Os mundos da arte e a arte em novas mídias
A primeira década do século XXI foi extremamente frutífera para a arte digital. Segundo Marchese, as diversas inovações computacionais em termos de hardware e software e o acesso amplo a informações pela internet proporcionaram instrumentos para a criação de obras de artes singulares e colaborativas.1 Diversas exposições, bienais e sites passaram a apresentar obras em novas mídias, e gradativamente museus importantes aumentaram a porcentagem de aquisições de obras computacionais, como por exemplo, no exterior, o New Museum, Museum of Modern Art, MoMA PS1, Victoria & Albert Museum e, no Brasil, o Museu Nacional da República, entre outros. Se nessa primeira década já se configuravam espaços propícios para a difusão e para a criação desse tipo de arte, na segunda década e no início da terceira década pode-se afirmar que estes espaços se ampliaram ainda mais. Segundo Drucker2, no fim do séc. XX os artistas se colocavam em uma posição desafiadora entre o consumismo e a inovação artística de ponta, em um campo que muda com grande velocidade, sendo que esse dilema vai continuar existindo nas décadas seguintes.
Neste artigo, examinaremos como a arte em novas mídias se posiciona em relação aos mundos da arte, partindo de considerações sobre textos de Manovich3 e também de Scrivener e Clements4, os quais recuperaram os conceitos de Becker5 sobre os mundos das artes. Em seguida discorreremos sobre a ampliação desses mundos/espaços, e como novas formas de difusão, atribuição e de comercialização caracterizam as primeiras décadas do século XXI, configurando um cenário propício para a atividade e para o experimentalismo dos artistas, abrindo novas perspectivas. Ao final, apresentamos breves considerações sobre o sucesso recente de vendas de obras de arte em forma de tokens não fungíveis (NFTs) e como elas impactam os mundos das artes.
No final do século XX, mais especificamente no ano de 1996, foi publicado um pequeno texto no website Rhizome pelo pesquisador Manovich com o propósito declarado de provocar uma discussão sobre o que ele vislumbrava naquele momento como a impossibilidade de convergência entre o “mundo da arte” e o “mundo da arte computacional”. O título do texto, “The Death of Computer Art”, por si só sugere uma perspectiva negativa, como se se tratasse da extinção da arte computacional, ideia essa que não é desenvolvida nele de forma direta, mas que poderia talvez ser inferida como uma morte que resulta dos conflitos insuperáveis brevemente descritos por ele.
Manovich6 afirma de maneira contundente no texto que a convergência entre esses dois mundos não iria acontecer, e a esse respeito lista uma série de razões. Segundo ele, não se deve esperar que o mundo da arte, a “terra de Duchamp” [Duchamp-land], composto por galerias, grandes museus e jornais de arte prestigiados, aceite algum dia o mundo da arte computacional, chamado de “mundo de Turing” [Turing-land], exemplificado por ISEA, Ars Electronica, SIGGRAPH, etc, estes últimos sendo conferências, festivais e exposições dedicadas à discussão e exibição de obras computacionais. Segundo ele, o motivo principal dessa não aceitação seria justamente o fato de que a terra de Duchamp “quer a arte e não quer a pesquisa em novas possibilidades estéticas das novas mídias”.7
Nesse sentido, ele afirma que a terra de Duchamp teria como características: dirigir seu interesse em direção ao “conteúdo” das obras; e ser complicada e irônica, ironia essa que se manifesta como autocrítica muitas vezes destrutiva em relação ao seu próprio material (sua tecnologia). Por outro lado, a terra de Turing possui características opostas: estar direcionada para o estado da arte da tecnologia computacional em detrimento do conteúdo; e ser simples e não possuir ironia, sendo para ele a sua característica mais importante a de que os objetos produzidos levam a tecnologia que eles utilizam sempre a sério. Entretanto, ele admite em seu texto que, apesar de haver uma batalha entre os dois territórios, a terra de Duchamp finalmente descobriu os computadores e começou a utilizá-los com sua usual ironia e sofisticação, afirmativa essa que aponta para um caminho de convergência entre esses dois mundos que até então seria improvável, mas que se mostraria, como veremos adiante, uma tendência futura.
Manovich acredita que, apesar desse fato, eventos como o ISEA e ARS Electronica não deveriam ser abolidos, pois eles “desempenham uma função importante de ser uma zona neutra, uma interface onde o mundo da cultura em geral e o mundo da cultura computacional se encontram”.8 A forma com que essa problematização é enunciada deixa claro que ele vislumbra espaços distintos da arte, aqui traduzidos pelo sufixo “-land”, ou seja, territórios/mundos diferentes em que percepções e valores parecem ser incompatíveis, mas que se comunicam de uma maneira incipiente. O conflito enunciado por Manovich já naquele momento e seus desdobramentos irão marcar o desenvolvimento da arte digital nas duas décadas seguintes.
Quatorze anos mais tarde, uma outra percepção dos diferentes territórios relativos ao mundo da arte foi apresentada por Scrivener e Clements.9 Eles resgataram as teorias de Becker10 sobre os mundos das artes, entendendo que um mundo da arte pode ser compreendido como uma rede de laços de cooperação entre os participantes. A partir de uma perspectiva sociológica, Becker afirmava que as obras de arte são frutos dos mundos nos quais elas estão inseridas. A esse respeito, ele dizia caracteristicamente que “obras de arte [...] não são produtos de fazedores individuais, ‘artistas’ que possuem um dom raro e especial. Elas são principalmente um produto coletivo de todas as pessoas que cooperaram através das convenções características do mundo da arte para levá-las à existência”.11 Ele afirma que os mundos da arte não possuem bordas definidas em seu entorno, sendo que sua definição não tem como objetivo delimitar e separar um determinado grupo do resto do mundo, mas sim mostrar como a cooperação entre pessoas em grupos produz coisas que são chamadas de arte. Segundo ele, sua definição de mundo da arte é utilizada como uma abreviação para a noção de “redes de pessoas cooperando”.12
Os conceitos de mundos da arte elaborados por Becker, Scrivener e Clements afirmam existir três mundos [loci] da arte, a saber, o mundo da arte da galeria (galerias públicas e comerciais, museus e outros espaços expositivos), o mundo da arte das novas mídias e o mundo da arte acadêmico. Sua interação triangular acontece de uma forma complexa, de modo que esses três espaços, ao mesmo tempo em que se relacionam entre si, também falham na tentativa de se relacionar de forma harmônica. Eles afirmam que na atualidade assistimos a uma valorização da prática da pesquisa artística, uma vez que a produção da arte é vista como uma função acadêmica legítima, aproximando a academia do mundo da galeria. Assim, a institucionalização cada vez mais crescente da pesquisa em arte dentro do mundo da academia desenvolve uma relação produtiva entre as novas mídias e a pesquisa. Por outro lado, eles notam que a pesquisa em arte dentro da academia funciona de forma independente dos imperativos do mundo da galeria, o qual não necessariamente se beneficia dos produtos das pesquisas que são desenvolvidas. Dessa forma, eles identificam uma situação de mudança de cenário, onde existem conflitos e consensos entre o mundo da academia e o mundo da galeria, os quais são vizinhos e algumas vezes inimigos.
A dificuldade em definir o território do mundo da arte das novas mídias é ainda maior, pois “os problemas de demarcação dos mundos da arte, já encontrados, se multiplicam quando abordamos o mundo das novas mídias artísticas. Isso se deve, em parte, à constante revolução da base tecnológica das novas mídias”.13 As novas mídias possuem uma aliança histórica em relação ao mundo da academia, visto sua origem em pesquisas relacionadas ao campo da computação, o que segundo eles facilita de uma certa forma a sua interação. Sinal disso seriam as pesquisas que são desenvolvidas sobre a arte digital dentro da academia e as conferências organizadas por pesquisadores da área, todas elas com um forte caráter transdisciplinar. Outro sinal seria a criação de novos centros de pesquisa e programas de pós-graduação na área de artes dedicados inteiramente às novas mídias.
A argumentação defendida por Scrivener e Clements14 é que o mundo da arte das novas mídias coloca desafios para o mundo da arte da galeria, o que dificultaria sua interação. Em grande medida porque os produtos artísticos produzidos com novas mídias são capazes de burlar os canais de distribuição e comercialização vigentes adotados pelas galerias e museus. Isso significa que, em contraposição aos propósitos de comercialização das obras vigentes no mundo da galeria, os artistas das novas mídias adotam muitas vezes o apagamento das noções autoriais e a ideologia de acesso livre radical, que podem resultar na defesa de valores antagônicos. Um exemplo disso seriam aqueles valores expressos pela estrutura teórica contemporânea dos bens comuns [Commons], que permite ao autor disponibilizar sua obra gratuitamente e diretamente para o público, permitindo algumas vezes até mesmo que a obra seja recriada, constituindo uma noção de comunidade. Para Elias, o termo “comum” designa “artes que apoiam e empregam espaços alternativos e performances públicas; que encorajam a participação do público no fazer artístico; que desejam minar ou redefinir a autoridade de instituições como museus, universidades e, em última instância, mercados [...]”.15 Outro desafio com que o mundo da galeria precisa lidar é como fazer o marketing e expor as novas obras. De acordo com Scrivener e Clements16, esse talvez seja o motivo por que museus e galeristas resistam ainda às obras de arte que problematizem as categorias de durabilidade e estabilidade, uma vez que as características marcantes do mundo das novas mídias são a diversidade de formatos e a mudança constante.
Segundo Scrivener e Clements17, a fotografia e o vídeo digital foram inseridos no mundo da galeria, através de sua exibição e comercialização. Contudo outras formas da nova mídia são mais desafiadoras e se circunscrevem majoritariamente em um ambiente de festivais e eventos especializados, apoiados institucionalmente muitas vezes através de departamentos de pesquisa acadêmica, dependendo financeiramente de uma mistura de cooperação, voluntariado e financiamento público. Segundo eles, “a situação está longe de ser estável e está mudando rapidamente. É impossível predizer o que acontecerá com a pesquisa em belas artes, novas mídias ou com a exposição e curadoria da arte em novas mídias”.18
Diferentemente da previsão de Manovich de que seria impossível que o mundo de Duchamp e o mundo de Turing convergissem, e em consonância com o diagnóstico feito por Scrivener e Clements sobre a imprevisibilidade e a alta velocidade das mudanças, em muito pouco tempo, ao final da segunda década do séc. XXI percebe-se uma alteração significativa nas formas de interação entre esses mundos das artes. Os produtos artísticos em novas mídias adentraram finalmente o “mundo da galeria”, fazendo com que esses mundos se aproximem cada vez mais. Refiro-me aqui à expansão progressiva da comercialização, exibição e colecionismo de objetos de arte em novas mídias. Graham19 atesta que houve uma migração do campo da pesquisa para o campo do comércio, e argumenta que a arte digital não estaria mais restrita ao espaço experimental acadêmico, mas que ela encontrava meios de comercialização e exibição.
A ampliação do território das artes digitais, e as novas formas de difusão, atribuição e de comercialização são ainda pouco conhecidas e compreendidas, por se tratar de fenômenos recentes, e geram novas perspectivas para a produção e experimentação dos artistas. As obras de arte digitais paulatinamente passam a ser inseridas em eventos de arte, a saber bienais, feiras de arte e exposições de grande e pequeno porte, criando espaçamentos e adotando novas estratégias de circulação. Observa-se ainda que o contexto da epidemia da Covid-19 reforçou a importância da comercialização, exibição e colecionismo de objetos de arte em novas mídias, como por exemplo o sucesso dos NFT (tokens não fungíveis) no mercado da arte, que são uma espécie de certificado digital, estabelecido via blockchain, que garante sua originalidade e exclusividade. Além disso, diversas exposições, bienais e sites na internet passaram a apresentar obras em novas mídias, e gradativamente os museus aumentaram a porcentagem de aquisições de obras digitais, sendo que os espaços propícios para a difusão e para a criação desse tipo de arte se ampliam a cada dia. A ampliação desses mundos/espaços, e as novas formas de difusão, atribuição e de comercialização configuram um cenário propício para a atividade e para o experimentalismo dos artistas que atuam no campo das novas mídias digitais, abrindo perspectivas para a produção e o mercado da arte em geral.
A relação entre a teoria dos mundos da arte de Becker e a ontologia do espaço de Heidegger é crucial para compreender as transformações nos mundos da arte influenciadas pela tecnologia digital. Becker define os mundos da arte como redes de cooperação, onde a produção artística é um esforço coletivo de vários agentes que interagem e colaboram. Heidegger, por sua vez, introduz o conceito de espaçamento, que se refere à abertura e criação de novos espaços para a experiência e a prática artística. Esse conceito é essencial para entender como a arte digital não apenas cria novos espaços físicos e virtuais, mas também redefine os limites e as interações dentro dos mundos da arte. A articulação entre essas teorias permite uma análise mais profunda das dinâmicas de colaboração e da expansão espacial que caracterizam a arte em novas mídias.
Além disso, o impacto dos NFTs no modelo de triangulação dos mundos da arte proposto por Scrivener e Clements merece uma reflexão mais detalhada. A arte digital, historicamente associada ao mundo acadêmico devido ao financiamento e suporte para pesquisa e inovação tecnológica, encontra nos NFTs uma nova via de comercialização que desafia as estruturas tradicionais. Com os NFTs, surgem novas oportunidades de financiamento que podem efetivamente segmentar o mundo da arte das novas mídias, proporcionando maior autonomia em relação aos mundos das galerias e da academia. No entanto, é importante considerar se essa comercialização dos NFTs representa uma verdadeira transformação ou apenas uma extensão do sistema comercial tradicional, adaptado às novas tecnologias. A partir da perspectiva do espaçamento de Heidegger, seria possível explorar criticamente como essas novas formas de difusão e comercialização impactam a natureza e a essência da arte digital, e questionar se elas realmente promovem a inovação e a liberdade artística ou se mantêm as obras digitais dentro das limitações dos sistemas existentes.
O espaço expandido das novas mídias e o advento dos NFTs
O conceito de espaço parece de algum modo estar mais afeito à experimentação do que à teorização. Nesse ponto, convém lembrar das considerações de Heidegger sobre o conceito de espaço. Heidegger afirma a dificuldade de definição do conceito de espaço e propõe que “aquilo que é próprio do espaço, é necessário que se mostre a partir dele mesmo”, ou seja, para compreendermos o espaço como fenômeno é preciso experimentá-lo, vivenciá-lo. Heidegger afirma ainda que “enquanto não fizermos a experiência da propriedade do espaço, falar de um espaço da arte mantém-se obscuro. A maneira como o espaço comporta e atravessa a obra de arte fica, para começar, na ambiguidade”.20 Poderíamos depreender a partir dessas postulações que existiria uma impossibilidade de definição teórica do que seja o espaço da arte e que haveria um imperativo de que se experimente na prática esse espaço para poder compreendê-lo. Heidegger fala também do conceito de espaçamento que está contido na noção de espaço, denotando liberdade, abertura e desbravamento de caminhos inóspitos [die Wildnis freimachen]. Segundo ele o espaçamento é “libertação de lugares”.21
Tendo em vista essas considerações, o experimentalismo cultural característico do início do século XXI, portanto, parece ser um fator determinante nas intercessões e na ampliação dos espaços da arte, os quais promovem um espaçamento, uma quebra de fronteiras e uma libertação dos espaços tradicionais da arte, com grande dinamismo. Todas essas mudanças e interseções dos mundos da arte sobre as quais discorremos se dão em um cenário cultural onde o acesso aos instrumentos científicos e às tecnologias da informação se popularizaram enormemente. Segundo Gere22, a cultura atual pode ser caracterizada como uma cultura experimental, onde a mesma tecnologia utilizada por um blogger, um membro das redes sociais ou um artista é mais ou menos semelhante àquela utilizada por um jornalista ou por um cientista trabalhando com o DNA ou com a vida artificial. Guardadas as diferenças entre as atividades citadas, ele ressalta que existe um modo dominante de engajamento e produção que é o modo experimental. Ao mesmo tempo, percebemos que as pessoas comuns têm acesso a várias ferramentas para produção e reprodução de arte digital em aparelhos portáteis, fato este que fomenta potencialmente o fazer artístico.
Cauquelin afirma que o advento da imagem virtual abalou o mundo da arte e seus valores, gerando desconforto para os críticos e teóricos, os quais em sua maioria se silenciaram e não reconheceram devidamente o status artístico das novas mídias.23 A estudiosa aponta para a criação de sites artísticos, os quais tornam-se um espaço compartilhado na internet, visando à troca interativa de projetos e à criação conjunta de obras, possibilitando assim que o público utilizador possa também se tornar artista. Utopicamente, este movimento levaria à construção de uma “cidade das artes virtuais”, espaço compartilhado onde todos seriam artistas, a despeito do aval das instituições que formariam o sistema das artes no sentido tradicional, demandando uma renovação do próprio conceito de arte.24
Percebe-se que esse desconforto com a imagem virtual descrito por Cauquelin não estava restrito apenas a críticos e teóricos das artes, mas se manifestava também na relutância de muitos artistas e curadores em explorar esse novo território. Sinal disso é que, nas grandes exposições, a presença de arte computacional (além da fotografia e do vídeo digital) é muito pequena, algumas vezes discreta e até mesmo inexistente. Mas esse cenário está mudando rapidamente, o que pode ser observado pela introdução gradual, por exemplo, de obras em realidade virtual e em realidade aumentada em grandes exposições e festivais de artes visuais. Citando algumas amostras dessa mudança, poderíamos mapear a presença de obras desse tipo em alguns eventos de destaque no ano de 2017, por exemplo, que foi marcado pela inserção da tecnologia da realidade virtual em grandes eventos de arte:
- O Festival de Cinema de Cannes incluiu pela primeira vez em sua competição um filme em realidade virtual do diretor Alejandro G. Inarritu, intitulado Carne y Arena [Meat and Sand].
- Na Documenta 14, houve uma exposição com duração de 7 horas da instalação em realidade virtual Integrated Space Transducer de MSHR como parte do Hallucinations / Live / Cinema / Festival.
- Na 57a Bienal de Veneza, por sua vez, pela primeira vez foi criada uma sessão especial no Festival de Cinema, com a inauguração da primeira competição dedicada apenas a filmes em realidade virtual. O pavilhão russo nessa mesma edição da bienal apresentou a obra em realidade virtual Blocked Content, do Recycle Group.
- A Tate Modern usou pela primeira vez em uma grande exposição a realidade virtual como forma de transportar virtualmente o público para Paris no início do séc. XX, contextualizando pedagogicamente a exposição Modigliani.
Observa-se, no entanto, que nesse primeiro momento a maioria das exposições de arte que se utilizam das novas mídias se restringem muitas vezes a reproduzir virtualmente o espaço físico da exposição, ou utilizam na exposição física equipamentos digitais que servem de suporte para a mediação educacional (como é o caso da Tate Modern citado acima) em vez de apresentar obras construídas com a utilização dessas mesmas tecnologias. Como afirma Graham,
ainda que a mídia digital possa apresentar diferentes tipos de conteúdos, e suas ferramentas podem ser utilizadas para vários propósitos, algumas formas são dominantes: ande pela maioria das galerias de arte e museus, e você pode afirmar com razão que computadores, fones de ouvido digitais e guias auditivos apresentam educação sobre a arte, ao invés de arte. Obras feitas para telas usa a interação para informar através do engajamento, as páginas web dos museus distribuem 24 horas por dia, e as bases de dados de coleções de arte digitalizadas ou arquivos podem ser pesquisadas, manipuladas e marcadas.25
O fato é que, durante as primeiras décadas do século XXI, as novas mídias digitais começaram a ser cada vez mais utilizadas também pelos artistas. Devido ao grande investimento feito nas novas tecnologias, os equipamentos se tornaram economicamente acessíveis, beneficiando assim a produção de obras artísticas inovadoras. Contudo, observa-se que há uma preferência na utilização de suportes já estabelecidos e aceitos pelo mercado da arte em detrimento de formatos que envolvam processos inovadores de investigação laboratorial e sistemática.26 Segundo constatação de Manovich, poucos artistas se dedicam a investigar o que seriam as formas e os procedimentos equivalentes nas formas das novas mídias. Ele cita como exemplo “a filmagem, a sentença, a palavra e até mesmo a carta”.27
Um sinal de como os mundos das artes começam a se entrecruzar de uma maneira ainda mais definitiva no início da terceira década do século XXI, mas ainda mantém em certa medida paradigmas provenientes da terra de Duchamp, foi o enorme sucesso de venda alcançado com a obra Everydays: The First 5000 Days, que é uma série de desenhos e imagens criados pelo artista digital Mike Winklemann, sob o nome artístico Beeple. A obra foi leiloada em NFT pela casa de leilões Christie’s por US$69 milhões em março de 2021, tendo sido anunciada como a primeira obra de arte puramente digital a ser oferecida por uma grande casa de leilões. Após isso, a renomada casa de leilões Sotheby’s vendeu, em junho de 2021, a obra de arte digital CryptoPunk por US$11,7 milhões em seu primeiro leilão curado exclusivamente com obras de arte digitais em NFTs. A obra consiste em um avatar pixelado, parte de uma série de avatares criados pela empresa de softwares Larva Labs. Esses fatos motivaram a Sotheby’s a inaugurar uma galeria virtual no mundo da blockchain, Decentraland. Seu objetivo é atrair atenção de colecionadores de arte digital monopolizando o mercado da arte em NFT. A galeria inaugurada é uma réplica digital de seu espaço físico em Londres na rua New Bond, situada virtualmente na rede da metaverse construída no sistema do Ethereum, localizada no Voltaire Art District do Decentraland. A galeria possui cinco andares expositivos dedicados à exposição de arte digital. Ao adentrar o espaço, um avatar do agente de vendas da loja em Londres, Hans Lomulder, recepciona os visitantes. Trata-se, até onde entendemos, de uma mera transposição do espaço físico da galeria para o virtual, o que nesse momento não representa uma novidade.
Esses exemplos mostram como finalmente a arte digital encontra um meio de comercialização que abre caminhos para seu desenvolvimento futuro. No entanto, como observamos, ela continua reproduzindo em certa medida a lógica com a qual opera o mercado da arte tradicional, transpondo a casa de leilão física para o espaço virtual. Além disso, e talvez aí resida o ponto principal, assistimos à substituição do certificado de garantia físico pelo digital, o NFT, que promete prover maior segurança ao colecionador, uma vez que permitiria, por exemplo, mapear com facilidade o percurso da obra de arte desde seu criador inicial até chegar às mãos do comprador, além de garantir ao artista as porcentagens dos valores relativos aos seus direitos autorais em cada revenda da obra. Em realidade, o registro das obras de arte na blockchain, seja através dos NFTs, seja através de outras redes diferentes, é uma novidade recente. Esse registro beneficia não apenas as obras de arte digitais, mas também físicas, trazendo mais controle para os colecionadores de maneira geral. O que há de fascinante nesses casos de sucesso relatados não consiste na originalidade ou na inovação do ponto de vista tecnológico empregado no processo de construção das obras, mas sim no uso da tecnologia inovadora do blockchain na sua comercialização. Outro ponto que merece destaque é o entrecruzamento, ainda incipiente, mas sobretudo marcante, do mundo da arte digital com o mundo da galeria, impulsionando os artistas das novas mídias em direção à comercialização de suas obras.
Nesse sentido, podemos afirmar que a pandemia do Covid-19, ocorrida no contexto de uma cultura híbrida entre o físico e o digital, também chamada pós-digital, foi o elemento catalisador que promoveu o empurrão definitivo para o digital, tendo em vista as restrições de circulação das pessoas no mundo físico. Esse empurrão apenas acelerou processos que já estavam acontecendo, mas que ganharam um impulsionamento a partir do momento em que todas as pessoas em uma escala global se viram obrigadas a frequentar e explorar mais os espaços digitais. A continuidade e o desenvolvimento desses fenômenos ainda irão ser estudados no futuro, mas o certo é que representam caminhos bifurcados, ou trifurcados se quisermos, em que os espaços das artes acabam se encontrando, e onde novos espaçamentos são produzidos, convidando os artistas e o público à experimentação.
Em conclusão, este artigo buscou explorar as complexas interseções entre os mundos da arte e a arte em novas mídias, destacando como as teorias de Becker sobre os mundos da arte e o conceito de espaçamento de Heidegger podem fornecer uma compreensão mais profunda dessas dinâmicas. As novas formas de difusão e comercialização, especialmente através dos NFTs, demonstram um potencial transformador, mas também levantam questões sobre a verdadeira natureza dessas mudanças no contexto das artes digitais. Ao analisar criticamente esses desenvolvimentos, foi possível perceber tanto as oportunidades quanto os desafios que se apresentam para os artistas e as instituições artísticas no século XXI. A reflexão sobre o impacto dos NFTs e a expansão dos espaços artísticos oferece uma visão abrangente do cenário contemporâneo, onde a tecnologia não só redefine os limites e interações dos mundos da arte, mas também exige uma constante reavaliação dos conceitos e práticas estabelecidos.
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