para conferir a esse trabalho um estatuto de obra de arte, já que ,embora tenha sido um feito de um artista, não o foi enquanto artista e com a função de ser uma obra de arte. Entretanto, é a questão do conteúdo semântico da caixa de Harvey que interessa a Danto, e a esse respeito ele observa:
A caixa de Brillo [de Harvey] não é meramente um recipiente para armazenar peças de Brillo: é uma celebração visual de Brillo. A caixa é decorada com duas zonas onduladas vermelhas, separadas por uma branca, com letras azuis e vermelhas. Vermelho, branco e azul são as cores do patriotismo [estadunidense], assim como a forma ondulada é propriedade da água e das bandeiras. Isso conecta limpeza e dever, e transforma a lateral da caixa em uma bandeira de saneamento patriótico. Harvey confere duas razões interligadas para o uso de Brillo, cujo nome está impresso em letras proclamatórias B-R-I-L-L-O, sendo as consoantes em azul, e as vogais (‘i’ e ‘o’) em vermelho. A palavra, em si, é um artifício humorístico, ‘Eu brilho!’ – e que possui um duplo sentido, um dos quais é consistente com a condição de incorporação de significado. A palavra Brillo transmite uma excitação, que se manifesta em várias outras palavras, nas quais as expressões idiomáticas da publicidade são distribuídas nas superfícies da caixa, da mesma forma que as expressões idiomáticas da revolução ou do protesto são corajosamente estampadas em faixas e cartazes carregados pelos grevistas. As esponjas são GIGANTES. O produto é NOVO. RELUZ RAPIDAMENTE O ALUMÍNIO. A embalagem transmite entusiasmo, até mesmo êxtase, e é, à sua maneira, uma obra-prima de retórica visual, destinada a levar as mentes ao ato de compra e depois ao uso [do produto]. E a sua maravilhosa faixa branca, como um rio de pureza, tem origem na história da arte, na abstração contundente de Ellsworth Kelly e Leon Polk Smith [...]. Harvey merecia um prémio, e Warhol, que ganhou diversos prêmios como um dos principais artistas comerciais de Nova Iorque [antes de se tornar artista plástico], teria sido o primeiro a apreciar o seu valor.21
A interpretação dantiana da caixa de Brillo, de James Harvey, é relevante por dois motivos: primeiro, por reconhecer que se trata de um objeto igualmente dotado de aboutness e embodiment, tal qual uma Brillo Box, de Andy Warhol. O segundo ponto, mais determinante para o trato do problema dos indiscerníveis, é que esse conteúdo sobre o qual a obra diz respeito é, tal qual a obra de Warhol, dotado de retórica, pois “a embalagem é, à sua maneira, uma obra-prima de retórica visual, destinada a levar as mentes ao ato de compra e depois ao uso [do produto]”. Trata-se de uma distinção em relação a outras classes de objetos, portanto, pois apesar de a caixa de Harvey possuir, por um lado, atributos de significação referencial, tal como em um diagrama, cujo significado é exemplificar, imageticamente, um conteúdo descritivo, por outro lado trata-se de uma representação igualmente portadora de conteúdo retórico. Entretanto, há aqui um detalhe: o conteúdo retórico da Brillo de Harvey é uma retórica visual. Esse dado nos conduz, novamente, ao conteúdo da fórmula de Danto, especialmente para a peculiaridade característica do seu conceito de incorporação (embodiment).
Um dos elementos basilares da filosofia da arte de Danto, e que ele volta a enfatizar em “Art and Meaning”, é o que o problema dos indiscerníveis revela: “que aquilo que torna algo artístico não é algo que se vê”.22 Com essa sentença, o pensador de Ann Arbor pretende demonstrar que a questão da indiscernibilidade não é relevante apenas por aquilo que ela apresenta enquanto incógnita, mas também enquanto desfecho e método, pois “é importante, para o trato do problema, que em todos os aspectos relevantes os objetos sejam inteiramente semelhantes”.23 A constatação de que é plausível considerar, diante de dois objetos perceptualmente iguais, a existência de dois conteúdos distintos, determina, no pensamento dantiano, a libertação da análise filosófica da arte de seus elementos materiais e perceptivos (notadamente, tidos como elementares para a maior parte das teorias artísticas), ao considerar que objetos portadores de conteúdo representacional são, igualmente – e em sua essência – portadores de conteúdo semântico.
Nesse sentido, cabe observar que a segunda condição apresentada pela fórmula de Danto, qual seja, “(ii) incorporar seu significado” (ou embodiment), não corresponde, propriamente, a unir o significado à forma do objeto, mas, tão somente, incorporar seu significado ao objeto. No domínio da arte, para Danto, a incorporação de significado não corresponde a dotar os elementos pictóricos de uma carga semântica (isto é, de uma retórica visual), o que consistiria, de algum modo, em tornar a sua filosofia uma versão da teoria da arte como forma significante. O seu conceito de embodiment, diferentemente, tem por finalidade apenas inserir o processo constitutivo da obra de arte no domínio retórico de sua classe de objetos (que é apenas de significados incorporados) por meio daquilo que o objeto pode representar.
O fato de a Brillo de Harvey ser dotada de uma retórica visual não significa para Danto, portanto, um problema para a sua teoria: é o fato de ela ser visual (ainda que retórica) o elemento distintivo que estabelece uma linha entre a arte comercial da Brillo de Harvey e a Brillo Box, de Warhol, já que, embora a obra warholiana seja um fac-símile da peça de Harvey, sua retórica não está vinculada ao seu conteúdo visual. Afirma Danto:
O que Harvey nunca teria pensado, é que poderia ter feito arte [belas-artes] ao invés de arte comercial. Em parte, suponho porque a arte, segundo os seus critérios, teria sido as pinturas de Pollock, de Kooning, Rothko, e, talvez Kline, que ele admirava. Então, o que Warhol fez foi criar algo visualmente parecido com a sua peça, mas que fosse uma obra de arte [...]. A arte comercial era, de alguma forma, o tema [about] da arte de Warhol. Ele tinha uma visão do mundo comum como esteticamente belo, e admirava muito as coisas que Harvey e seus heróis teriam ignorado ou condenado [como arte]. Ele amava a superficialidade da vida cotidiana, o valor nutritivo e a previsibilidade dos produtos enlatados, a poética do lugar-comum. Afinal, a Brillo Box foi apenas uma das caixas [comerciais] das quais ele se apropriou para a sua primeira exposição na Stable Gallery, todas elas com a sua retórica, mas nenhuma delas teve tanto sucesso quanto as Brillo Boxes [...]. As caixas de Warhol foram uma reação ao Expressionismo Abstrato, mas, principalmente, uma homenagem àquilo o que o Expressionismo Abstrato desprezava. Isso faz parte da crítica de arte [que é a retórica] da Brillo Box [de Warhol], de tal forma que a explicação da retórica de Warhol não tem qualquer relação imediata com a das caixas de Brillo [de Harvey]24.
Temos, portanto, que, enquanto a retórica da arte comercial de Harvey consiste em uma celebração visual da marca Brillo, e com o objetivo de convencer um público consumidor a adquirir o produto e dele fazer uso, a retórica da obra de Warhol é, igualmente, um conteúdo semântico, mas direcionado ao debate estético em que sua obra se insere, e para um público que compreende – e faz uso, inclusive crítico – dessa retórica-de-significados, seja pelo fato de ela manifestar um ponto de vista, mas também por fazê-lo de forma elíptica, exigindo ao público atuar, de modo complementar, em sua interpretação. Conforme o texto de Danto, ser a Brillo Box de Warhol, um objeto que representa um conteúdo semântico retoricamente formulado, é o ponto de partida para discerni-lo de outras classes de objetos comuns (sejam eles dotados de aboutness, embodiment, ou mesmo de retórica visual), apresentando-se assim a sua resposta ao problema dos indiscerníveis.
É nesse contexto, contudo, que observo o caráter elementar da retórica, em sua função indissociável dos conceitos de aboutness e embodiment, na fórmula dantiana da definição. Isto porque, apesar de o conceito de aboutness indicar um pertencimento contextual dos significados de uma dada classe de objetos (o que implicaria reconhecer, portanto, um uso simbólico de seus significados), é o conceito de retórica que garante a essa classe de objetos singularizar o tipo de significação de sua classe de objetos. Pois, no trato dantiano da arte, temos subjacente aos conceitos de aboutness e embodiment não apenas conteúdos simbólicos de significado, mas conteúdos-retóricos-de-significados-incorporados, compreendendo o papel da retórica-dos-significados como o de garantir a constitutividade e especificidade do território (contextual e circunstanciado) das obras de arte e seus discursos.
A questão retórica da arte é, ainda, elementar em um outro aspecto: o de vinculação dos discursos das diferentes obras de arte enquanto pertencentes à mesma classe de objetos. Danto decide, em “Art and Meaning”, ampliar o problema dos indiscerníveis para uma outra situação, que não diz respeito mais à distinção entre arte e realidade, mas entre obras de arte perceptualmente indiscerníveis, revelando que a incorporação de significado (retórico) também manifesta a importância de seu conceito no contexto circunstanciado das obras de arte. Não se trata mais, neste caso, do problema filosófico da definição, mas da vinculação retórica (de caráter dialético-histórico) existente entre diferentes obras de arte como pertencentes a uma mesma classe de objetos, ainda que perceptualmente indiscerníveis entre si. Esta é a razão de o pensador acrescentar, em sua réplica a Carroll, a obra Not Warhol (Brillo Box, 1964), de Mike Bidlo (Figura 5), cujos elementos perceptuais não diferem da Brillo Box, de Warhol, ou da caixa de Brillo, de James Harvey.
Figura 5: Mike Bidlo, Not Warhol (Brillo Box, 1964), 2005, tinta serigráfica e tinta artesanal caseira sobre compensado, 43,2x43,2x35,6cm.
A inserção dessa obra de Bidlo, em “Art and Meaning”, não é acidental. Ela ressalta, no contexto da argumentação de Danto, que a diferença entre obras de arte e objetos comuns, como os exemplos das Brillo de Harvey e de Warhol supracitados, não é, propriamente, o da diferença de suas retóricas, mas, precisamente, de serem tipos de retóricas distintas. Em outras palavras, nos leva a compreender que não é apenas pela diferença de seus conteúdos incorporados em seus significados, mas por se tratarem de categorias distintas de significação, que tais objetos passam a representar diferentes classes de objetos. O que implica, obviamente, existirem retóricas diferentes, mas vinculadas, dentro de uma mesma classe de objetos. Ademais, o acréscimo da obra de Bidlo demonstra o quão amplo é o espectro de significações que os conteúdos semânticos das obras de arte podem ter, ainda que suas incorporações sejam feitas em objetos perceptualmente indiscerníveis. Isso não poderia ocorrer com a retórica visual da arte comercial, já que um trabalho como a Brillo de Harvey, por exemplo, não poderia ser utilizado em outro produto. Neste caso, não só haveria a ocorrência de um plágio, como não faria qualquer sentido a sua ação, dado que o emprego da retórica visual de Harvey para as caixas de Brillo, se igualmente empregada para outro produto, não teria qualquer efetividade para cumprir a finalidade para a qual serve, já que uma condição necessária para um trabalho publicitário é que ele represente (seja em sentido referencial ou retórico) a marca para a qual se destina, e não uma outra.
Diferentemente do que ocorreria com a arte comercial, Danto não vê como um problema que a obra Not Warhol (Brillo Box, 1964), de Mike Bidlo, seja perceptualmente indiscernível do trabalho de Warhol. Suas retóricas são distintas em matéria de conteúdo semântico, mas vinculadas a uma mesma classe de objetos, pelo fato de serem conteúdos semânticos retoricamente formulados e específicos à classe dos objetos-obras-de-arte. Interpretar os seus conteúdos distintos, nesse sentido, é uma tarefa própria à crítica de arte, e não para o problema teórico da definição.
Mike Bidlo é um artista conceitual estadunidense, e cuja série de exposições e obras intituladas Masterpieces (Obras-primas), realizadas a partir de 1985, constituem seus trabalhos mais característicos e emblemáticos, e consistem em reinvenções e recriações, muitas vezes artesanais, de obras icônicas da arte moderna e contemporânea, mas designadas por títulos que lhes negam a propriedade autoral a elas referentes. Suas séries Not Andy Warhol’s Factory, Not Franz Kline and Not Man Ray, Not Brancusi, Not Fernand Léger, Not Duchamp, Not Picasso, Not Pollock, dentre outras, reinventam ou recriam as obras de Warhol, Kline, Ray, Brancusi, Léger, Duchamp, Picasso e Pollock, por vezes de forma fidedigna aos elementos perceptuais originais, como em Not Warhol (Brillo Boxes, 1964), ou, em outros casos, introduzindo variações, como em Not Duchamp (Fountain), na qual o mictório de Bidlo é feito à mão, em porcelana, logo em seguida quebrado, e, por fim, fundido em bronze sólido em conformidade com os cacos, mas reconstruindo a forma do mictório.
Not Warhol (Brillo Box, 1964) emprega, tal qual a Brillo Box de Warhol, a técnica serigráfica, mas também faz uso de interferências com tinta caseira. De acordo com Danto, que a obra Not Warhol (Brillo Box, 1964), perceptualmente, se pareça tanto com a caixa de Harvey quanto com a de Warhol, não implica que a retórica do trabalho de Bidlo seja, em qualquer medida, sobre Harvey: “são sobre Warhol, e não sobre Harvey, e é sobre o que Warhol fez, sem nenhum interesse especial adicional em saber por que ele o fez”. O mesmo se aplica, para Danto, ao fato de que, tal qual Andy Warhol, que realizou uma versão plural da Brillo Box dispondo suas unidades tal como em um depósito de supermercado, igualmente Mike Bidlo realizou diversas cópias de sua peça, intitulando-a no plural: Not Warhol (Brillo Boxes, 1964). Trata-se, para o pensador de Ann Arbor, de um elemento igualmente constitutivo do trabalho de Bidlo, no sentido de que “é fundamental para o projeto do artista que o número e a disposição de suas caixas sejam conectadas com o número e a disposição das caixas de Warhol”, muito embora o número de caixas, na obra de Warhol, provavelmente “tenha sido acidental, e o arranjo uma questão de diferença”, sendo “a obra de Bidlo, de certa forma, uma instalação, enquanto a de Warhol apenas uma série de obras de arte”.25 O exemplo da obra de Bidlo em relação à de Warhol, deste modo, demonstra o caráter vinculado de suas retóricas como pertencentes a uma mesma classe de objetos, e cujos conteúdos dialogam entre si, sem contudo dialogarem com a retórica visual da obra de Harvey.
Ao analisarmos a objeção de Danto à crítica de Carroll, deste modo, compreendemos que o conceito de retórica é igualmente elementar, na mesma medida do conceito de significados incorporados, à sua fórmula da definição. É a retórica que confere, ao texto da fórmula, a especificidade dos tipos de conteúdo dos significados incorporados, de tal modo que, parafraseando o poema de Levinson, concluímos a partir do próprio texto de Danto que “a arte é sobre o que é sobre-o-quê retoricamente”. Igualmente, somos levados não apenas ao juízo da importância da retórica em sua definição da arte, mas também para a importância que esse conceito ocupa para a abordagem crítica e histórica na teoria dantiana da arte, dado que a vinculação retórica da arte também assenta todo um horizonte interpretativo e circunstanciado pelas diferentes obras de arte. Que a fórmula dantiana da definição esteja correta em pensar a essência da arte como significados-retóricos-incorporados, por sua vez, é o que menos importa. O fato crucial é que a sua teoria, especialmente se refletida a partir do papel que o conceito de retórica exerce para a sua fórmula da definição, e, igualmente, para uma compreensão crítica e histórica da arte, inaugura todo um paradigma para o exercício de criação e interpretação da natureza, função e possibilidades da arte.
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