Introdução
Este estudo toma como ponto de partida a crítica de Arthur Danto contra as estratégias modernistas de “purificação”, na esteira de outras correntes estéticas contemporâneas que, com desconfianças similares, cultivam a defesa de alguma forma de “realismo”. Alguém como Pierre Restany, por exemplo, já denunciava na década de 1960 a estética modernista como evasão melancólica do mundo, em seu jogo autocentrado de formas abstratas: “a arte abstrata recusava por definição todo apelo da realidade exterior: arte de evasão e recusa do mundo, ela correspondeu à manifestação extrema de uma visão pessimista da condição humana”.1 Para Nicolas Bourriaud, ademais, “as utopias sociais e a esperança revolucionária deram lugar a micro-utopias cotidianas e a estratégias miméticas: toda posição crítica ‘direta’ da sociedade é vã se ela se basear na ilusão de uma marginalidade atualmente impossível, até mesmo regressiva”.2 No caso de Danto, lemos em Após o fim da arte uma crítica severa à célebre teoria de Clement Greenberg sobre a especificidade do modernismo:
A história do modernismo é a história da purificação, da limpeza generalizada, do libertar a arte do que quer que lhe fosse acessório. É difícil não ouvir os ecos políticos dessas noções de pureza e purificação, qualquer que fosse realmente a política de Greenberg. Esses ecos ainda se debatem de um lado para o outro no campo tormentoso das disputas nacionalistas, e a noção de limpeza étnica tornou-se imperativo que provoca calafrios dos movimentos separatistas pelo mundo afora. Não é surpreendente, simplesmente chocante, reconhecer que o análogo político do modernismo na arte foi o totalitarismo, com suas ideias de pureza racial e sua agenda de expulsar qualquer agente contaminador percebido?3
Tal associação que Danto estabelece entre a arte modernista e os totalitarismos do século XX suscitou, é claro, uma série de críticas, conforme Vladimir Safatle sintetiza de maneira concisa: “se sua análise tivesse algum fundamento real, seria difícil entender por que, concretamente, os ditos regimes totalitários, em larga medida, recusaram o modernismo como se este tratasse de degeneração, de formalismo distante do pretenso realismo popular”.4 De fato, embora o fascismo italiano possa figurar uma exceção em sua relação com o futurismo, não há dúvidas de que a estética nazista era neoclássica, assim como o stalinismo suprimiu as vanguardas russas com o chamado Realismo Socialista.5 Em sua crítica, Safatle propõe uma reconsideração do paradigma modernista como estratégia de emancipação política a partir do princípio da autonomia estética – na contramão, afinal, da estratégia que Danto identifica na Pop Arte de emancipação dos “estilos oficiais”, como o realismo no nazismo e no stalinismo, além, é claro, do expressionismo abstrato nos Estados Unidos.
Mediante tal problemática, o presente estudo apresenta uma reflexão sobre o estatuto do realismo em Danto, especialmente na obra supracitada. Todavia, em vez de proceder por uma exegese dantiana, a reflexão ora proposta confere a Após o fim da arte uma posição singular, considerando que esse livro se dirige a predicações não redutíveis ao mundo da arte ou a uma estética histórico-essencialista. De sorte que a noção de “realismo” aqui adotada, embora estranha ao léxico do autor, alinha-se às operações de descentramento e de abertura que são caras a ele. Noutros termos, se sua tese mira um horizonte de indistinção entre arte e realidade, é possível depreender daí um realismo que não mais se pauta na distinção necessária em relação ao idealismo, à abstração etc., pois se assenta no reconhecimento daquele horizonte pós-histórico. Pretendemos, portanto, situar esse tipo de realismo mediante os debates nos quais ele se insere e, ainda, as discussões por ele suscitadas.
O fim da distinção entre arte e realidade
Em Após o fim da arte, como se sabe, Danto argumenta que a tese hegeliana de que a arte perderia importância em favor da filosofia teria se materializado na arte contemporânea, quando o artista deixou de se preocupar em representar o mundo para tratar de representar a própria arte, isto é, os sentidos e limites do fazer artístico. A partir da Arte Pop, em especial, a arte passaria a operar como transfiguração do lugar comum ao tornar-se indiscernível do mundo comum (isto é, não artístico), em contraposição à mistificação que o autor identifica sobremaneira no expressionismo abstrato de artistas como Pollock e Rothko:
O expressionismo abstrato estava preocupado com processos ocultos e relacionado com premissas surrealistas. Os seus praticantes procuravam ser xamãs, em contato com forças primordiais. Era completamente metafísico, ao passo que a pop celebrava as coisas mais comuns dos modos de vida mais comuns – flocos de milho, sopas enlatadas, sabão em pedra, estrelas de cinema, histórias em quadrinhos. E pelo processo de transfiguração, a pop conferiu-lhes um ar quase transcendental [...]. [Ela respondeu] a um sentimento universal de que as pessoas queriam desfrutar suas vidas agora, tal como elas eram, e não em algum plano diferente, em algum mundo diferente ou, ainda, em algum estágio posterior da história para o qual o presente era uma preparação.6
Essa reconciliação da arte com o mundo comum implica, segundo Danto, o fim da arte enquanto narrativa histórica e acúmulo progressivo de seus meios, mas também o estabelecimento de uma arte pós-histórica amparada por uma liberdade artística sem precedentes.7 Cumpre lembrar que, desde 1964 – quando encontrou, pela primeira vez, as Brillo Boxes de Andy Warhol –, portanto mais de três décadas antes de chegar à tese ora abreviada8, Danto já vinha se debruçando sobre o problema da definição de arte em sua indissociabilidade das propriedades extrínsecas às obras de arte. Tanto em O mundo da arte, um de seus primeiros escritos, quanto em A transfiguração do lugar-comum vemos o debate em torno da teoria institucional da arte – a ideia de que, grosso modo, só pode ser arte aquilo que o mundo artístico aceita como arte – e, sobremaneira, a noção de narrativas mestras da história da arte (em especial, a vasariana e a greenberguiana) enquanto coordenadas progressivas de identificação das obras de arte em cada época.
É na esteira dessa longa reflexão que Danto sustentará, em Após o fim da arte, que tais narrativas teriam chegado a um esgotamento, “quando o dilema, reconhecido por Greenberg, entre obras de arte e meros objetos reais não mais pudera ser articulado em termos visuais, e quando se tornou imperativo abandonar uma estética materialista em favor de uma estética do significado”.9 Uma vez que, portanto, as obras de arte deixaram de ser subsumidas pela história e pelas teorias baseadas na visualidade ou em aspectos materiais, interessa-nos a consequência que Danto atribui a esse processo: a não distinção, em última instância, entre arte e realidade. É isso, afinal, o que haveria de diferente entre Duchamp e Warhol:
O que quer que tenha conseguido, Duchamp não estava celebrando o comum. Ele estava, talvez, depreciando a estética e testando os limites da arte. [...]. O que faz a diferença entre Duchamp e Warhol é, analogamente, muito menos difícil de afirmar do que o que faz a diferença entre arte e realidade. Situar a pop em seu momento cultural profundo nos permite constatar quão diferentes eram suas causas daquelas que guiaram Duchamp meio século antes.10
Uma leitura apressada poderia inferir que Warhol não fez mais do que retomar e realizar, em vez de questionar ou superar, a arte figurativa em seu ideal antiquado de representação ou imitação da realidade. Mas Danto associa esse ideal à narrativa vasariana acerca de um progresso técnico que teria culminado na invenção da fotografia e do cinema. A tradição da arte ocidental propiciou, assim, a difusão das técnicas ilusionistas, ao passo que a arte modernista se encarregou de definir os limites entre arte e realidade. O fim de ambas as narrativas procede pela compreensão, suscitada nos anos 1960, de que a arte não mais requer uma teoria que a legitime como tal e não mais precisa se distinguir da não-arte.
Mas aquela vaga e trivial alusão ao realismo convencional merece maior atenção. No capítulo intitulado “Pop art e futuros passados”, Danto chama a atenção para os pintores realistas que continuaram a produzir suas obras mesmo quando o expressionismo abstrato dominava a cena nos anos 1950: “se a abstração detinha o futuro em seu poder, o que haveria de acontecer aos realistas, que ainda existiam em grande número nos Estados Unidos, e mesmo em Nova York?”.11 Nomes como Robert Henri e Edward Hopper, por exemplo, mantinham-se muito mais próximos dos realistas do século XIX do que das vanguardas do século XX. E, se antes da Primeira Guerra tais nomes eram mais conhecidos nos EUA do que Picasso ou Matisse, após a depressão econômica de 1930 e o Projeto de Arte Federal, ligado ao New Deal entre 1935 e 1943, as vanguardas europeias foram aclamadas para abrir espaço ao expressionismo abstrato.12 Nos termos de Danto,
O modernismo por volta de 1933 era muito diferente do modernismo por volta de 1960, quando Clement Greenberg escreveu o seu ensaio canônico “Pintura modernista”. [...] Qualquer que seja o caso, em 1933 o “moderno” representava uma imensa diversidade artística: os impressionistas e os pós-impressionistas, inclusive Rousseau; os surrealistas, os fauvistas, e os cubistas. E, é claro, houve abstracionistas, suprematistas e não-objetivistas. Mas eles eram sentidos meramente como parte da modernidade, o que também incluía Hopper, e nessa condição o modernismo não era nenhuma ameaça ao realismo. Mas, na década de 1950, especialmente em consequência do grande sucesso crítico do expressionismo abstrato, a arte do tipo que Hopper exemplificava corria o risco de ser submersa por um modernismo estreitamente definido em termos de abstração. O que fora uma parte agora ameaçava tornar-se o todo. E como Hopper e seus pares o compreendiam, o futuro da arte parecia desolador. Isso definia o seu presente como um campo de batalha nas guerras de estilo do século XX.13
Danto segue elencando uma série de episódios que indicavam a condenação da pintura realista, mas também lembra que “por volta de 1962 o expressionismo abstrato estava quase acabado”14, destacando ainda uma retrospectiva de Hopper exibida no Museu Whitney em 1964 – mesmo ano em que as Brillo Boxes de Warhol foram expostas. Finalmente, após esse breve panorama, Danto retoma a clássica condenação que Platão impõe aos artistas no livro X da República – a saber, pelo famoso exemplo da representação de uma cama, os artistas se ocupariam de uma imitação de segunda mão das ideias ou formas puras – para assinalar certo realismo radical da Arte Pop: “de repente, começa-se a ver camas de verdade no mundo da arte do início da década de 1960 [...] era como se os artistas estivessem começando a fechar a lacuna entre a arte e a realidade. E a questão agora era o que tornava essas camas objetos de arte, se eram, afinal, camas”.15 Ou seja, o realismo pop deixa de referenciar uma realidade qualquer para reiterar a autorreferencialidade da realidade mesma.16
A noção de realismo, portanto, parece indicar um aspecto importante do repertório e da própria filosofia de Danto, por mais que ele não o explicite. Claro está que essa noção, que estamos aqui a imputar ao autor, passa ao largo da dimensão estilística própria das narrativas mestras da história da arte. Trata-se de um realismo autorreflexivo que, ao abarcar toda sorte de elaboração/interpretação situada (realista, abstrata, modernista etc.), sobrevém não como condição necessária ou metafísica, mas historicamente contingente.
No mundo da arte da década de 1950, como vimos, a controvérsia em tom determinado era entre abstração e imagem. Greenberg articulou essa disputa acusando o espaço ilusionista como não próprio à pintura [...]. Os pintores tornaram-se hoje singularmente tolerantes pelos padrões de 1950. Você pode pôr formas reais em espaço real e formas abstratas em espaço abstrato, formas abstratas em espaço real e formas abstratas em espaço abstrato, para usar uma matriz simples. Realmente não há regras.17
É tal aspecto que Danto assinala ao comentar sobre artistas “pós-históricos” como Sigmar Polke, Gerhard Richter e Richard Hamilton que, ao se inspirarem diretamente na Arte Pop, evitaram deliberadamente qualquer sinal de estilo, originalidade e especificidade dos meios. No caso de Gerhard Richter, em especial, a questão realista é ainda mais patente em seu uso da fotografia, que não contradiz sua referência constante à pintura histórica: “isto impede a estilização, ver ‘falsamente’ ou dar uma interpretação extremamente pessoal ao assunto”, acrescentando ainda que “Não quero imitar uma fotografia. Quero fazer uma. Na verdade, estou fazendo fotos com meios diferentes e não pinturas que lembrem uma fotografia”.18 Se o “fim da arte” é em última instância o fim das narrativas mestras da arte, o realismo pós-histórico advém não apenas da consciência desse fim, como também do reconhecimento da continuidade das práticas artísticas a partir dessa consciência. É por isso que, em “Crítica de arte após o fim da arte”, Danto reitera certo ressurgimento da pintura figurativa no início dos anos 1980 e, noutro momento, encerra um ensaio tardio sobre Duchamp afirmando ironicamente que, mediante o dadaísmo e suas derivações vanguardistas, “As musas devem estar orgulhosas”.19
Implicações de um realismo pós-histórico
Contra essa perspectiva realista que emerge mais claramente em Após o fim da arte – considerando que, em seus livros anteriores, Danto ainda buscava fornecer critérios para distinguir obras de arte das coisas em geral –, uma série de objeções foi rapidamente interposta por muitos críticos, como Mark Rollins, Whitney Davis, Michael Kelly, David Carrier e Noël Carroll. No geral, tais críticas oscilam entre acusar Danto de operar uma sujeição da arte ao crivo filosófico, suprimindo a capacidade da arte de pensar a si mesma, e de pretensamente apostar que a Arte Pop pudesse esvaziar o mundo da arte de qualquer injunção crítico-normativa. Sem entrar no mérito dessas objeções, que aliás se provaram procedentes20, é preciso considerar que a trajetória de Danto se insere em um contexto em que a produção teórica se tornou tão importante quanto a artística, e que, nesse contexto, criticar é jogar, desde que se enunciem as regras do jogo. Ao teorizar sobre o mundo da arte, Danto (que, vale lembrar, tentou ser artista antes de se tornar filósofo) estava jogando de modo recursivo com o fato de que as teorias de arte sempre dependeram das produções artísticas, mas apostando que essas produções possam ser reposicionadas por meio de tais elaborações teóricas.
Nesse sentido, Após o fim da arte talvez tenha sido a maior aposta de Danto na ampliação não tanto do horizonte artístico, mas antes do teórico-crítico. Para tanto, retratou a descontinuidade das narrativas mestras em uma lógica devedora da História hegeliana como totalidade, acionando assim uma tática controversa para minar a teleologia modernista do progresso artístico. Ora, novamente é pertinente lembrar que, no território disputado por Danto, o relato modernista prevalecia de maneira igualmente controversa: embora Greenberg sustentasse, em sua retórica kantiana, a autonomia da pintura contra todo o “sono dogmático” do passado, ele também estava comprometido em salvaguardar as artes visuais do adágio hegeliano, chegando mesmo a proclamar, em 1961, que “O modernismo jamais pretendeu, e não pretende hoje, nada de semelhante a uma ruptura com o passado”.21 Note-se, portanto, que Danto estava ciente do historicismo que assombrava o modelo modernista dominante nos anos 1950 e 1960, cuja pretensa autocrítica se mostrava cada vez mais frágil.
Ao mesmo tempo, o diagnóstico pós-histórico não se confunde com os imperativos da vanguarda histórica, seja o de reconectar arte e vida (na esteira, por exemplo, de Peter Bürger), seja o da consagração da “antiarte” como ruptura das convenções acadêmicas desde o impressionismo até Duchamp.22 Primeiro porque, como se sabe, nos Estados Unidos a recepção das vanguardas foi feita pela mesma instituição que elas sempre atacaram, o museu de arte – que, de maneira conveniente e esclarecida, reintegrou em si a atitude transgressora da antiarte.23 Mas, para além disso, o protagonismo que Danto fornece a Warhol é significativo: se não há qualquer menção a Jaspers Johns, por exemplo, que em 1960 fundiu em bronze e pintou duas latas de cerveja Ballantine (que muitos consideram uma espécie de proto-pop), é apenas porque este permanecia vinculado ao tensionamento duchampiano dos limites do mundo da arte. Já Warhol teria suplantado tais limites ao fundir a arte diretamente ao mundo ordinário, sem espaço para ambiguidades, por mais que sua recepção hesite até hoje entre uma cumplicidade perversa e uma crítica refinada ao fetichismo do consumo de massa.24 Para Danto, o que importa na obra de Warhol é o fato de que arte e realidade se tornam redundantes, são apresentados como uma coisa só e apreciados/consumidos como tal.
É nesse ponto que a noção de “realismo” pode ser útil para a compreensão da teoria pós-histórica de Danto. Não se trata de antiarte e tampouco de reconexão, uma vez que ambos os imperativos ainda pressupõem alguma dissociação entre arte e realidade – como também ocorre, de forma diversa, no esquema significante-referente e, por conseguinte, na crítica estruturalista ao “efeito do real”.25 Em vez disso, é algo que Leo Steinberg acabou antevendo, em 1961, justamente na obra de Jaspers Johns: “Os meios e os significados, o visível e o conhecido são de tal forma uma única e mesma coisa que a distinção entre conteúdo e forma ainda não é ou já não é mais inteligível”, acrescentando em seguida que o seu gesto essencial consistia em “conferir singularidade ao lugar-comum”.26 Ora, mesmo nisso Warhol se absteve de originalidade, com a diferença de que no seu caso tal gesto foi deliberado. Em Após o fim da arte, Danto identifica essa atitude pós-histórica também em artistas que não estavam diretamente associadas à Arte Pop, como Jenny Holzer, Barbara Kruger, Cindy Sherman e Sherrie Levine; e, noutro momento, comenta sobre como “Realistas como George Segal e Claes Oldenberg se estimulavam com o extraordinário que o ordinário pode ser”, de sorte que “Cada um desses esforços visava trazer a arte à realidade”.27
Em certo sentido, portanto, a principal implicação de uma arte pós-histórica reside no “retorno do real”, expressão que intitula o livro mais difundido de Hal Foster. Mas se, para este crítico, trata-se de um real necessariamente traumático e abjeto, como algo que foi esquecido, recalcado, e que reapareceria sobremaneira em Warhol28, para Danto o real não é algo a ser rememorado ou reelaborado, apenas reiterado e transfigurado, isto é, exaltado na ordem do comum. A despeito dessa diferença, em ambos os casos é notável um interesse inusitado pelo realismo após tantas décadas de crítica moderna e pós-estruturalista contra as ilusões de semelhança e representação. Tal interesse estava ligado, por certo, àquele ambiente estadunidense do esgotamento modernista, mas também se dava a ver em outros contextos, como nas estratégias internacionais que Danto identifica como paralelas à Arte Pop:
Em termos de estratégias do mundo da arte, a pop americana, o realismo capitalista alemão e a arte Sots russa poderiam ser vistos como tantas outras estratégias de ataque a estilos oficiais – o realismo socialista na União Soviética, naturalmente, mas também a pintura abstrata na Alemanha, onde a abstração era em si mesma altamente politizada e sentida como único modo de pintura aceitável (facilmente compreensível em termos do modo como a figuração foi politizada sob o nazismo), e mais tarde o expressionismo abstrato nos Estados Unidos, que também se tornou um estilo oficial.29
Se Danto coloca o Realismo Socialista (atrelado ao stalinismo) junto aos movimentos abstratos é porque, novamente, o seu realismo é pós-histórico, e não narrativo-estilístico. Na verdade, conforme Foster sublinha ao fim do livro supramencionado, a noção pós-histórica na arte procede em larga medida do apagamento da aura artística que Benjamin descreveu de forma ambígua em seu mais conhecido ensaio. De um lado, a reprodutibilidade técnica possui um potencial de emancipar a arte de sua dimensão ritual, tornando a cultura mais horizontal; de outro, também apresenta um potencial ideológico, pois permite que a política se torne cada vez mais espetacular. Noutros termos, “Socialismo ou fascismo? É o que Benjamin pergunta no mais dramático ultimato da crítica modernista”.30 Com isso, podemos finalmente retomar a problemática com a qual iniciamos este estudo: a associação controversa que Danto estabelece entre a arte modernista e os totalitarismos do século XX.
Considerações ainda/quase póstumas
Ao traçar essa analogia, Danto quis apontar a agenda implícita de Greenberg: “é uma crítica a uma obra de arte impura, e isso quer dizer, que contenha uma mistura de qualquer outro meio exceto ela mesma. Torna-se um reflexo crítico padrão dizer que essa arte mesclada não é realmente pintura, ou nem mesmo arte”.31 Ou seja, se Safatle tem razão ao dizer que “A recusa da abstração tem razões políticas, e não apenas razões estéticas”32, parece claro que o mesmo pode ser dito sobre a recusa do realismo. E embora Danto se refira ao texto “Pintura modernista”, de 1960, talvez um texto mais antigo, “Vanguarda e Kitsch”, de 1930, seja mais emblemático para o argumento até aqui desenhado. Ao estabelecer uma distinção axiomática segundo a qual o kitsch utiliza os efeitos da arte para persuadir as massas, enquanto a vanguarda investiga e subverte os artifícios artísticos, Greenberg colocou o Realismo Socialista, bem como outras formas de arte totalitária, ao lado da cultura de massa comercial do Ocidente.33 Em contrapartida, o crítico russo Boris Groys argumenta que
[...] os artistas da vanguarda clássica europeia e russa eram bastante atraídos pelas novas possibilidades oferecidas pela produção e disseminação em massa de imagens. [...] Todavia, os artistas modernistas também rejeitavam o “bom” gosto elitista da classe média. Os artistas de vanguarda desejavam criar um novo público, um novo tipo de ser humano que compartilhasse seu próprio gosto e olhasse o mundo através de seus olhos. Eles procuravam mudar a humanidade, não a arte. O derradeiro ato artístico não seria a produção de novas imagens para um público antigo ver com velhos olhos, mas a criação de um novo público com novos olhos.34
Os pintores realistas de Stalin, pois, ao contrário do esquema greenberguiano, herdaram o ethos vanguardista de mirar em massas que ainda teriam de ser criadas. As vanguardas precedentes, como o Suprematismo e o Construtivismo, só não miravam no futuro porque a ruptura radical com o passado já teria acontecido, de sorte que o famoso Quadrado negro fora apresentado por Malevich como o grau zero de uma nova cultura. No sentido diametralmente oposto, Danto acredita no fim da história e adere ao presente em detrimento do futuro. E o faz por ter testemunhado um evento que ele assume ser de um radicalismo incomparável: não uma revolução do proletariado e tampouco o triunfo derradeiro do capitalismo (na esteira de Fukuyama), mas a simples abertura do mundo da arte ao mundo ordinário. Novamente, Boris Groys esclarece de maneira sintética o que estava em jogo nesse vislumbre:
Desde Duchamp, a arte moderna tem praticado a promoção de “meras coisas” ao status de obra de arte. Esse movimento para cima criou a ilusão de que ser obra de arte é algo superior e melhor que ser simplesmente real, ser simplesmente uma coisa. Mas, ao mesmo tempo, a arte moderna passou por um longo período de autocrítica em nome da realidade. O nome “arte” era usado nesse contexto mais como acusação, como forma de denegrir. Dizer que algo é “mera arte” é um insulto ainda maior que dizer que é mero objeto. [...] A fascinação por imagens do sublime político, que agora podemos ver em quase todo lugar, pode ser interpretada como caso específico de nostalgia pela obra-prima, pela imagem verdadeira e real.35
Ocorre que, a despeito do impacto que Danto vislumbrou na arte pós-histórica, sua tese foi muitas vezes lida como inofensiva, isto é, nem crítica, nem radical o suficiente – porque, em suma, investe na lógica conciliatória da inclusão generalizada, e não na lógica moderna da elevação, da autonomia e da crítica. Assim como Warhol, essa postura de Danto é com frequência lida como ironia cínica, quando, na verdade, chega a ser otimista em sua crença de uma abertura definitiva, quase idílica, do mundo da arte, como se as narrativas pudessem ser pacificamente apropriadas e não mais disputadas. Talvez seja um otimismo similar ao de Alexandre Kojève, em suas famosas palestras na década de 1930 sobre a filosofia da história de Hegel, em que ele apontava claramente o stalinismo como o fim da história. Já os sucessores de Kojève, ao contrário, eram pessimistas sobre o que chamavam de pós-história ou pós-moderno: para estes, teria sido a vitória do capitalismo de livre-mercado após a Guerra Fria ou a queda do Muro de Berlim que conduziria ao estágio final da história.
Eles estavam certos, assim como alguém como Mark Fisher, influente crítico cultural na década de 1990 (embora alheio ao mundo da arte), foi assertivo ao se apropriar criticamente do “realismo capitalista” – que, no contexto da Arte Pop alemã, não passava de uma referência paródica ao Realismo Socialista. “O realismo capitalista, como o entendo, não pode ser confinado à arte [...]. Trata-se mais de uma atmosfera abrangente, que condiciona não apenas a produção da cultura, mas também a regulação do trabalho e da educação”.36 Sob esse prisma, o realismo de Danto é não apenas otimista, como também reacionário, mas o fato é que a apropriação crítica por parte de Fisher de uma noção originalmente restrita ao mundo da arte acaba por reiterar a tese de Após o fim da arte, justamente ao deslocar o horizonte realista a uma compreensão muito mais abrangente do que qualquer teoria da arte jamais conseguiu ser. A própria rigorosidade analítica que Fisher emprega para escrutinar o realismo capitalista não deixa de reafirmá-lo, ainda que negativa e criticamente.
O realismo assumido por Danto, enfim, não pode ser refutado porquanto nada refuta. É uma concepção totalitária que não apenas foi efetiva para fazer frente a um programa teórico igualmente totalitário, como também veio a encarnar, de fato, a velha cumplicidade liberal em nome das diferenças, da diversidade e da multiplicidade. Mas o impasse pós-histórico que atravessa esse mesmo horizonte realista se traduz na repetição eterna, como em Fisher e em Danto, de enunciados fatalistas ou de contestação como se fossem feitos pela primeira vez. Nada é mais fácil do que dizer que tudo já foi dito e historicamente superado ou, ao contrário, que tudo ainda há de ser dito e historicamente superado. Mais difícil é reconhecer quando, nos termos de Boris Groys, “os envolvidos na luta não estão, na verdade, lutando de forma alguma, mas simplesmente ossificados em posição de batalha”.37
Referências
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