Diz-nos Víctor Erice1 que Cerrar los ojos (2023) trata de duas personagens: uma delas carrega todo o fardo da memória e, à outra, o destino concedeu-lhe a graça de não saber quem é, nem quem foi. Para além da tensão dialéctica posta em movimento por estas duas personagens que funcionam como duplo uma da outra, personificando os conceitos da memória e do esquecimento, a Erice interessou, particularmente, sublinhar algo de que habitualmente não se fala tanto quando se tem em vista o tema da memória – a consciência.
Numa das primeiras imagens, na cena de abertura, de um filme ficcional inacabado (La mirada del adiós, rodado em 1990) dentro do filme (Cerrar los ojos, 2023), vemos uma estátua de Janus, o deus romano de duas faces. Tem uma face virada para o passado e outra virada para o futuro. Janus é o deus dos começos, dos fins, da passagem do tempo e das passagens entre tempos.
Julio Arenas, actor reconhecido, e Miguel Garay, realizador, são amigos de juventude. Nos anos 1990, durante as rodagens de La mirada del adiós, realizado por Miguel, Julio desapareceu sem deixar rasto e o filme ficou inacabado. Passaram-se mais de vinte anos. Miguel, que saiu de Madrid e foi viver numa aldeia piscatória junto ao mar, é contactado por um canal de televisão para participar num episódio de um programa que pretende recuperar a história do desaparecimento do seu amigo: O caso do actor desaparecido. Miguel aceita o convite, mais por necessidade financeira do que por vontade de partilhar as suas memórias sobre o sucedido, acabando por se confrontar com os escombros de um tempo perdido, revendo as únicas duas cenas do seu filme inacabado, encontrando um antigo amigo (Max), a filha de Julio (Ana) e um amor perdido (Lola), bem como remexendo em vários objectos, restos da produção do seu filme e da sua vida passada, arrumados num armazém. Terminadas as gravações do programa, o acaso leva-o a encontrar, numa feira, o exemplar de um livro que escrevera no passado, com uma dedicatória para Lola. Decide procurar o seu contacto numa velha agenda e encontra-se com ela. Durante este encontro, aquilo que até àquele momento nos fora contado sob a forma de um enigma começa a ser-nos apresentado com os contornos de um mistério.
A tese oficial do programa sensacionalista de televisão é a de que Julio Arenas terá morrido junto a uma falésia, pois ali foram encontrados os seus sapatos, mas não se encontrou o seu corpo. O objectivo do programa de televisão é o lançamento de um enigma. Pelo contrário, o problema do filme não é a resolução de um enigma, mas a apresentação de um mistério que, segundo Erice2, não cabe ao filme responder. O mistério é muito diferente do enigma, pois é qualquer coisa que não é susceptível de ser revelada sob nenhuma espécie de compreensão narrativa dos factos e que é, por natureza, irresolúvel. Um mistério não pode resolver-se, mas pode apresentar-se, e o início da apresentação deste mistério começa quando Miguel conta a Lola a cena por si imaginada da noite em que Julio desapareceu. Nela, Julio está sentado à beira de uma falésia, com o mar em abismo e uma chuva torrencial. O rosto de Julio parece tomado por alguma revelação, uma saída. Descalça os sapatos, coloca-os à beira da falésia, e afasta-se. Encontra uma baliza de futebol e fita, na posição de guarda-redes, o seu destino.
Miguel volta, como um cowboy depois do dever cumprido, para a sua humilde casa, à beira mar plantada, pondo no lixo o dossier de O caso do actor desaparecido e voltando à sua horta, à pescaria madrugadora e à escrita errante. Porém, a estadia é curta: depois do programa ter passado na televisão, Miguel recebe um telefonema de Marta, a apresentadora do programa, informando-o que alguém a contactou, dizendo conhecer o paradeiro de Julio Arenas e enviando uma fotografia para comprovar. Miguel volta a arrumar a mala e segue viagem, rumo a um asilo também ele plantado à beira-mar. Ao chegar, Belém, uma assistente social, mostra-lhe a pessoa que reconheceu como Julio Arenas e Miguel confirma: é ele. Julio chegou ao asilo já sem memória e sem documentos, vive num quarto e trabalha a fazer todo o tipo de tarefas, sobretudo bricolage. Apesar de não saber quem é, canta vários tangos e considera o mar a sua casa. Afeiçoou-se à irmã Consuelo, que o baptizou de Gardel, por causa das canções que cantarola. As cenas que se seguem são sucessivas réplicas da apresentação do mistério do filme, já que a forma cinematográfica é uma forma privilegiada para a apresentação de mistérios e Víctor Erice tem-no feito em toda a sua cinematografia: o mistério do tempo, em Alumbramiento, o mistério da luz, em El sol del membrillo, o mistério da infância, em El espíritu de la colmena, o mistério do silêncio, em El sur (1983) o mistério do actor, em Vidros partidos, de que também nos fala La morte rouge (2006), filme autobiográfico sobre o mistério do cinema, a partir da infância. Neste último filme, Erice apresenta-nos o mistério de fechar os olhos.
Do mar e da chuva
Cerrar los ojos está sob influência do mar e das chuvas, é através deles que o filme respira. A chuva é insistente, repetitiva. E o mar, o lugar que o homem livre ama e conhece, como no poema O homem e o mar, de Baudelaire. É o mar que dita a forma e o ritmo do filme, o seu movimento, os padrões que nele se repetem. As personagens deste filme confrontam-se com o tempo que, como as ondas do mar, apaga as pegadas. Mas as mesmas ondas do mar, que apagam o caminho, trazem, enroladas, a areia onde o caminho se escreve.
A curta-metragem autobiográfica de Erice, La morte rouge, que cruza histórias e fantasmas com a sua experiência de iniciação ao cinema, em criança, começa com um plano das ondas do mar, numa praia, que apagam as pegadas na areia de alguém que caminha à sua beira e com as palavras de Erice: “O mar, dir-se-ia que só o mar permanece. Que o resto é diverso e desapareceu com o tempo, como as pegadas na areia”.3 É curiosa esta aproximação entre o mar e a permanência, ressoando, talvez, com um sentimento a que o escritor francês Romain Rolland4 chamou, a propósito da Ética de Espinosa, o sentimento oceânico, uma simples e directa sensação de eterno, sem limites perceptíveis, como o oceano. Mais do que a permanência, Alain, bem como Jean Epstein, encontra no mar uma verdade que decorre da sua natureza fluida e em constante movimento. Para Alain5, que considera os fluidos mais fiéis do que os sólidos, o oceano é instrutor. Que nos ensina ele? Por exemplo, que as ondas formam a sua própria costa, a costa que se defende das ondas. Que a vida dos homens deveria alinhar-se com a natureza selvagem, moldando as suas leis de acordo com ela e a partir dela. Um bom barco de pesca, diz-nos, é aquele que o próprio mar ajudou a construir, do mesmo modo que é o vento que desenha as asas do cormorão. A Epstein, por sua vez, interessa-lhe a força devoradora do mar e dos ventos famintos, o seu ritmo. E depois as imagens do cinematógrafo, capazes de captar a sua alma, as ondas e os corpúsculos, o duelo amoroso com a natureza. Epstein concebe “a vida profunda como desequilíbrio e mudança perpétuos”6 e para ele “os aspectos fixos, as formas estáveis não interessam ao cinematógrafo. Elas não ganham nada em ser representadas no ecrã”.7
É conhecida a relação arcaica entre o esquecimento e o elemento da água. Sabemos que o Letes era, para Platão e Virgílio, “o rio do esquecimento” de onde as almas, antes da sua reencarnação, bebiam ou afogavam as suas lembranças terrestres das vidas anteriores.
Veremos, mais à frente, como Miguel descreve a cena que fabulou, sobre a entrega de Julio às águas do Letes. A descrição dessa cena tem um estatuto ambíguo, cuja amplitude nos importa reter. Ela está no plano do possível: tanto pode ser uma cena imaginária criada por Miguel, como pode ser uma cena do filme de Víctor Erice, com o mesmo valor diegético que as outras cenas do filme. Esta indiscernibilidade entre o real e o imaginário percorre, aliás, todo o filme. Se aparentemente Julio é o protagonista desta fabulação criadora, Miguel parece sê-lo, tanto quanto Julio. A diferença é que Miguel não se lançou no abismo do Letes, antes procurando a sua imagem fabulada.
Os dois amigos – os dois marinheiros separados pelo esquecimento (ou deveremos antes dizer, pela memória?) – partilham uma sabedoria do mar, que Alain tão bem exprimiu: “Há muito tempo que o homem o compreendeu. O marinheiro confiou-se desde há séculos a essa coisa que não quer nada, que nada sabe, que bate sem fim contra si mesma. […] julgou essa massa fluida, sem projecto e sem memória; e porque não pode esperar nada dela, conta apenas consigo mesmo”.8
A relação trágica entre o mar e a morte é um motivo existencial do universo dos pescadores e das mulheres que os esperam em terra, como canta Dorival Caymmi, na sua canção O mar: “o pescador quando sai, nunca sabe se volta”. Há uma potência erótica do mar, do canto das sereias. Talvez Julio tenha sido movido por uma mágoa de amor, quando, diante da magnífica visão do abismo, sucumbiu, pelo menos espiritualmente, ao desejo de ser tragado por ele.
Na última cena do filme, do mar devorador, fala-nos a canção sefardita que, no filme La mirada del adiós, o pai canta à sua filha, para que o reconheça: “Hija mía mi querida amán/ no te eches a la mar /que la mar está en fortuna/ mira que te va a llevar”.9
Mas o mar é também a casa, o lugar para onde se regressa. Julio e Miguel, as personagens deste filme, abandonaram a cidade e fizeram do mar morada, vivendo sob a influência do seu rugido, dos seus movimentos, mas também sob a sua protecção. Assim se tornaram seres do mar, como o cormorão, forjados à sua imagem.
Passemos à chuva.
No início do capítulo IX dos Princípios de psicologia, William James define o pensamento da seguinte forma:
O primeiro facto para nós, enquanto psicólogos, é que alguma espécie de pensamento está a acontecer [goes on] [...] Se, em inglês pudéssemos dizer “pensa” [it thinks], do mesmo modo que dizemos “chove” [it rains] ou “sopra” [it blows], estaríamos a declarar o facto do modo mais simples e com o mínimo de suposição. Como não podemos, devemos simplesmente dizer que o pensamento está em andamento [thought goes on]”.10
Em primeiro lugar, é interessante sublinhar, com este excerto, uma concepção do pensamento, que engloba a consciência, cujo ponto de partida não é um ‘eu’, como acontece em Kant ou em Husserl, mas um acontecimento indefinido e impessoal. Voltaremos a esta ideia, mais à frente. A aproximação entre chove (it rains) e pensa (it thinks), que não se refere à chuva em particular, sendo apenas uma coincidência feliz, coloca ambos os acontecimentos – da chuva e do pensamento – ao mesmo nível, sem a enunciação de um sujeito transcendente como causa.
A água da chuva jorra e lava, a sua potência é visível por toda a parte. A arquitectura das ruas, dos portos, os telhados das casas, são testemunhas da nossa constante tentativa de domesticação da água. Alain diz-nos que “o dilúvio está inscrito na memória dos homens pois é o cataclismo mais fácil de imaginar [...]. Basta uma forte chuva de tempestade para que as pequenas poças nas nossas ruas nos façam pensar no dilúvio universal”.11
No filme, são vários os momentos de chuva torrencial e em cada um deles as personagens se encontram, de uma maneira ou de outra, num processo de reminiscência, de potencial transfiguração e devir.
Quando Miguel se reencontra pela primeira vez com os escombros do seu passado, guardados num armazém, onde estão também vários objectos ligados à produção do filme La mirada del adiós, sai de lá com alguns objectos, umas cassetes, um gravador e umas fotos, e leva vestida a gabardine da personagem do seu filme. Parece algo transfigurado, então, quando cai uma chuva torrencial.
Mais tarde, quando vai ter com Lola, um amor antigo, a um velho casarão em Segóvia, a chuva volta a jorrar. A chuva é premonitória de um processo de rememoração que não deixa intactos os envolvidos. Durante o seu intenso reencontro, Lola e Miguel falam da sua história, mas sobretudo de Julio, da sua vontade de desaparecer sem deixar rasto neste mundo, e Miguel descreve a Lola a cena que imaginou da última noite da vida de Julio. Nessa cena imaginada, Julio está sentado à beira de uma falésia, também ele debaixo de chuva. Miguel imagina assim a cena:
O mar estava muito bravo. Os sapatos magoavam-no, tinha-os tirado. Começou a chover. E foi aí, nesse momento, que lhe veio a ideia de fazer um manguito ao mundo inteiro. Desaparecer, sim, mas sem necessidade de se matar, se as pessoas pensassem que tinha morrido não faria mal, seria melhor, muito melhor.12
Julio, o actor, está prestes a viver o seu último papel, sua transfiguração final, o devir-outro radical, que o liberta do peso de uma identidade. Depois de partilhar esta cena com Lola, como um segredo que só ele sabe sobre Julio, Miguel pede a Lola que cante uma canção que costumava cantar nos tempos em que namoravam. Lola não reconhece de imediato a canção que Miguel deseja ouvir. Começa a tocar no piano, mas Miguel acena que não, com a cabeça. Até que se recorda e começa a cantá-la. É uma canção que fala do tempo que passou e é nela que Miguel e Lola se encontram.
Mais adiante, outra cena: Miguel está ao telefone, no exterior da sua roulote. Confirma que o homem da foto que lhe enviaram se assemelha a Julio. Mais uma vez a chuva torrencial se faz sentir. Miguel fala com o seu cão, Kali: “Que dilúvio, Kali, que dilúvio”, sentindo aproximar-se o fim de um mundo e o início de outro.
Finalmente, já perto do fim do filme, quando, dentro do carro, Miguel sugere a Ana, filha de Julio, que se projectem as cenas do filme de La mirada del adiós, rodadas antes do desaparecimento de Julio, de modo que Julio se veja a si mesmo através do filme, no sentido epsteiniano, através da inteligência da máquina que é o filme, a torrente de chuva também se faz sentir. O potencial de transfiguração e devir da chuva liga-se, no filme de Erice, ao potencial da inteligência maquínica de que nos falou Epstein. A máquina, o cinematógrafo, capta "no contínuo uma transfiguração subjectiva de uma discontinuidade mais verdadeira”.13
O marinheiro perdido
Esquecer-se de si é qualquer coisa que habitualmente entendemos como sendo da ordem do monstruoso, do não-humano, porque equivale à perda da identidade humana.
O neurologista Oliver Sacks, num dos seus textos sobre casos de distúrbios cerebrais, a que chamou “O marinheiro perdido”, conta a história de um paciente de 49 anos, Jimmie, cuja história é, em muitos aspectos, semelhante à da personagem Julio. Nele, Sacks começa por citar uma passagem das memórias de Luis Buñuel, que apresenta o fenómeno da amnésia como uma monstruosidade: “É preciso começar a perder a memória, mesmo a das pequenas coisas, para percebermos que é a memória que faz a nossa vida. A vida sem memória não é vida [...]. A nossa memória é a nossa coerência, a nossa razão, o nosso sentimento, até a nossa acção”.14
Sabemos, contudo, existir, em algumas filosofias, uma apologia do esquecimento e até uma anti-memória, como é o caso da filosofia de Nietzsche e, por herança, da de Gilles Deleuze. A leveza de Diónisos, personagem conceptual de Nietzsche e Deus do vinho, da bebedeira, do teatro e da dança, tem qualquer coisa a ver com uma potência amnésica que contrasta com a maldição de Funes, o memorioso, do conto de Jorge Luis Borges, condenado a encontrar memórias em todos os recantos por onde passe. Talvez por isso Gilles Deleuze se refira à amnésia como uma das coisas mais interessantes numa vida.15 Não será por acaso que, regra geral, os pensamentos em que se evidencia alguma espécie de apologia do esquecimento, se interessam por concepções da consciência, do espírito ou do pensamento descentradas de um sujeito humano, que abarcam o não-humano.
Voltando ao texto de Oliver Sacks. Jimmie era um homem de aparência saudável, vistoso e alegre, que foi internado no início da década de 1970 num lar de idosos nos arredores de Nova York, que tinha perdido a memória. Tratava-se de um caso de amnésia anterógrada, ou seja, em que se perde a memória a partir do trauma que causou a amnésia. Neste aspecto o caso de Julio é diferente do de Jimmie, pois Julio perdeu a memória de todo o seu passado. Jimmie estava parado no tempo, julgava ser ainda um jovem marinheiro de 19 anos. Quando se olhava no espelho caía em aflição, por parecer tão velho. Não retinha nada do presente, nem dos últimos 20 anos, e tinha muita dificuldade em concentrar-se nalguma coisa durante um período um pouco mais longo. A memória do passado era vívida, como se tivesse sido ontem. Oliver Sacks apercebeu-se, no entanto, que havia certas situações do presente em que Jimmie se mostrava absolutamente concentrado: “retido pela atenção emocional e espiritual – na contemplação da natureza ou da arte, a ouvir a música ou a participar na missa da capela – a atenção, o estado de espírito e a quietude permaneciam por algum tempo”.16
Há uma cena em que Miguel conversa com o médico que acompanhou Julio, conhecido no asilo como Gardel, desde que este ali chegou. Miguel está interessado em perceber quando terá começado a amnésia de Julio. O médico explica-lhe que o que é lógico é que o trauma, que resultou em amnésia, tenha coincidido com o momento em que Julio não conseguiu voltar à rodagem do filme e desapareceu. Esta explicação, o médico sublinha, é do foro “lógico”, quer dizer, não se conhece uma razão clínica, pois, se assim não fosse, o facto do desaparecimento seria voluntário, anterior ao trauma. Parece haver, da parte do médico, uma espécie de preconceito moral face à possibilidade de o desaparecimento de Julio ter resultado de um desejo intencional, possibilidade esta para a qual, justamente, a cena do desaparecimento de Julio imaginada por Miguel apontava.
O médico refere que tudo aquilo que os médicos podem fazer é ajudar a recuperar o que está perdido, sublinhando, porém, que apesar de a memória ser muito importante, uma pessoa não é apenas memória, mas também sentimento e sensibilidade e que estes últimos, capazes de comover, talvez pudessem fazer despertar a alma. Ao ouvir a palavra “alma”, Miguel faz uma expressão algo incrédula, com o olhar, fazendo lembrar as dúvidas receosas do pequeno Víctor Erice do filme La morte rouge (2006), sobre o que seria um actor e suspeitando que fosse algo que não possuísse alma própria, por ser um ser capaz de assumir a identidade que desejasse.
Dos nomes
Neste filme, as personagens têm mais do que um nome, um pouco como acontece em Pierrot le fou, de Jean Luc-Godard, com as personagens de Pierrot-Ferdinand e Marianne-Renoir. São personagens cujas identidades não estão fixadas, mas em formação. Julio é também Gardel, Miguel é também Mike. Mas enquanto Julio mergulhou absolutamente em Gardel, esquecendo-se de Julio, Miguel não mergulhou completamente em Mike. O questionamento sobre os nomes aparece no filme em três instâncias.
A primeira vez é quando Miguel, depois do primeiro encontro com o passado, em Madrid, volta para casa. Ao serão, com o marulho das ondas em fundo, Miguel e os seus amigos Toni, Esmeralda e Patón, reúnem-se à volta de uma mesa a conversar e a cantar. Conversam sobre como se chamará a bebé, prestes a nascer, de Toni e Esmeralda. Patón diz, brincando, que os nomes não importam, que basta ver o seu caso, cujo nome de baptismo é Rufino, e afinal chamam-lhe Patón. Naquela zona, uma zona balnear, de praia, Miguel é conhecido por Mike. Ele conta que lhe chamam assim porque, quando ali chegou, havia um americano que o tratava por Mike e assim ficou.
O segundo e o terceiro momento são no asilo. Depois de Miguel reconhecer Julio,
há uma cena, no jardim, em que Miguel conversa com as freiras que receberam e cuidaram dele. A irmã Consuelo, a mais próxima de Julio, conta como lhe deu o nome por que é conhecido no asilo – Gardel, como Carlos Gardel, o famoso cantor de tangos. Julio não sabia o seu nome, nem tinha documentos, explica, mas estava sempre a cantar tangos que ela tanto gostava de ouvir.
O outro momento em que a questão do nome surge é durante a já referida conversa entre Miguel e o médico que seguiu o caso de amnésia do seu amigo. O médico encontra consolo no facto de conhecer o verdadeiro nome de Gardel, ao que Miguel, sem compreender a esperança do médico, lhe pergunta, “mas o que é um nome ?”, reforçando a sua incredibilidade numa definição da identidade demasiado fixa e determinada pelo nome de baptismo.
Walter Benjamin, no livro das Passagens, colocou explicitamente a questão do nome próprio. Interroga-se acerca da relação entre o “ser” e o “chamar-se”: “Serei eu aquele que se chama W.B ou chamo-me simplesmente W.B?”.17 Ainda que Benjamin prefira a primeira formulação, considera que o nome é objecto de uma mimese, sendo a sua natureza singular, a de se mostrar naquilo que foi vivido. O nome tem uma íntima ligação com a experiência. No caso de Gardel e Mike, os seus nomes foram cunhados pela experiência do mar.
Reconhecimento de si
Sempre vivi paralelamente duas vidas, – uma, a da personagem que as combinações dos elementos hereditários fizeram com que eu me revestisse, num lugar do espaço e numa hora do tempo, – a outra, a do Ser sem rosto, sem nome, sem lugar, sem século, que é a própria substância e o sopro de cada vida. Mas destas duas consciências, distintas e conjugadas, – uma epidérmica e fugaz, – a outra, durável e profunda, – a primeira, como é natural, recobriu a segunda, durante a maior parte da minha infância, da minha juventude e até da minha vida activa e amorosa. Apenas por súbitas explosões a consciência subterrânea, conseguindo perfurar a crosta dos dias, surge como um jacto ardente de poço artesiano – só por alguns segundos – para voltar a desaparecer e ser sugada pelos lábios da terra.18
Reconhecimento e identidade são conceitos que funcionam em conjunto, a identidade humana depende do reconhecimento e o reconhecimento depende da identidade.
O conceito de reconhecimento aproxima-se por vezes do conceito de recognição, de que se distingue. Recognição é o acto pelo qual ligamos e integramos uma representação num conceito ou sistema conceptual mais geral. Em filosofia, a operação da recognição é determinante no modelo de representação do mundo, próprio do pensamento de Platão ou de Kant, por exemplo, em que a noção de representação é tomada como referência padrão, a partir da qual se deduzem os fenómenos do mundo.
Já o termo reconhecimento é um termo que, apesar de um uso mais técnico, no campo da psicologia, é bastante comum, abarcando diversos sentidos: o primeiro e que afecta de imediato a nossa percepção do mundo é o reconhecimento de fenómenos que já vimos antes (lugar, forma, situação, pessoa, objecto, animal). Sabemos que a nossa percepção, não dependendo exclusivamente da experiência passada ou das nossas lembranças, a tem em conta, num processo de reconhecimento. Noutro sentido, a palavra reconhecimento é usada com o significado de “estar reconhecido”, como sentir gratidão relativamente a alguém, reconhecendo-lhe certas qualidades ou valores. Noutro sentido ainda, usa-se comumente a palavra reconhecimento para designar uma espécie de pacto relacional com o outro, um pacto social, que confere a cada um o direito a existir de acordo com determinadas configurações identitárias. Em todos estes sentidos, há, no reconhecimento, uma base conceptual comum: a identidade de um indivíduo. Por vezes os sentidos sobrepõem-se, confundem-se. Paul Ricoeur19 refere duas dimensões do reconhecimento, um reconhecimento activo, quando reconheço o outro, e um reconhecimento passivo, quando espero ser reconhecido por alguém.
Todos conhecemos ou podemos imaginar a liberdade ou a angústia, dependendo dos casos, que sentimos quando, sozinhos, estamos num país estrangeiro sem conhecer ninguém. Não ser reconhecido significa que aquilo que é esperado de nós, pelo outro, deixa de ser determinante. Clandestinos, podemos ser quem somos ou queremos ser, pois não somos reconhecidos, senão por nós mesmos. Na cena em que Miguel conversa com Lola sobre o desaparecimento de Julio, esta diz-lhe que acabou por aceitar tratar-se de um acidente. Os rumores sobre a hipótese de Julio ter deliberadamente fugido perturbaram-na, diz com uma expressão no rosto levemente tingida pelo escândalo, como se fossem rumores ofensivos para com o seu amigo. Mas Miguel inclina-se justamente para essa hipótese que não só não lhe parece absurda como se lhe afigura verossímil, já que Julio costumava dizer que gostaria de desaparecer e que a ideia de mudar de identidade e refazer a vida noutro lugar era algo em que pensava. Olha para Lola, com um olhar perscrutante, pergunta-lhe se ela não se lembra de, em jovens, os três sonharem com qualquer coisa assim, como encontrar um lugar de onde já não se quer regressar. Lola devolve-lhe o olhar, mas noutro tom, complacente, de alguém que decidiu ver essas ideias loucas da juventude à distância. Sorri, diz que se lembra e que ela não encontrou esse lugar. Pergunta a Miguel se o encontrou e ele responde-lhe que não. Mas “por que não?”, pergunta Miguel a Lola. “Por que é que a ideia de Julio não poderia ser justamente essa? Desaparecer, sem deixar rasto neste mundo, não do actor, pois nos filmes vai continuar a estar, mas da pessoa que na realidade foi.” É neste momento do filme que Miguel partilha com Lola a cena que imaginou, do desaparecimento de Julio, que atrás descrevemos.
Cerrar los ojos vive de um jogo entre a angústia do reconhecimento de si e do outro, da sua identidade: O motivo que se repete: “Não me reconheces?” e a suspeita de uma outra forma de reconhecimento, imponderável.
Encontramos no filme uma série de momentos que se replicam e ressoam uns nos outros, em que o reconhecimento se evidencia como problema. Vejamo-los:
- Um livro. Numa feira do livro, Miguel encontra à venda um exemplar do seu livro Ruínas, escrito no passado. Ao abri-lo, reconhece a dedicatória, por ele escrita, para Lola, sua antiga namorada e compra o livro.
- O reconhecimento canino. Num café – o Café-Bar Ruby, perto da praia, onde Miguel vive – este assiste ao programa de TV O caso do actor desaparecido. Quando Miguel começa a falar, na televisão, Kali, o seu cão, reconhece a sua voz. Sabemos como tantos animais (e os cães e os gatos, seguramente) não reconhecem as pessoas e os outros animais ou lugares pela sua imagem, mas pelo som, pela voz, cheiros, movimentos ou outras possibilidades de afecção que não estão isoladas como sentidos reconhecíveis, a que chamamos instinto animal.
- Uma foto. Miguel está no exterior da roulote, liga a Marta, que o informou sobre alguém que pensa ter reconhecido Julio. Enviou-lhe uma foto da pessoa que se suspeita ser Julio. Miguel reconhece as semelhanças.
- A ameaça do nada. No asilo, depois de Belém, a assistente social, conduzir Miguel a um terraço de onde se consegue ver aquele que suspeita ser Julio Arenas, Miguel reconhece-o. Mas é ao almoço, na cantina, que a angústia do reconhecimento se revela. Miguel está numa mesa com várias pessoas. Julio-Gardel está à sua frente, come com vontade, o olhar absorto, a deambular no vago, sem se fixar, mas por momentos cruza-se com o olhar de Miguel e fita o seu rosto. Nesse momento, Miguel sorri, solícito, mas Julio-Gardel não responde à solicitação de reconhecimento, desviando o olhar. Os olhos de Miguel perdem subitamente o brilho, opacos, cabisbaixos, como que aterrorizados pelo olhar da medusa. Mais tarde conta a Belém que Julio-Gardel o olhou como se ele fosse nada.
- Reconhecer pela voz. Miguel e Ana, a filha de Julio Arenas, estão sentados na mesa de um café, um à frente do outro. Conversam por causa do programa de televisão O caso do actor desaparecido. Percebemos que Ana tem um ressentimento muito grande em relação ao pai. Sente que quase não o conheceu, que ele não lhe deixou nada, senão uma boneca que nem foi bem ele a dar, pois aos cinco anos ela ainda acreditava nos reis magos, por isso não a reconheceu como prenda do pai. Ana diz que, em pequena, nunca reconheceu a imagem do pai no ecrã. Que o que via era um sem número de personagens. Era pela voz que o reconhecia, quando falavam ao telefone. Diz-nos Ana que “o cinema tem esta coisa muito estranha: vemos uma personagem e dizem-nos que é o nosso pai, vêmo-lo de corpo inteiro, com a sua voz. Aquilo que eu reconhecia era a sua voz, não a sua imagem, mas a sua voz. [...] A sua imagem era quase a de um estranho, para mim, sempre disfarçada de outra pessoa, sempre uma personagem, aparecia e desaparecia”.20
Reconhecer pela voz é aqui uma variante de reconhecer sem imagem visual. Para a pequena Ana, a imagem do pai nos filmes não era de se fiar, pois aparecia e logo depois desaparecia. É à luz desta desconfiança que compreendemos a cena em que Ana, no asilo, tentará a sua sorte. Entra no barracão onde o pai dorme, com um misto de esperança e terror de ser ou não ser reconhecida, de reconhecer ou não reconhecer. No escuro, Ana fita-o. Julio-Gardel acorda e senta-se na cama, retribuindo o olhar. Ana está de pé, com os olhos bem abertos, e diz-lhe: “Sou a Ana”. Julio-Gardel olha para ela como se algo lhe escapasse, está como que perdido nesse estranho país que insistem em apresentar-lhe, um país de identidades e reconhecimentos. Não compreende aquela língua. Então, Ana, suspeitando, por experiência própria, que o reconhecimento só é possível sem ver, repete novamente a frase: "Sou a Ana", mas agora fechando os olhos.
Para além da questão de saber se Julio Arenas recuperará ou não a memória, interessou a Erice focar uma outra questão, de que habitualmente se fala menos: a da consciência. Terá Julio-Gardel alguma espécie de consciência? Erice diz-nos, na entrevista já citada, que, apesar de se ocupar de muitas tarefas no asilo, o facto de nunca vermos Julio-Gardel ajudar alguém mais velho, por exemplo, é propositado, pois se o víssemos a fazê-lo, isso revelaria um grau da consciência, uma consciência do outro, por exemplo. Saber se é possível que haja alguma espécie de consciência é qualquer coisa a que o filme não pretende responder.
Mãos, água e cal: um acontecimento
A sequência que passarei a descrever, exprime, em meu entender, o núcleo do mistério de que pretendo neste texto aproximar-me.
Miguel, sentado num banco junto ao portão da oficina de Julio-Gardel, fuma um cigarro. Ouvimos o mar em fundo e o som do assobio de Julio-Gardel. Miguel entra na oficina e pergunta a Julio-Gardel se o pode ajudar. Os dois homens estão frente a frente. Julio-Gardel suspende o que estava a fazer, de serrote na mão. O seu corpo, hesitante, balança ao de leve. Pergunta-lhe se sabe fazer algo. Miguel diz que tem uma horta. A câmara aproxima-se lentamente. Se tem uma horta, deveria cuidar dela, diz-lhe Julio-Gardel, pois ali só há trabalho para um e ele não está a planear morrer, que morrer é para velhos. Miguel fita o amigo, cujo olhar se desloca no vazio. Parece pronto a desistir, desolado, quando, subitamente, Julio-Gardel se aproxima dele, largando o serrote e pedindo-lhe que lhe mostre as mãos. Miguel, surpreso, estende-lhas e ele examina-as com atenção. Diz que não estão mal, que são mãos trabalhadoras, como as suas. Depois olha para as suas próprias mãos. Neste momento do filme, de uma subtileza e potência raras, as mãos adquirem qualidades insuspeitadas. As mãos de um são como as do outro. Que poderão aquelas quatro mãos fazer juntas? É isso que Julio-Gardel avalia. A câmara dá-nos então um grande plano do rosto de Miguel que, comovido, tenta a sua sorte, perguntando ao amigo: “Não me reconheces?”. No contracampo, o rosto de Julio-Gardel faz uma expressão ao mesmo tempo de hesitação e embaraço, daquelas expressões que as crianças fazem quando não percebem bem aquilo que um adulto lhes diz, simulando ainda assim alguma atenção. Esboça um sorriso. Miguel repete: “Não me reconheces?” Julio-Gardel gesticula que não, com a cabeça, e diz que não sabe, mas logo a seguir diz-lhe: “Anda. Vamos caiar, vai buscar água”.
Num lapso de tempo, entre o não reconhecimento de Julio-Gardel e a desolação de Miguel, que está pronto a desistir, surge um germe de ritmo, concretizado pela frase inesperada de Julio-Gardel, que convida ao encontro. Ambos são apanhados em flagrante por este acontecimento do ritmo, criador de outra coisa, de uma relação, um território, um acontecimento.
O reconhecimento imponderável e o surgimento do ritmo
Chamo reconhecimento imponderável a um reconhecimento que sai da perspectiva de uma identidade pessoal. Quando Miguel pergunta a Julio-Gardel “Não me reconheces?”, ele está a funcionar dentro de uma lógica identitária fechada que funciona como um espelho, de acordo com determinações prévias. Sair da perspectiva de um “eu” ou de uma subjectividade pessoal aproxima-se de outra espécie de “eu”, mais próxima das séries da “Passagem das Horas”, de Álvaro de Campos: “Eu, a ama que empurra os perambulados em todos os jardins públicos/ Eu, o polícia que a olha, parado para traz na alea/ Eu, a creança no carro, que acena à sua inconsciência lúcida com um colar com guizos/ Eu, a paisagem por detraz d’isto tudo…”.21 Este “eu” não é uma síntese das impressões, percepções e afecções de um sujeito, é um ““eu” desfeito, transformado, portador de vida mais poderosa”.22
Um “eu” desfeito está mais próximo de conceitos como o de individuação ou de hecceidade, ou seja, modos de individuação que se dão sob a forma de intensidades, móveis e comunicantes: um grau de calor, um pequeno gesto insignificante, são formas perfeitamente individuadas que não se confundem com o sujeito (ou substância) que a recebe ou produz. Caiar, em Cerrar los ojos, é uma individuação deste género. O encontro entre Mike e Gardel (aqui são ambos outros, que não eles mesmos) como acontecimento surge quando, apesar de serem distintos, as suas mãos se confundem, fazem corpo, um corpo a quatro mãos. Não se trata já de quem é quem ou de quem reconhece quem, mas de uma outra dimensão, que emerge quando Julio-Gardel, respondendo que não sabe se o reconhece, lhe diz que vá buscar a água para caiar. Há, de repente, uma intensidade que emerge ou irrompe no acontecimento caiar, intensidade esta que se diferencia de Gardel, de Julio, de Mike, de Miguel e que, no entanto, os envolve, enquanto forças.
Tomando de empréstimo a Jean Epstein o termo ‘imponderável’, da sua noção de fotogenia do imponderável23 bem como alguns aspectos do seu pensamento, o reconhecimento é imponderável, em primeiro lugar, porque não funciona por identidade e semelhança, mas por dissemelhança. Em segundo lugar, porque se liga à capacidade que as imagens do cinematógrafo têm, segundo Epstein, de captar e criar uma temporalidade singular, abarcando movimentos extremamente velozes, afins aos movimentos mais profundos, insuspeitados, do pensamento. É por esta razão que a subjectividade maquínica, a alma do dispositivo cinematográfico, tem o poder de agir sobre nós, a ponto de fazer emergir, através da imagem, uma nova subjectividade. Se existe reconhecimento, então, é um reconhecimento que não se faz por semelhança ou, dito por outras palavras, em que a semelhança se produz por dissemelhança.
Aquilo a que chamo reconhecimento imponderável aproxima-se daquilo a que Deleuze, inspirando-se no pensamento de Gregory Bateson, chamou a analogia estética, que é um tipo de analogia que não se define por similitude, mas pela relação. Se a linguagem codificada, dos estados de coisas, das identidades, se define por similitude, pelo contrário, a linguagem analógica, própria dos golfinhos, de outros mamíferos e da arte, e que nós humanos tendemos a colocar em segundo plano, “é feita de coisas não linguísticas, mesmo não sonoras, de movimentos – de kinesthesis, como se diz – de expressões de emoções, de dados sonoros inarticulados, de sopros, de gritos. [...] Esta linguagem analógica é, de certo modo, uma espécie de linguagem bestial”24, demoníaca, diria Epstein.
Mas é com aquilo a que Gilles Deleuze25 chamou o impensado no pensamento que o reconhecimento imponderável encontra maior ressonância. Em Cinéma 2: L’image-temps, no capítulo 7, sobre o pensamento e o cinema, Deleuze convoca justamente, entre outros, o pensamento de Epstein, sobretudo a sua ideia de que a imagem cinematográfica tem por ambição reconstituir uma espécie de pensamento primitivo, trazendo à consciência os mecanismos inconscientes do pensamento. É em Jean-Louis Schefer26 que Deleuze encontra aquela que considera a melhor formulação a respeito da especificidade do cinema na sua relação com o pensamento. Segundo Schefer, “a imagem cinematográfica, a partir do momento em que assume a sua aberração do movimento, opera uma suspensão do mundo em que afecta o visível de uma perturbação que, longe de tornar o pensamento visível (...) diz respeito àquilo que não se deixa pensar no pensamento, bem como àquilo que não se deixa ver na visão”27 e o estado de cinema (état de cinéma) “só tem um equivalente: não a participação imaginária, mas a chuva, quando se sai de uma sala, não o sonho, mas o negro e a insónia”.28
Canções
Tal como uma onda, o ritornelo é um movimento de regresso ou de retorno, um padrão que se repete. Ele é antes de mais nada um padrão rítmico da natureza, que encontramos um pouco por todo o lado. Nas formações rochosas, das nuvens, dos ventos, do mar e das chuvas, nos desenhos criados pelos voos de um bando de pássaros ou de um cardume de peixes, nos cantos dos pássaros, nas variadas formas territoriais e de camuflagem de tantos animais, na arte e na literatura, no cinema. É sempre um encontro de elementos capaz de se exprimir num ritmo. A descrição do ritornelo de Deleuze e Guattari29 põe em cena uma criança, com medo do escuro, que canta para criar um centro fixo no meio do caos. É com este cantar, que resiste ao caos, que um ritmo calmo e estável emerge, criando-se uma espécie de abrigo, uma casa, feita dessa canção.
A canção é um dos ritornelos de Cerrar los ojos, um dos seus motivos repetitivos. Em quase todas elas se regressa a casa, passando-se do reconhecimento de si ao reconhecimento imponderável. Vejamo-las:
- Lola e Miguel encontram-se. A pedido de Miguel, Lola canta uma canção que faz parte do seu passado comum. Apesar de esta canção ser cantada unicamente por Lola, ela é o lugar de encontro afectivo dos dois amigos, um lugar que ambos habitaram e que faz parte do passado entre os dois.
- Miguel regressa a casa, depois da sua visita a Madrid. Deixa o passado para trás e reúne-se com os seus três amigos e com o seu cão, como na canção que Tony lhe pede para cantar, “My Rifle, My Pony & Me”, cantada em 1948 noutro filme, “Rio Bravo”, de Howard Hawks, por Dean Martin. Como no filme de Hawks, este cowboy também voltou para casa, para o seu cão, Kali, e os seus três amigos.
- Sentados num banco à porta do barracão de Julio-Gardel, Miguel tenta conversar com ele. Pergunta-lhe se o seu nome é Gardel. Julio responde que esse é o nome por que é chamado, ali, mas que não sabe se é o seu nome. Miguel pergunta-lhe se sabe quem é Gardel, diz-lhe que era um homem que cantava. “Você também canta, o que é que canta?”, pergunta-lhe. Julio-Gardel começa a cantar uma canção: “Caminito que el tiempo ha borrado/ Que juntos un día nos viste pasar/ He venido por última vez/ He venido…” E Miguel continua: “...He venido a contarte mi mal/”. E cantam juntos sobre este caminho feito a dois, que o tempo apagou, mas que volta a fazer-se. Este é o primeiro reconhecimento imponderável entre Miguel e Julio-Gardel.
- No final do filme, todos assistem à projecção das cenas do filme inacabado La ultima mirada. Na cena que vemos, somos espectadores de um reconhecimento. A personagem de Julio Arenas tinha ido a Xangai buscar Judith, a filha do velho sefardita, Monsieur Levy, que desejava ver o olhar da sua filha, antes de morrer. A menina, ao ver o homem, transtornado, protege-se com o seu leque, dizendo o seu nome chinês: “sou Qiao Shu”. Então, o homem, aflito, volta-se para o piano e, olhando-a nos olhos, começa a tocar um tango argentino que costumava cantar-lhe quando era pequena. A menina comove-se, fechando os olhos. O pai levanta-se bruscamente, pega num pano, molha-o com a água de uma jarra de flores e limpa o rosto da filha, embranquecido pelo pó de arroz. Tem uma convulsão e cai no chão, para morrer, murmurando os versos iniciais da canção, que Judith reconhece, cantarolando-a.
Conlusão: fechar os olhos
O gesto de fechar os olhos dá-se, no filme, numa sucessão de réplicas. Porque fecham eles os olhos? Ana, Judith-Qiao Shu, Julio-Gardel. Que procuram eles? O fluxo que os constitui e que atravessa as suas identidades perdidas, o ritmo insistente, aquele da emergência da sua existência? É verdade que Ana está demasiado presa a uma identidade fixa, ao seu nome próprio, não tem um duplo para que possa transitar. Mas as identidades mutantes de Julio-Gardel e de Judith-Quiao-Shu conhecem os poderes da fabulação.
E o que será que espera Miguel, ao projectar a cena de La última mirada, para que Julio-Gardel a veja? Que se reconheça, como diz a Ana, no carro? Será mesmo de uma rememoração que ele está à espera? Talvez Miguel confie antes nos poderes transfiguradores do cinema, afins aos do mar e das chuvas, esses que servem às “forças da transgressão e da revolta”30 e que põem em cena o invisível. Se “o cinema é mágico porque provou ser capaz de ultrapassar certos limites da representação”, (se) ele está “acima da semelhança das coisas”31, talvez, do outro lado da transparência, o do invisível do visível, alguma semelhança surreal se possa produzir.
Referências bibliográficas
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Filmografia
ALUMBRAMIENTO. Direção de Víctor Erice. Produção de Nautilus Films. 11 min, PB, som. Espanha, 2002
CERRAR los ojos. Direção de Víctor Erice. Produção de Pecado Films, Tandem Films, Nautilus Films, Pampa Films y La voz del adiós AIE. 161 min, cor, som. Espanha; Argentina, 2023.
EL ESPÍRITU de la colmena. Direção de Víctor Erice. Produção de Elías Querejeta Producciones Cinematográficas e Jacel Desposito. 97 min, cor, som. Espanha, 1973.
EL SOL del membrillo. Direção de Víctor Erice. Produção de María Moreno P.C., Igeldo Zine Produkzioak e Euskal Media. 139 min, cor, som. Espanha, 1992.
LA MORTE rouge. Direção de Víctor Erice. Produção de Nautilus Films. 34 min, PB e cor, som. Espanha, 2006.
VIDROS partidos. Direção de Víctor Erice. Produção de Nautilus Films. 37 min, cor, som. Portugal, 2012.
Documentários e entrevistas
CONVERSACIÓN com Víctor Erice en el café Oriente de Madrid. Direção de Hideyuki Miyaoka. 49 min, cor, som. Espanha, 2000.
ENTREVISTA a Víctor Erice 'Cerrar los ojos / Close your eyes' (Proyección Premio Donostia) 2023. Produção de San Sebastián International Film Festival. Espanha, 2023. Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=Je9Ho_p4i-I>. Acesso em 16/12/2024.