A voz do cachorro: Comunidade em suspenso no Matadouro de Marcelo Evelin
Daniel Guerra

Não podia deixar de pensar que me encontrava à beira da morte, e isso me parecia engraçado.
Enrique Vila-Matas

Eu amei a primeira peça de dança contemporânea que odiei. Essa é uma frase que eu não disse, mas poderia ter dito, depois de assistir à peça Matadouro (2010), do coreógrafo teresinense Marcelo Evelin com a Demolition Incorporada, em 2012.1 De toda maneira, a frase nos serve para começar, pois se ela não precisa, e não deve, pretender-se universal, ao menos pode soar estranhamente familiar: unheimlich, como um sintoma. Eu já havia assistido a outras tantas obras que se anunciavam sob a mesma classificação, “dança contemporânea”, mas foi especificamente essa, àquela altura, a que me pareceu efetivar a plena torção da ideia temporal implicada na sua rubrica, bem ao modo da intempestividade que Giorgio Agamben retoma de Friedrich Nietzsche na célebre conferência “O que é o contemporâneo?” (2009). É que se todo campo artístico, em cada época dada, encena-se a si mesmo através da reiteração incansável de clichês, sintomas formais e fetiches mercadológicos, ele também produz sua carga de diferença disruptiva. É assim que, por vezes fazendo uso de elementos formais que obras inócuas repetem por pura inércia, obtusidade ou oportunismo, a obra intempestiva traz à tona o poder crítico dessas mesmas formas que, postas a funcionar em outros dispositivos artísticos, figurariam como mero pastiche, soando mudas quanto mais tentassem falar.2 Por isso, se por um lado não acredito que devamos, ao modo dos discursos curatoriais deste primeiro quarto de século, fazer odes ao contemporâneo, por outro poderemos sempre tensioná-lo em direção a uma radicalidade, com a esperança de que, em algum ponto do movimento intensivo, sobrevenha uma dobra, ou mesmo uma abertura. Era sobre essa fissura que Agamben mantinha os olhos, ao destacar os signos da desconexão e da dissociação inerentes àassunção do pertencimento crítico ao próprio tempo:

É verdadeiramente contemporâneo aquele que não coincide perfeitamente com este [o tempo atual], nem está adequado às suas pretensões e é, portanto, nesse sentido, inatual; mas, exatamente por isso, exatamente através desse deslocamento e desse anacronismo, ele é capaz, mais do que outros, de perceber e apreender o seu tempo.3

Não deveríamos ler a palavra “verdadeiramente” como um traço essencialista do seu pensamento ou um mandato de adesão ao comportamento e às formas estéticas de um determinado período histórico. Até porque o contemporâneo agambeniano está a salvo da contemporaneidade normativa e epocal, como ele faz questão de sublinhar: “aqueles que coincidem muito plenamente com a época, que em todos os aspectos a esta aderem perfeitamente, não são contemporâneos porque, exatamente por isso, não conseguem vê-la, não podem manter fixo o olhar sobre ela”.4

As palavras “amei” e “odiei” não foram boas escolhas, porém. Mas, em se tratando da experiência estética, qual seria? Quem sabe nenhuma. Só que invocar a mudez, quando se trata da lida com o sensível estético, representaria uma postura demasiado autoritária. Pois não seria impróprio afirmar que, sobretudo, a arte faz falar. Falar diferentemente, falar diferindo, falar sempre mais.5 Isso porque não há ventriloquia possível entre artista e obra (a não ser nos ventríloquos, supostamente), tampouco um público condenado à plena captura por mensagens preestabelecidas. Algo sempre escapa. Pois é próprio das sensações, sentimentos e pensamentos serem heterogêneos. É Jacques Rancière quem nos lembra que, no “jogo livre das aparências” posto a funcionar na obra de arte (ao menos na obra constituída a partir da revolução estética, tese principal do autor), não haveria espaço para a univocidade entre intencionalidade (do artista), efetividade (da obra) e recepção (do espectador), já que é a própria divisão entre produção artística, efetividade estética e apreensão sensível que garante a sua força: “a distância não é um mal por abolir, é a condição normal de toda comunicação”6; potência que sustentaria a obra como “coisa autônoma, entre a ideia do artista e a sensação ou a compreensão do espectador”.7 Nesse sentido, Rancière vai na contramão de certa vertente da crítica de arte, ao defender que é a própria autonomia da obra que já encerra, ou abre-se para uma heteronomia: espaço no qual uma multiplicidade de mundos vem se chocar entre si, inventando, no âmbito do conflito mesmo, novas formas de ver, saber e fazer. Trata-se, portanto, da possibilidade permanentemente aberta de uma “coexistência de tudo com tudo”.8 Por isso, a cena que se abre numa obra é um espaço entre; ninguém é seu proprietário e, ao mesmo tempo, ela é de todo mundo. Isso quer dizer que sempre haverá lugar para outras palavras. A obra seria, então, uma “terceira coisa”9, estranha tanto aos artistas quanto aos espectadores, mas que, por essa estranheza mesma, lhes possibilitaria jogar.

Assim poderíamos escolher, no lugar de “amei” e “odiei”, outras tantas palavras, contanto que tivéssemos em vista que nenhuma poderia ser coroada como palavra final, e contanto que, entre os dois termos escolhidos, apenas aparentemente antitéticos, conservássemos a tensão de uma disjunção inclusiva. É que, lembremos, eu disse que amei e odiei. Disse também que esse seria um sentimento familiar, estranhamente familiar, ao menos entre os frequentadores da arte atual. É assim que, na experiência estética, o conectivo “e… e…”, como disjunção inclusiva, aparece exatamente como entre-lugar, quiasma entre espectador e obra; campo de abertura (heteronomia) e fechamento possibilitador (autonomia). Segundo Vladimir Safatle, a obra de arte potencialmente emancipatória nos reenviaria justamente a tal objeto opaco e irredutível, “estranho ponto de excesso”10, que vibra tanto na obra quanto no espectador, e que devolve a este o olhar, interrogando-o. Tal objeto de estatuto insólito, livre das amarras do imaginário narcísico, ou confundindo-as, seria algo como a Coisa [das Ding] lacaniana: existência paradoxal que possibilitaria afirmar, através da sublimação estética, o Real como presença do negativo.

Essa Coisa era o que resistia a se inscrever nas representações simbólicas próprias ao pensamento do eu. Ela era o nome da singularidade que não podia se inscrever e que aparecia como resistência às predicações postas pelo pensamento fantasmático do eu. A coisa só pode ser caracterizada negativamente como o que não é objeto de uma predicação”.11

Pensada sob esse viés, a obra resultaria do “ato de elevar um objeto empírico à dignidade da Coisa”.12 Lacan vai ainda mais longe: “Toda arte se caracteriza por certo modo de organização em torno desse vazio [da Coisa]”.13 Esse oco da estrutura estética remete à falta-a-ser do sujeito psicanalítico. A Coisa, portanto, é a emergência, no âmago desse vazio, de uma espécie de anti-objeto; índice puro da negatividade que se funda no Real. Eis como se dá, psicanaliticamente, a sua aparição: “tudo o que é recusado na ordem simbólica, no sentido da Verwerfung [denegação], reaparece no Real”.14 Isso significa que, na experiência liminar – e infinitamente adiada – de encontro com a Coisa, “o sujeito passa para além desta vidraça onde sempre vê, amalgamada, sua própria imagem.15 É nesse sentido que, ao formular a possibilidade de uma “estética do real”, Safatle aponta, no livro A paixão do negativo, para uma “compreensão da arte como formalização de objetos que mostrem a destruição dos protocolos de identidade e representação”.16 Trata-se, em suma, de um projeto de emancipação estética frente à colonização continuamente perpetrada pelo imaginário narcísico do sujeito moderno – assim como da indústria cultural, uma de suas principais fiadoras.

Acontece que, por seu lado, Rancière é muito cauteloso no que diz respeito ao trato com essa Coisa. Não é que ele volte a denegá-la. Ele apenas se arma teoricamente contra a hipóstase artística da face teológica da arte. Na sua constante interlocução com – e fundamentalmente contra – a noção de sublime retomada por François Lyotard, Rancière aponta para o perigo atual, presente não apenas nas teorias da arte como na práxis artística, de certa inflação idealizada do inefável, resultante de um “ressentimento antiestético” do qual o pensamento sofreria contemporaneamente. Em torno desse “mal-estar na estética”17, que encontraria em Lyotard seu representante paradigmático, gravitariam dois sintomas principais: de um lado a utopia, praticamente esgotada durante o tortuoso curso do século XX, e de outro, o niilismo, voltado contra tais esperanças utópicas falidas, presente principalmente nas teorias cujo discurso promove, um tanto quanto paranoicamente, “a submissão do poder disruptivo da arte sob um pensamento de controle e de conciliação”.18 O problema principal do último sintoma é bem caracterizado por Safatle, quando ele diagnostica a tendência, no campo do pensamento estético, de uma “estetização da teologia negativa”19, a qual teria como efeito, no campo da práxis artística, certa esperança nostálgica de um “retorno a horizontes arcaicos ou originários”20, o que se pode constatar ao encarar criticamente a arte produzida hoje. Sobre tal risco também alerta o crítico Hal Foster no seu livro O retorno do real (2017), ao pôr em xeque a eficácia subversiva de certas poéticas da abjeção surgidas no dito pós-modernismo norteamericano.

Embora suas formulações estéticas se encontrem em pontos centrais (daí a interlocução a um só tempo problemática e produtiva), Lyotard e Rancière privilegiam destinações estético-políticas praticamente opostas. Os dois, através de dois pensadores distintos, reavaliam Kant. Lyotard elege Burke para proceder a uma retomada (ou reescrita, para citar uma noção cara a Lyotard) do conceito de sublime kantiano. É assim que o sublime aparece como um sentimento de assombro ou terror, a parada inelutável do sujeito ante a abismação da morte, da catástrofe cósmica (“a morte do Sol”, como insiste o filósofo), do incomensurável, enfim, de todo inumano, possibilitando uma forma de prazer que só poderia ser extraída do fato de o sujeito angustiado, em suspensão, ainda não ter se extinguido.21 Essa, segundo Lyotard, seria a raiz de uma experiência estética emancipada, atuando em contraposição aos modos fruitivos do capitalismo. Daí que a obra de arte possa representar a reserva de abismação para além de toda representação, de toda aparência, de toda linguagem hegemônica. Já em Rancière, Kant chega filtrado por Schiller, transformando a obra de arte em locus primário da possibilidade de configuração de um campo humano essencialmente lúdico, no qual o homem só seria um ser humano ao jogar. Portanto, num só movimento, posto a funcionar por meio de Schiller, Rancière aproveita para si o acordo sem conceito entre entendimento e sensibilidade kantiano, afastando, por outro lado, a noção de sublime. Até porque, em Kant, o sublime estaria para além da obra de arte, para além do jogo das aparências. Como não cessa de nos lembrar Rancière, o sublime kantiano não se dá no interior da obra de arte. Em sua Crítica do juízo, de fato, Kant dispõe o acontecimento do sublime exclusivamente no campo da Natureza, isto é, na heteronomia total de tudo aquilo que se furta a qualquer configuração estética (reservada, por sua vez, ao belo). Por isso não nos admira que Rancière atribua a Lyotard aquela teologia negativa de que falou Safatle, já que, segundo tal ponto de vista, no limite encontraríamos, em toda obra de arte, uma dívida obscura e impagável.22 Não haveria, assim, espaço para jogo algum, pois ali onde apareceria uma suspensão estética emancipatória, Lyotard estaria impondo a figura de um interdito, que emudece, em vez de fazer falar. O que no fim das contas está em disputa entre os dois autores, portanto, é o caráter e o destino da suspensão estética, e não o fato de esta se dar; e, com tal suspensão, estaria em jogo a decisão teórica sobre a noção de comunidade aberta pelas obras de arte.

Lido por Rancière, Lyotard teria coroado, como sumo da experiência estética eminentemente política, um negativo absoluto, um assombro paralisante, um interdito, um mandamento, enquanto figuras que poderíamos caracterizar, popularmente, como “donos-da-bola”: sua ação fundamental consistiria em sair de campo no exato instante do ápice extático, deixando atrás de si apenas o caos originário, o Nada – bem ao modo do Dioniso euripidiano. Contrapondo-se a isso, Rancière mira a possibilidade de um novo sensorius comunnis, através de um outro uso do trabalho de representação (mimesis). Aqui, o irrepresentável já não se contrapõe à representação. Tal dualidade só poderia se sustentar, se é que tem razão de existir, se a representação trouxer em si um momento de irrepresentabilidade, e o irrepresentável já aponte, potencialmente, para uma representação de sua ausência. Desta forma, apenas o jogo livre das aparências poderia fazer frente à divisão do sensível imiscuída na sociedade, o que quer dizer que apenas uma partilha do sensível, incorporada na especificidade de cada obra de arte, teria o poder de embaralhar as fronteiras entre quem joga e quem trabalha, entre quem tem o direito de saber e quem só tem o direito de sentir.23 Em suma: segundo Rancière, apenas a estética poderia fundamentar a política como experiência de igualdade radical, erigindo, em tal movimento, uma comunidade estética, sempre provisória, poderosa justamente por isso, na qual o consenso hegemônico se encontraria, enquanto o jogo durasse, em suspensão. Trata-se, portanto, da formulação de uma “comunidade do dissenso”.24 Com a condição, porém, de que tal comunidade acolha a heteronomia da vida (passividade lúdica), ao mesmo tempo em que seja, ela mesma, autônoma com relação aos sensoriums hegemônicos (atividade estético-política). Por isso, uma comunidade estética se caracterizaria, sobretudo, pela união de atividade e passividade numa suspensão singular. Isso quer dizer que, em vez do “e… e…” inclusivo, encontraríamos algo como um “nem… nem…” disruptivo: a força do “nem isso, nem aquilo”.25 Em vez do acordo kantiano entre inteligível e sensível, opta-se por um impasse entre os dois, sem conduzir a um suposto sublime, nem apenas habitando o domínio estrito do belo. Em vez, portanto, do “amei e detestei”, viria um “nem amei, nem detestei”. Melhor dizendo: “fiquei em estado de suspensão”. Mas não uma suspensão, é preciso dizer, típica do assombro lyotardiano. Pois, em Matadouro, em momento algum algo como um sublime parece ter sido instaurado. Eu até poderia dizer: “não senti nada”; “não sei o que senti”, ou simplesmente: “pouco importa o que senti”. O fato é que algo me aconteceu, e que pude elaborar qualquer coisa sobre isso, como aliás faço aqui.

É que o pensamento estético de Matadouro impele a uma posição filosófica mais delicada. Quando decupo a estrutura dramatúrgica da peça, logo reluz, de fato, o seu aspecto comunitário: trata-se da invocação poética de uma comunidade que ainda não veio, e que talvez nunca chegue.26 Intuo que seja esse, justamente, o elo conceitual que pode ligar o pensamento artístico do Matadouro ao pensamento filosófico. Mas o que Matadouro sabe sobre a noção de comunidade é quase nada. O que ele sabe, porque nos faz saber, é sobre como formular uma pergunta acerca da comunidade humana. A comunidade que a peça possibilita não é incorporada, não é proposta como utopia, não é assumida como inerente; é apenas posta em jogo, no horizonte de uma linguagem, embora sem palavras. Não há nada em Matadouro que corporifique ou demonstre qualquer dimensão convivial ontológica específica às artes cênicas27, tampouco há alguma coisa que afirme o contrário. É uma linguagem que nos aproxima, ao mesmo tempo que nos aliena. Pode, inclusive, nos indispor contra ela, como fez comigo, durante um bom tempo. O que há no seu discurso estético, portanto, é uma elaboração específica do pensamento da arte, algo como o impulso para o desenvolvimento de um pensamento conceitual; o que poderia, por sua vez, aproximar-se da palavra filosófica, precisamente no ponto em que esta produz, de forma latente, a sua poética.28 Assim, Matadouro abre um espaço suspensivo de indistinção e iminência, no qual a ludicidade, esboçada durante toda a peça, será sempre ameaçada por um assombro sem nome; assim como o abismo, insinuado pela falha representativa, e ameaçando engolir tudo num vórtex sublime, resultará sempre frustrado por um humor sagaz, pulos de macaco e certas besteiras típicas do vaudeville mais canhestro, tosco e cafona. Neste movimento circular, num curto-circuito que nunca se define como sublime, belo ou grotesco, dança ou não-dança, agradável ou assombroso, Matadouro elabora o problema de uma comunidade em suspenso, isto é, põe em marcha um pensamento coreográfico que desenvolve, insistentemente, a pergunta, e nunca a resposta, sobre se algo como um povo sequer é possível.

A primeira parte da pergunta é formulada por um dançarino nu, mascarado de gato, que dá voltas na sala em torno de um microfone que, em seu pedestal, jaz no centro dela. O tambor, preso ao torso do gato, está em silêncio, assim como em silêncio está o gato. Este, a cada volta, nos devolve o olhar. Os olhos amarelos e arregalados do gato, o tambor que teima em não soar, o círculo incessante cujas margens nunca serão desenhadas perfeitamente, tudo isso parece formar um conluio contra os espectadores. A primeira parte da pergunta é formulada, portanto, em silêncio, na forma de uma iminência cuja função é manter em suspenso a promessa de uma ocasião: “Ocorrerá?”.29 Mas na verdade não estamos em completo silêncio. O silêncio está sendo inflado pela voz de um animal: escutamos, ao longe, os latidos de um cachorro, que ainda não podemos determinar se é parte da peça ou se é produto de um acaso infame – e um tanto divertido. O cão parece estar latindo para alguém, de toda maneira. Por enquanto, aparece como a figura de um fora indeterminado ou de uma heteronomia insistente, embora já se encontre dentro da cena.

Tal iminência será sustentada por minutos a fio. Minutos que, à medida da entrada dos espectadores, incham de forma a parecerem durar mais do que a sua duração cronológica. Então a luz subitamente se apaga e, em lugar do terceiro sinal tranquilizador, o que sobrevem é um verdadeiro ataque aos ouvidos: finalmente o tambor começa a falar, ou melhor, a gritar. A tensão da iminência é apenas renovada. Salva-se a pergunta: “Ocorrerá?”. O tambor, quieto por muito tempo, agora passará, de dentro do mesmo breu que dissolve a todos, a berrar sozinho, por mais longos minutos. Baques secos e intermitentes, selvagens, lembrando um código morse feito de couro, violência e fome. Talvez estejamos entrando no sertão prometido e, por que não, pré-encenado pelo material publicitário do espetáculo: Matadouro foi inspirado por Os sertões, de Euclides da Cunha. A intuição se confirma quando uma luminosidade crua e amarelenta se espraia sobre o chão da cena e sobre oito corpos nus, bem distintos entre si, que formam um paredão nos fundos da sala, de costas para nós. Isso soa como protesto popular, fileira militar ou linha de condenados ao fuzilamento. Melhor: soa como protesto popular, linha militar e linha de condenados ao fuzilamento. Essa é a segunda figura comunitária da obra, já que a primeira foi a contraposição inicial entre o gato e os espectadores, forçando-nos a nos constituir em coletividade face à sua presença ambígua. Começa a se formar, então, uma gramática cênica em torno da pergunta: o que será esta comunidade?

Sentimos, agora, que se abre uma outra estase no desenvolvimento da obra: em vez de a iminência anterior se resolver numa soltura propícia, o que acontece é a emergência de um conflito. Mas não somente um conflito, afinal já fomos arremessados à prometida Canudos de Euclides da Cunha: trata-se de uma guerra, constituída por algumas batalhas. Temos a batalha do Quinteto em Dó Maior de Franz Schubert, representante melancólico do romantismo primevo, que tocará ininterruptamente durante toda a peça, versus os instrumentos cacofônicos e precários dos quais os dançarinos extraem sons disparatados30 e que vez ou outra remetem ao samba, ao maracatu e outros ritmos de matriz popular, como se por acaso; nesta situação já se instaura outra batalha, travada no horizonte visual, entre nus e vestidos, selvagens e civilizados, artistas e público, rebelados e militares; há também a batalha olfativa, quando a fumaça de um charuto, que remete às religiões de matriz indígena e africana, parte da boca de um dos artistas e vai parar nas fossas nasais dos saudáveis espectadores formados no seio da cultura ocidental; e há, finalmente, a maior batalha de todas, a que confronta Marcelo Evelin e Demolition Incorporada com Os sertões de Euclides da Cunha. Trata-se, acima de tudo, de uma luta entre imaginários. De um lado, temos um coletivo de dança contemporânea, em volta do qual gravitam signos tais como “desconstrução”, “subversão”, “inovação” etc. Do outro, um escritor tão ambíguo, cruel e autêntico quanto a própria nação brasileira, portando o seu pesado romance: um épico de não-ficção, cujas raízes remontam aos primórdios da República brasileira, ruínas de um estilo morto sobre as quais construíram-se significações das mais díspares: é “um clássico” e é “uma monstruosidade”; é “pré-modernista” e é “reacionária”; é “crítica”, e é “racista” – e a lista poderia seguir. O cerne da questão, porém, é identificar como Matadouro elabora tal conflito entre imaginários, no âmbito de uma comunidade em suspenso. Ora, uma obra só pode pensar, ou seja, fazer-pensar, se constitui o seu próprio imaginário.

Matadouro se constrói não a partir nem sobre, tampouco paralelamente a Os sertões: a peça se estende, frágil e eloquente na sua tensa suspensão, entre a instância literária do romance, o imaginário social sobre o acontecimento da Guerra de Canudos, o imaginário contemporâneo dos presentes na sala, os dispositivos de exibição da peça e tantas outras instâncias. Dessa forma, a mimesis praticada por Matadouro não é de Os sertões ou diretamente da vida contemporânea; o que a peça recria é a estrutura do conflito atávico implicado no lapso fundante entre o Brasil da Primeira República e o Brasil da democracia neoliberal. Tal nó se define pelo enovelamento problemático das forças envolvidas numa disputa histórica pela determinação de uma comunidade. Portanto, a mimesis que Matadouro põe em jogo se estabelece em torno da questão de saber se uma comunidade pode vir a ser autônoma, como a dos rebeldes de Canudos, ou se deve se curvar heteronomicamente à autonomia de uma República tão violenta quanto o regime que lhe precedeu. Essa questão é reformulada na peça através não da reprodução, mas da incorporação poética da Luta que lhe serve de tema31, agora não feita de paus, pedras, facões e balas de canhão, mas a golpes de signos e afecções – assim como a escrita periclitante e sintomática de Euclides da Cunha.

Historicamente, Canudos representou o advento de uma singularidade traumática na tessitura sociopolítica da sociedade brasileira. A meteórica criação do vilarejo, liderada por um fanático religioso de ideias monarquistas e adorado por jagunços, mulheres, crianças, velhos e enfermos, derivou numa guerra sangrenta, perpetrada por meses a fio. No livro, os atravessamentos da história transbordam na substância literária do estilo. Acontecimento histórico e dispositivo artístico lutam entre si sobre a terra devastada de uma cena poética em frangalhos, que só a muito custo lhes serve de mediação, e frente à qual o leitor é constantemente impelido, seja pela violência dos fatos jornalisticamente reportados, seja pelo labirinto da linguagem literária, a se portar como explorador de uma região insólita. Isso de tal forma que, até o final do livro, as ferramentas metodológicas e estilísticas de Euclides – reconhecidamente naturalistas, evolucionistas e positivistas – parecem sucumbir sob o odor dos cadáveres em putrefação. Por isso, o dispositivo literário euclidiano, apesar da complexidade bastante cerrada do estilo, aparece-nos esburacado, assim como as paredes de taipa das casas, abatidas por balas e fragmentos de granada.

[Canudos] era pior que uma cidadela inscrita em polígonos ou blindada de casamatas espessas. Largamente aberto aos agressores que podiam derruí-lo a coices de armas, que podiam abater-lhe a pulso as paredes e tetos de barro, ou vará-lo por todos os lados, tinha a inconsistência e a flexibilidade traiçoeira de uma rede desmesurada. Era fácil investí-lo, batê-lo, dominá-lo, varejá-lo, aluí-lo; era dificílimo deixá-lo. Completando a tática perigosa do sertanejo, era temeroso porque não resistia. Não opunha a rijeza de um tijolo à percussão e arrebentamento das granadas, que se amorteciam sem explodirem, furando-lhe de uma vez só dezenas de tetos. […] Atraía os assaltos; e atraía irreprimivelmente o ímpeto das cargas violentas, porque a arremetida dos invasores, embriagados por vislumbres de vitória, e disseminando-se, divididos pelas suas vielas em torcicolos, lhe era o recurso tremendo de uma defesa surpreendedora.32

Face à brutalidade maciça dos dispositivos militares, Canudos oferecia uma armadilha extremamente flexível e “de trágica originalidade”33, dispositivo que, “intacto – era fragílimo; feito escombros – formidável”34. Há uma dimensão em Matadouro, portanto, que se encontra além ou aquém da mera espetacularidade: trata-se de uma armadilha. Moedor de gente: essa é a terceira figura comunitária da gramática cênica, terceira parte da mesma pergunta. Porque agora os dançarinos simplesmente rodam pelo espaço, e assim permanecerão por mais ou menos cinquenta minutos, que parecerão horas. As únicas variações, além da velocidade e amplitude da trajetória circular, serão os pequenos gestos de cada um, tais como pular feito um macaco, aspergir desodorante no ar, levantar o braço com o indicador em riste, darem-se as mãos e formar grupos compactos.35 Mas esses gestos não são índices de um referente a que se queira aludir positivamente. Funcionam como pontuações temporais. Além da música e sua progressão dramática, são os gestos que nos situam em relação a esta singular temporalidade cênica. Fora isso, o que nos resta é preencher os grandes vazios da representação com nossas próprias associações, trabalho exaustivo que nos remete a Rancière, posto que reune extrema passividade e extrema atividade. Jogo jogado no interior de um moedor de carne humana que somos tentados a chamar de história.

Mas não é que o tempo em Matadouro seja circular ou espiralar. Se ele percorre a espiral, é só para ser engolido ao centro, onde não há nada, a não ser um microfone que não capta muita coisa além de ruído branco. Foi posto em marcha um mecanismo de esgotamento. O tempo linear está sendo distendido de tal maneira que tem de se dobrar sob seu próprio peso, até que ceda completamente. Eles estão tentando extinguir o tempo, cuja metáfora é o sentido anti-horário da anti-coreografia circular. Não voltar para trás, onde Canudos resistiu e sucumbiu, mas parar o fluxo da história no momento propício de uma possibilidade de transformação. Inventar um precipício no qual a impossibilidade transfigure-se num possível e vice-versa, como Gilles Deleuze (2010), no último ensaio da sua vida, “O esgotado”, afirmou sobre o procedimento literário perpetrado por Samuel Beckett. Porque Matadouro não mói apenas o tempo, mas também o espaço. O círculo é centrípeto, e pareceria que todos os aros possíveis são percorridos dentro dele, em todas as velocidades, assim como as figuras A, B, C e D na peça televisiva Quad (1981), de Beckett. Nesta, o centro está ali, figurado como um furinho no centro do quadrado, que nunca é tocado. Isso diz que não haverá redenção, sequer por qualquer sentimento do sublime. Enquanto isso, os encapuzados beckettianos exibem suas cores, sem rosto e curvados, ao som de quatro instrumentos percussivos, assim como os pelados da Demolition exibem suas máscaras encontradas em viagens e lojas de fantasias baratas.36 Não que nada disso queira dizer alguma coisa, mas certamente diz sobre o querer dizer alguma coisa, contanto que essa coisa misteriosa seja encontrada num limite no qual as possibilidades foram antecipadamente esgotadas, e o que resta é acolher aquilo que ainda não tem nome. Mas não um sublime; porque sempre haverá um macaco pulando para lembrar que a vida é besta, ou o cheiro de um desodorante que suprime a aura carnal do suor humano, pouco a pouco liberado no ar. Eles não querem essa comunidade, nem aquela. Parecem querer a iminência de uma singularidade impossível. Eles nos perguntam, girando, se nós a queremos. Não responderemos tão cedo.

E há também o cachorro, porque o cachorro não se pode esquecer. O cachorro late até agora, e latirá até o final, quando a última figura comunitária é formada, uma nova fila ombro-no-ombro de frente para os espectadores. Todos já estão sem as máscaras e o coreógrafo está com a boca no microfone. Mas, igualmente, nenhuma revelação virá daí. Ficamos somente com os olhos que nos devolvem o olhar e com o som grave de uma profunda respiração, que só a muito custo se acalma. O cachorro continua o seu discurso. Talvez seja ele a alma comunitária. O lembrete de um imaginário atávico preso no umbral entre cena e não-cena, arte e não-arte, dentro e fora, autonomia e heteronomia. O latido como o chamado do que ainda não veio. Não se sabe para quem ou por que o cão late: se é uma voz policial direcionada contra a comunidade, ou se é um latido político contra o sistema policial. Em todo caso, fomos nós que jogamos um papel ambíguo, de polícia e policiado. Na nossa passividade, representamos ativamente um papel, no lugar dos artistas, que, suspeita-se, estavam ali como mediadores. Jogo livre das aparências. São todos seres falantes. Diz Novalis, via Rancière: “Tudo fala”.37 Os corpos, Schubert, a cuíca, os sertanejos, os militares, o sertão, os espectadores, o cachorro. No entanto, comunidade alguma. Alguma comunidade.

Referências bibliográficas

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DUBATTI, Jorge. O teatro dos mortos: introdução a uma filosofia do teatro. São Paulo: Sesc, 2016.

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LACAN, Jacques. O seminário, livro 3: as psicoses. Rio de Janeiro: Zahar, 1988.

_____. O seminário, livro 2: o eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 2010.

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_____. El malestar en la estética. Buenos Aires: Capital Intelectual, 2011a.

_____. A comunidade estética. Revista Poiésis, n.17, p.169-187, 2011b.

_____. O espectador emancipado. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2012.

SAFATLE, Vladimir. A paixão do negativo: Lacan e a dialética. São Paulo: Editora UNESP, 2006.

* Daniel Guerra é doutorando em artes cênicas na UFBA
1 Durante o festival Interação e Conectividade, em Salvador, Bahia.
2 Desse ponto de vista, os elementos formais de Matadouro são quase a paródia de certos clichês das artes cênicas atuais, ao mesmo tempo em que, pela sua disposição inusitada dentro do dispositivo coreográfico, tornam-se diferenciais. Falarei mais deles ao decorrer deste ensaio, mas por enquanto vale uma breve enumeração: palco nu; corpos nus; (o onipresente) microfone com tripé; máscaras; elementos “étnicos”; tênis de corrida coloridos; repetição; temporalidade estendida.
3 AGAMBEN, 2009, p. 58.
4 AGAMBEN, 2009, p. 59.
5 Daí a possibilidade de a estética e a crítica, enquanto campos do pensamento, poderem ser encaradas como dimensões inerentes à própria práxis artística.
6 RANCIÈRE, 2012, p. 15.
7 RANCIÈRE, 2012, p. 18.
8 RANCIÈRE apud FABBRINI, 2021, p. 134.
9 RANCIÈRE, 2012, p. 19.
10 SAFATLE, 2006, p. 286.
11 SAFATLE, 2006, p. 285.
12 SAFATLE, 2006, p. 290.
13 LACAN apud SAFATLE, 2006, p. 289.
14 LACAN, 1988, p. 22.
15 LACAN, 2010, p. 240.
16 SAFATLE, 2006, p. 283.
17 RANCIÈRE, 2011a.
18 RANCIÈRE, 2011b, p. 169.
19 SAFATLE, 2006, p. 289.
20 SAFATLE, 2006, p. 289.
21 LYOTARD, 1997.
22 LYOTARD apud RANCIÈRE, 2011a.
23 RANCIÈRE, 2012.
24 RANCIÈRE, 2011b.
25 RANCIÈRE, 2011b, p. 184.
26 Aqui vale a pena invocar a palavra do artista: “Eu quis instaurar uma situação sem saída. Não é um conflito que poderemos resolver, é um conflito que consiste no fato de ser humano no mundo” (EVELIN, 2013, sem paginação, tradução nossa).
27 Ver DUBATTI, Jorge. O teatro dos mortos: introdução a uma filosofia do teatro. São Paulo: Sesc, 2016.
28 Ver como Safatle retoma de Adorno a noção de um “momento estético” do pensamento conceitual em A paixão do negativo (2016).
29 LYOTARD, 1997.
30 São eles (até onde pude perceber): cuíca, apito, tambor e lâminas de metal.
31 Matadouro é a terceira peça de uma trilogia que se baseia, respectivamente, nas três partes do romance: “A terra”, “O homem” e “A luta”.
32 DA CUNHA, 2016, p. 375.
33 DA CUNHA, 2016, p. 375.
34 DA CUNHA, 2016, p. 375.
35 Tais gestos remetem, segundo minha interpretação, aos seguintes significantes sociais: os pulos de macaco remetem ao apelido dado aos militares pelos cangaceiros do Nordeste; o aspergimento de perfume no ar remete a uma prática festiva do cangaço; o braço e o dedo em riste lembram gestos de voluntarismo, debate e rebelião; as mãos dadas reenviam às micro-sociedades familiares; o grupo compacto lembra uma coletividade performada enquanto povo.
36 “Ao longo dos anos eu comprei máscaras, sem saber o porquê. Máscaras que vieram da América do Sul, do Peru, do Equador, mas também das lojas SM de Berlim, ou de lojas infantis” (EVELIN, 2013, sem paginação, tradução nossa).
37 NOVALIS apud RANCIÈRE, 2009, p. 35.