O meu encontro com Arthur Danto
Rodrigo Duarte

Advindo de treinamento filosófico numa tradição marcadamente continental –especialmente germânica – minha experiência com a filosofia anglo-saxônica, talvez mais ainda com a estadunidense, era, até a primeira metade da década de 2000, muito modesta. Em se tratando, especialmente, de vertentes analíticas e/ou neo-pragmatistas ela se limitava a leituras, que se revelaram não particularmente frutíferas, de Languages of Art, de Nelson Goodman, e de Philosophy and the Mirror of Nature, de Richard Rorty. Talvez por isso, apesar de, desde meados dos anos 1990, eu sempre ouvir falar de Arthur Danto como um autor destacado na área de estética – o meu campo preferencial de ensino e pesquisa –, até aproximadamente o início desse século/milênio certo preconceito que eu nutrira por aquilo que eu pensava ser o pensamento do filósofo norte-americano tinha me afastado da leitura, mesmo desatenta, de sua obra.

Isso começou a mudar quando, em 2005, ao redigir o meu texto “O tema do fim da arte na estética contemporânea”, percebi que não bastava incluir um breve comentário sobre o enfoque de um autor como Heidegger, com o qual nunca tive qualquer proximidade, mas que eu deveria também abordar o ponto de vista de Danto sobre o prognóstico hegeliano da superação dialética da arte. Nesse momento, comecei a ler Após o fim da arte, que me agradou muito não apenas pelo estilo fluido, preciso e, muitas vezes, irônico de Danto, mas – tendo em vista o meu projeto de incorporar no texto que eu redigia o seu ponto de vista sobre o fim da arte – pelo caráter quase memorialístico no tocante à sua já então longa e brilhante trajetória intelectual. O resultado dessa leitura foi, além de uma primeira apropriação dos conceitos mais elementares da estética de Danto, o imediato abandono da prevenção que até então eu tinha, associada à devoração de todos os textos do autor que se encontravam mais facilmente disponíveis.

Devo dizer que, analisando a biografia intelectual de Danto, assim como a sua produção bibliográfica, me chamou a atenção o fato de que, apesar de sua formação filosófica ter se dado num ambiente totalmente analítico, tendo o segundo Wittgenstein desempenhado nela um papel preponderante, ele publicou, em 1965, um livro sobre Nietzsche (Nietzsche as Philosopher) e, dez anos depois, uma obra sobre Jean-Paul Sartre (lançada no Brasil, no mesmo ano, com o título As ideias de Sartre). Chamou igualmente a minha atenção que o seu projeto de meio de carreira, de produzir obras de filosofia analítica aplicadas a subáreas específicas da filosofia em geral, tais como Filosofia analítica da história (1965), Filosofia analítica do conhecimento (1968) e Filosofia analítica da ação (1973), foi como que implodido por sua crescente ocupação com a estética e a filosofia da arte. Um dado curioso quanto a isso é que sua “conversão” a essa subárea da filosofia ocorreu a partir do impacto que as Brillo Boxes de Andy Warhol tiveram sobre Danto por ocasião de sua visita à exposição do artista no primeiro semestre de 1964.

Outros dados biográficos de Danto me chamaram igualmente a atenção: até o momento em que foi impactado pelas caixas de Brillo de Warhol, ele tinha a pintura como hobby, tendo abandonado essa atividade por considerar que a arte contemporânea trilharia caminhos muito divergentes do que ocorrera até então. Registre-se que, a partir de 1984, ele foi crítico de arte da Revista The Nation, tendo sido um dos poucos filósofos que tiveram a oportunidade de exercer esse tipo de atividade intelectual, que pressupõe uma lida próxima e permanente com obras de arte. Além disso, vale o registro de que, apesar de, como a maioria esmagadora dos scholars estadunidenses, Danto nunca ter sido uma pessoa de esquerda, ele sempre teve uma militância por direitos humanos, tendo sido membro da direção da Anistia Internacional entre 1970 e 1975 e co-diretor do Center for Study of Human Rights da Columbia University em 1978.

Esses dados bio-bibliográficos de Danto atiçaram sobremaneira minha curiosidade intelectual sobre sua obra e isso ocorreu quase ao mesmo tempo em que o meu texto sobre o fim da arte na estética contemporânea ficou pronto. Esse momento foi o segundo semestre de 2005, tendo o texto incorporado, além das menções previamente concebidas a Hegel, a autores neo-marxistas como Adorno, Benjamin, Marcuse e ao ontólogo Heidegger, dentre outros, uma menção não muito longa, mas precisa ao ponto de vista de Danto. Esse texto serviu de base para uma palestra, proferida no Seminário “Arte no Pensamento”, em Vila Velha, no Espírito Santo, em março de 2006, tendo sido publicado no livro homônimo, organizado por Fernando Pessoa, que reuniu os textos das contribuições dos conferencistas do evento.1

Além da inclusão da menção a Danto nesse texto, destaco dois resultados práticos dessa primeira abordagem da estética de Danto: em primeiro lugar, uma tradução que fiz do seu artigo seminal “O mundo da arte” – primeira abordagem filosófica da pop art –, que foi publicada no número 1 da Revista Artefilosofia (julho de 2006). Em segundo lugar, a oferta de uma disciplina no PPG-Filosofia da UFMG sobre a estética de Danto, no primeiro semestre letivo de 2006. Esse curso, na forma de seminário de leitura e discussão de textos, incluiu escritos como “O mundo da arte”, “O descredenciamento filosófico da arte”, “O fim da arte”, capítulos de A transfiguração do lugar comum e de Após o fim da arte, além de textos mais curtos publicados por Danto em coletâneas organizadas por ele mesmo. Esse curso despertou o interesse de vários alunos da Linha de Pesquisa “Estética e Filosofia da Arte” e também de programas de pós-graduação de outras subáreas de humanidades e de artes. Ao que tudo indica, salvo engano de minha parte, esse foi o primeiro curso sobre a estética de Danto oferecido num departamento de filosofia no Brasil (provavelmente isso já não seria novidade em cursos de teoria das artes plásticas ou congêneres).

Ainda nesse primeiro semestre de 2006, se não me falha a memória, no dia vinte de março, resolvi fazer um contato por e-mail com Arthur Danto, apresentando-me como um pesquisador voltado para a Teoria Crítica da Sociedade, que, pela via comum da reflexão sobre o fim da arte na Contemporaneidade, estava bastante interessado no pensamento estético dele, o qual não me parecia totalmente incompatível com a estética de Theodor Adorno — principal referência do meu trabalho teórico. Para minha surpresa, poucas horas depois de ter enviado a minha mensagem, recebi uma amável resposta de Danto, interessando-se pela minha pesquisa e declarando que, embora a chamada Escola de Frankfurt não tenha desempenhado qualquer papel na sua formação intelectual, ele tinha conhecimento de “pesquisadores mais jovens” que procuravam aproximar o seu enfoque ao de Adorno. Na ocasião, ele relatou que em 1973, num período em que esteve como professor visitante na Universidade da Califórnia em San Diego, conheceu Herbert Marcuse pessoalmente, ressaltando a sua elegância e abertura intelectual, ao debater questões estéticas com ele — um filósofo de filiação muito diferente da sua própria. Numa mensagem posterior, o indaguei sobre quem seriam esses “pesquisadores mais jovens” e ele mencionou Lydia Goehr, de quem se tornara também um amigo próximo desde os anos que se seguiram à sua aposentadoria da Columbia University, em 1992. Além de contatos ocasionais com Lydia Goehr em eventos no exterior (Braga, em 2012, e Graz, em 2023), vale o registro de que um ensaio seu, que aproxima ambos autores, tendo John Cage como mediação, intitulado “As narrativas modernistas de Danto e Adorno (e Cage)” foi publicado no livro Ensaios sobre música e filosofia, organizado por mim e Vladimir Safatle.2

No mesmo ano de 2006, eu tinha programado uma viagem a Nova Iorque, no mês de julho, com o objetivo de obter material para a pesquisa que eu então desenvolvia, e perguntei a Danto se ele se disporia a se encontrar comigo enquanto eu estivesse lá, em horário e local evidentemente determinado por ele. Danto, mais uma vez, deu mostras de simpatia e generosidade, ao me convidar, juntamente com minha mulher, Myriam, para passar a tarde de 25/07 com ele e a sua esposa, a pintora Barbara Westman, no seu apartamento na Riverside Drive, não muito longe da Columbia University. Aceitamos, naturalmente, o convite e tivemos um encontro muito prazeroso, regado a queijos e vinhos franceses, fato que confirmou a minha impressão anterior de que Danto — tendo residido na França entre 1949 e 1950 — era também um grande francófilo. Levei para ele livros com reproduções de artistas brasileiros e, em retribuição, ele me presenteou com um exemplar do recém-publicado Unnatural Wonders: Essays from the Gap between Art and Life, com uma simpática dedicatória. A conversa fluiu solta por algumas horas e, antes de sairmos, Myriam fez algumas fotos para registrar o evento, sendo que uma delas se encontra reproduzida aqui.

Nesse período, a apropriação que eu fazia da filosofia dantiana da arte prosseguiu com a retomada de um tópico da estética de Adorno que eu já abordara, mas que ganhou novos contornos depois de minhas leituras do pensador estadunidense, a saber, a “desartificação da arte” (em alemão: Entkunstung der Kunst). Em Adorno, essa significa, antes de tudo, o resultado das ações da indústria cultural no sentido de esvaziar a arte propriamente dita, neutralizando a sua “promessa de felicidade”. Há, entretanto, na estética adorniana também a possibilidade de uma leitura mais positiva da desartificação, segundo a qual todos os fenômenos de anti-arte, produzidos pelos próprios criadores mais radicais, podem ser lidos como imunizantes contra as espoliações da arte no mundo administrado. De acordo com a interpretação que eu fiz nesse momento, esse segundo sentido da desartificação vinha ao encontro do que Danto concebeu no seu texto “O fim da arte”, como “arte pós-histórica”. Essa reflexão foi exposta principalmente no texto “A desartificação da arte segundo Adorno: antecedentes e ressonâncias”, publicado no número 2 da Revista Artefilosofia, em janeiro de 2007.

Em meados de 2007, Daisy Bregantini, editora da Revista Cult, me pediu que entrevistasse Danto, tendo ele aceitado imediatamente a minha solicitação. Elaborei questões cujas respostas pudessem satisfazer à curiosidade de um público mais amplo e não necessariamente dos campos da filosofia e das artes, e ele correspondeu totalmente às minhas expectativas (que, suponho, eram as mesmas da editoria da publicação). Eu próprio traduzi as respostas de Danto e a entrevista foi publicada na edição de setembro de 2007 (nº 117), com o título: “Arthur Danto: na arte, hoje, tudo é permitido”. A publicação teve boa repercussão tanto no público em geral quanto junto a pessoas mais próximas da filosofia e de teorias não filosóficas das artes. Vale o registro da frase provocativa de Danto a respeito de Adorno: “Nunca conheci Adorno. Ele ainda estava vivo quando parte do meu trabalho foi publicado. Teria odiado, se tivesse lido” (p. 11). No entanto, talvez por influência de Lydia Goehr, uma obra do início da década de 2000, como O abuso da beleza, não apenas considera passagens da Teoria estética, de Adorno, como até mesmo serve-se de trecho dessa obra como epígrafe de seu primeiro capítulo.3

Penso que vale a pena destacar ainda dois textos em que transparecem o tipo de apropriação que realizei de alguns dos filosofemas de Danto, que, por outro lado, têm a ver com o lado mais autoral do meu trabalho em filosofia. São eles: “Sobre a plausibilidade da arte pós-histórica no sentido estético” e “Desartificação da arte e construtos estético-sociais”. No que tange ao primeiro, o meu propósito era cotejar o sentido do adjetivo “pós-histórica”, com o qual Danto designa a arte contemporânea (i. e., a arte que já não é apenas “moderna”) com o conceito de “pós-história”, no sentido substantivo, tal como proposto por Vilém Flusser, tendo como ponto de partida a interpretação de Alexander Kojève sobre o capítulo final da Fenomenologia do espírito, de Hegel, o qual, diga-se de passagem, foi importante para a apropriação, por parte de Danto, do prognóstico hegeliano sobre o fim da arte. Kojève lê o capítulo sobre o “saber absoluto” de um modo tal que consequências até mesmo absurdas são tiradas por ele ao não qualificar e, simultaneamente, restringir o seu posicionamento sobre o fim da história. Entendo como consequência absurda, por exemplo, aceitar uma concepção de fim da história que leva a considerar que a humanidade atual já estaria vivenciando – ou em vias de vivenciar – uma época efetivamente pós-histórica. Nesse sentido, avaliei como correta a posição de Danto no sentido de restringir a indiferença entre sujeito e objeto ao âmbito da arte contemporânea. Na leitura que ele fez de Kojève, “nada agora está fora do conhecimento nem é opaco à luz da intuição cognitiva”, sendo que, segundo ele “[u]ma concepção de conhecimento como essa é, acredito, fatalmente falaciosa”. Entretanto, se esse tipo de identidade entre sujeito e objeto for restrito à arte contemporânea, isso pode ser aceito como verdadeiro e, além disso, fundamenta o que Danto qualificou como “arte pós-histórica”: “

Mas se algo se aproxima de sua exemplificação, é a arte em nosso tempo que o faz – porque o objeto no qual a obra de arte consiste é tão irradiado pela consciência teórica que a divisão entre objeto e sujeito está quase superada e não importa muito se a arte é filosofia em ação ou se a filosofia é a arte em pensamento.4

O texto “Sobre a plausibilidade da arte pós-histórica no sentido estético” serviu de base para minha palestra numa sessão plenária do XIV Encontro Nacional de Filosofia da ANPOF, em Águas de Lindoia (SP), em outubro de 2010, tendo sua versão definitiva sido publicada na Revista Trans/Form/Ação (DUARTE, 2011).

No texto “Desartificação da arte e construtos estético-sociais”, procurei mostrar como o conceito que eu cunhara, na primeira metade da década de 2000, de “construto estético-social”, para designar fenômenos de arte urbana, de origem periférica, que não se encaixam nas categorias nem de arte popular “autêntica”, nem de mercadoria cultural, tampouco na de arte stricto sensu, eventualmente podem se aproximar do que Adorno concebeu como “arte desartificada”. O problema é que, se esse conceito pode, realmente, resgatar a estética adorniana para a abordagem de fenômenos artísticos atuais da arte culta, ele não se aplica à consideração daqueles relacionados aos fenômenos considerados “populares”, o que prejudicaria a sua aproximação aos “construtos estético-sociais”. Por outro lado, a transição de um tipo de arte que Adorno chamaria de “desartificada” para fenômenos típicos das culturas urbanas, cabíveis na denominação de “construtos estético-sociais”, nunca seria um problema para a filosofia da arte de Danto. Uma prova disso é que, ao analisar a obra Fountain de Marcel Duchamp – fenômeno originário da desartificação da arte –, ele compara a inscrição “R. Mutt 1917” no seu famoso urinol invertido com as assinaturas de notórios grafiteiros estadunidenses:

A diferença entre nome e assinatura pode ter chocado o mundo da arte de seu tempo como mais estranha do que o faria hoje, quando um dos principais loci de graffiti, além dos trens de metrô, são os banheiros masculinos, e é uma convenção dessa forma de arte que seus executantes ocultem sua identidade sob noms de crayon especiais, emplastados em maneiras – não menos em formas – que distinguem muito pouco “R. Mutt 1917” de “Taki 191” ou “Zorbo 219”, a não ser pelo dígito a mais.5

O texto “Desartificação da arte e construtos estético-sociais” foi apresentado no VI Encontro do GT de Estética da ANPOF, realizado em maio de 2012, no campus da UFF, em Niterói (RJ). A sua versão final foi publicada em Viso: Cadernos de estética aplicada (DUARTE, 2013b).

É interessante observar que, até então, eu tinha incorporado referências e discussões sobre a obra de Danto em textos, os quais não eram exclusivamente dedicados ao autor. Não deixava de ser uma situação anômala, pois, no tocante a outros autores referenciais para a minha pesquisa, tais como Theodor Adorno e Vilém Flusser, eu já havia produzido inúmeros textos que tratavam exclusivamente de aspectos de suas obras. Nesse momento, vim a redigir o meu único texto totalmente dedicado ao filósofo estadunidense, intitulado “Arthur Danto e a arte após o fim da arte”. Esse ensaio pode ser considerado uma apresentação “clássica” de aspectos essenciais da obra de Danto, sob o viés de sua discussão sobre o fim da arte. O ponto de partida é a exposição de algumas articulações fundamentais do texto de Danto, produzido na primeira metade da década de 1980, intitulado “O fim da arte”. Nele, o autor propõe a equivalência entre o fim da arte e o fim da história da arte, ancorando essa última no progresso do que ele denominou “equivalência ótica”, a saber, a similitude entre nossa percepção dos objetos visíveis e o modo como os artistas plásticos os reproduziram em suas obras, desde o Renascimento até os primórdios do século XX. De acordo com Danto, a partir do Modernismo, aquela equivalência perdeu a sua razão de ser, porque, nas vertentes da vanguarda artística do Ocidente (Expressionismo, Cubismo, Construtivismos, etc.), não estava mais em questão a imitação de objetos do mundo exterior, mas a produção de obras que valessem, antes de tudo, por sua expressividade. Com o objetivo de ampliar o escopo desse ponto de inflexão para todas artes, Danto se valeu – como já se assinalou anteriormente – do ponto de vista de Hegel sobre o fim da história para estabelecer o que ele chamou de arte “pós-histórica”. Em relação ao texto anteriormente mencionado, o diferencial desse ensaio foi pôr esse ponto de vista em conexão com o livro “Após o fim da arte” de Danto, no qual ele, ao mesmo tempo em que retoma elementos de seus principais escritos, escrutina aspectos da produção artística contemporânea a partir de sua discussão seminal sobre o fim da arte. Esse meu texto foi primeiramente apresentado como palestra no evento “As rupturas da arte contemporânea”, promovido pelo SESC Nacional (RJ) e posteriormente publicado, em 2013, na coletânea organizada por Pedro Süssekind, intitulada Arte e ruptura (DUARTE, 2013a).

Em meados de 2010, Gilson Iannini, em nome da Editora Autêntica, me sondou sobre o meu interesse em traduzir para o português The Philosophical Disenfranchisement of Art e eu aceitei o convite, até porque eu já tinha traduções rascunhadas de alguns dos capítulos que eu usara no supramencionado curso sobre a estética de Danto no PPG-Filosofia da UFMG. No final de contas, foi um trabalho que demorou mais de um ano inteiro, pois, para pôr o texto em português numa forma publicável, enfrentei dificuldades enormes, tendo em vista o estilo de Danto, que mescla construções muito complexas — que desafiam a sintaxe da língua inglesa — com expressões totalmente coloquiais, que revelam o seu lado que poderia ser chamado de “pop”. Isso sem falar nos neologismos criados pelo próprio Danto, os quais constituíram o desafio ulterior de encontrar um termo em português que designasse a nuance de sentido pretendida pelo autor. Uma dificuldade peculiar que tive na tradução foi precisamente com a palavra disenfranchisement, que figura no título do livro. Para evitar confusões com os usos que o termo tem no âmbito comercial, tive que pesquisar sobre a etimologia do termo com o objetivo de propor uma tradução conceitualmente mais correta. Diversos dicionários ligam o termo à família semântica de franchise, como incorporada à língua inglesa no início do século XV, advinda do francês “enfranchiss-” que, originalmente, significava libertar e, especialmente, conferir direito de voto a uma pessoa ou coletividade. Levando-se em conta que franchise era, em termos mais correntes, uma credencial para votar, tendo em vista o significado credenciamento da palavra “franchisement”, optei por traduzir “disenfranchisement” por “descredenciamento”. Tendo em vista as dificuldades relatadas e o rigoroso trabalho de revisão por parte da Editora Autêntica, O descredenciamento filosófico da arte foi finalmente publicado apenas em 2014. Vale o registro de que estive em contato com o Danto durante todo o processo de tradução do livro e cheguei a lhe enviar, por e-mail, a primeira versão do texto em português em arquivo .docx, ao que ele reagiu muito efusivamente. Infelizmente, ele não chegou a ver a tradução publicada em forma de livro, já que ele faleceu em 25 de outubro de 2013.

Por último, mas não menos importante no trabalho acadêmico por mim realizado tendo como base a obra de Danto, faço aqui uma breve menção às orientações de pós-graduação stricto sensu que realizei desde o início da década de 2010 até hoje. Naquele momento, assumi a orientação da tese de doutorado de Rachel Cecília de Oliveira, intitulada Três questões sobre a arte contemporânea, que, de modo criativo e original, abordou o seu tema promovendo um encontro entre Danto e Flusser, tendo a tese sido defendida em 2014. Não menos criativo nem menos original foi a tese de Débora Pazetto Ferreira, Investigações acerca do conceito de arte, que mesclou, igualmente, porém sob um ponto de vista bem diferente, enfoques da estética de Danto com elementos da reflexão de Flusser sobre a pós-história. A tese foi defendida também em 2014. Posteriormente, orientei a tese de doutorado em filosofia de Rízzia Soares Rocha, intitulada O ajuizamento estético da obra de arte: uma configuração da recepção crítica a partir de Danto e Benjamin, a qual, como indica o título, aproximou as críticas filosóficas da arte dos filósofos constantes no título. A tese foi defendida em 2017. Um pouco depois disso, iniciei a orientação da tese de doutorado de Charliston Pablo do Nascimento, intitulada O papel da crítica na arte pós-histórica: um problema filosófico, que desdobrou as consequências do paradoxo de Danto ter se tornado crítico de arte logo no momento que propôs sua interpretação filosófica sobre o fim da arte. A tese foi defendida em 2021. As orientações de trabalhos de pós-graduação stricto sensu associadas à estética de Danto se estendem até o momento presente, pois a tese de Henrique Iwao, A música como arte: significação musical e a ontologia da obra de arte de Arthur C. Danto, cujo tema foi a discussão das possibilidades de aplicação do aporte dantiano sobre o fim da arte ao campo da música, foi defendida no primeiro semestre de 2023. Além disso, no momento, estou orientando a dissertação de mestrado de Thobila Gabriela de Lima Costa Sousa, cujo projeto recebeu o título de O pluralismo da arte: uma análise crítica em Arthur Danto.

Referências bibliográficas

ADORNO, Theodor. Ästhetische Theorie. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1996.

DANTO, Arthur. After the End of Art. Contemporary Art and the Pale of History. Princeton: Princeton University, 1997.

_____. The Abuse of Beauty. Chicago-La Salle: Open Court, 2003. Tradução brasileira de Pedro Süssekind: O abuso da beleza. São Paulo: WMF, 2015.

_____. “O mundo da arte”. Tradução de Rodrigo Duarte. Revista Artefilosofia, v. 1, n. 1 (julho de 2006), p. 13-25.

_____. Unnatural Wonders. Essays from the Gap between Art and Life. New York: Farrar-Straus-Giroux, 2005.

_____. “Arthur Danto: na arte, hoje, tudo é permitido”. Entrevista a Rodrigo Duarte. Revista Cult, n. 117 (setembro de 2007), p. 8-13.

_____. The Philosophical Disenfranchisement of Art. New York, Columbia Classics in Philosophy, 1986 (2005). Tradução brasileira de Rodrigo Duarte: O descredenciamento filosófico da arte. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2014.

DUARTE, Rodrigo. “Arthur Danto e a arte após o fim da arte”. In: SÜSSEKIND, Pedro (org.). Arte e ruptura. Rio de Janeiro: SESC-Departamento Nacional, 2013a, p. 71-85.

_____. “O tema do fim da arte na estética contemporânea”. In: PESSOA, Fernando (org.). Arte no pensamento. Vila Velha: Museu da Vale, 2006.

_____. “A desartificação da arte segundo Adorno: antecedentes e ressonâncias”. Revista Artefilosofia, v. 2, n. 2 (janeiro de 2007), p. 19-34.

_____. “Desartificação da arte e construtos estético-sociais”. Viso:Cadernos de estética aplicada, v. 6, n. 11 (2013b), p. 1-10.

_____. “Sobre a plausibilidade da arte pós-histórica no sentido estético”. Revista Trans/Form/Ação, v. 34, número especial 2 (2011), p. 155-173.

GOEHR, Lydia. “As narrativas modernistas de Danto e Adorno (e Cage)”. In: DUARTE, Rodrigo; SAFATLE, Vladimir (orgs.). Ensaios sobre música e filosofia. São Paulo: Associação Editorial Humanitas, 2007.

GOODMAN, Nelson. Languages of Art. Indianapolis-Cambridge: Hackett Publishing Company, 1976.

RORTY, Richard. Philosophy and the Mirror of Nature. Princeton: Princeton University, 1980.

* Rodrigo Duarte é professor do Departamento de Filosofia da UFMG
1 DUARTE, 2006, p. 376ss.
2 DUARTE; SAFATLE, 2007, p. 269ss.
3 Trata-se das primeiras linhas da Teoria estética de Adorno: “Tornou-se evidente que nada mais que diz respeito à arte é evidente, nem nela mesma, na sua relação com o todo, ou mesmo no seu direito de existência” (ADORNO, 1996, p. 9) (tradução do autor).
4 DANTO, 1986, p. 113
5 DANTO, 1986, p. 32