Por uma estética imanente em Deleuze e Guattari: Hermeto Pascoal e os blocos de sensações em Música da Lagoa
Diego Marques

Introdução: Imanência e estética das sensações musicais

A filosofia da diferença de Gilles Deleuze, segundo Machado1, privilegia a diferença em detrimento da identidade e da representação, a ética em vez da moral, as variáveis antes das estruturas, os encontros em vez do sujeito, ou o acontecimento no lugar da essência. Trata-se de investigar as deformações, os simulacros, as singularidades, a atualização ou a diferenciação.2

Na filosofia de Deleuze & Guattari, é também muito cara a noção de imanência. Nessa perspectiva, não é função do filósofo refletir, criticar ou analisar a arte ou mesmo a ciência. Os artistas ou cientistas não precisam do filósofo para pensar: os artistas inventam blocos de sensações, enquanto os cientistas, blocos de funções. Da mesma forma, a filosofia tem seu próprio território de criação: o filósofo inventa conceitos.

Assim, a filosofia, a arte e a ciência são inventivas ao seu modo. Esses saberes, no entanto, não são fechados, isolados. É na relação com o “fora” que os territórios são problematizados e abrem-se para a diferença e para produzirem suas singularidades. São os agenciamentos criativos que possibilitam as transformações qualitativas dos territórios, ou seja, fazem emergir máquinas desejantes e semióticas moleculares.3

Assim, como pensar uma estética no escopo de uma filosofia da imanência? Cavalcante4 propõe que uma estética da imanência deveria funcionar na aliança da filosofia “com” a arte. Por outros termos, inventa-se conceitos filosóficos a partir da aliança com as produções artísticas. Não cabe à filosofia refletir, criticar ou pensar pela arte. O conceito de bloco de sensações seria um “conceito-conector” para pensar com a arte.

Propomos que os blocos de sensações poderiam ser pensados pela articulação de cinco conceitos: agenciamentos, figuras estéticas, afectos e perceptos, fábula e monumento. Para experimentar esse procedimento, tomaremos o músico brasileiro Hermeto Pascoal como intercessor e, de forma detalhada, sua canção “Música da lagoa”.

Antes, apresentaremos, em um primeiro momento, conceitos importantes inventados por Deleuze & Guattari para pensar com a arte. Neste contexto, também articularemos relações com a música brasileira.

1.Pensar com a arte: blocos de sensações como devires-artísticos da filosofia?

Segundo Deleuze & Guattari5, a especificidade da criação filosófica é a invenção de conceitos. O filósofo só pensa forçado, ou seja, é preciso que uma violência o tire de seu território, obrigando-o a inventar. Nesse sentido, é graças a um problema específico que o filósofo inventa. Assim, o conceito é sempre regional e agenciado: “Todo conceito remete a um problema, a problemas sem os quais não teria sentido e que só podem ser isolados ou compreendidos na medida de sua solução”.6

Para enfrentar tais problemas, o filósofo, enquanto inventor, precisa capturar conceitos, relacioná-los, torcê-los de modo a extrair dessas relações uma consistência, ou seja, uma indiscernibilidade entre os termos capturados que os faz funcionar de forma inseparável, um bloco conceitual:

[...] as relações no conceito não são nem de compreensão, nem distensão, mas somente de ordenação [...] o conceito de pássaro não está em seu gênero ou em sua espécie, mas na composição de suas posturas, de seus cantos [...] Um conceito é uma heterogênese, uma ordenação de seus componentes por zonas de vizinhança.7

A criação do conceito passa por intercessores, que na filosofia são os personagens conceituais. Se Deleuze captura filósofos como Espinosa, Nietzsche, Bergson ou Kant, é porque servem como personagens para seu teatro filosófico. É um agenciamento criativo que produz relações de conveniência, simpatia e ressonância com os aludidos autores. São personagens conceituais.

Deleuze & Guattari8 destacam três modos de pensar: o filosófico, o artístico e o científico. Embora cada modo de inventar seja imanente ao seu campo, existem capturas entre os territórios. Por outros termos, um filósofo pode “capturar” aspectos da ciência ou da arte para inventar conceitos. Um artista, por sua vez, pode capturar aspectos da ciência e da filosofia para inventar blocos de sensações. Da mesma forma, um cientista pode obter ressonâncias da filosofia e da arte para inventar funções.

É nesse sentido que o que se inventa são blocos, um conceito importante para Deleuze e Guattari. Isso porque a criação é uma captura de elementos heterogêneos que passam a funcionar de forma inseparável em dado território, seja na filosofia, seja na arte, seja na ciência. Esse bloco, em consonância com seu agenciamento, produz tipos singulares de fluxos:

O cinema conta histórias com blocos de movimentos-duração. A pintura inventa todo outro tipo de blocos. Não são nem blocos de conceitos, nem blocos de duração-movimentos, mas blocos de linhas-cores. A música inventa outro tipo de bloco, tão particular quanto.9

A filosofia inventa blocos de conceitos em um plano de imanência e, para isso, cria personagens conceituais. A arte inventa blocos de sensações em um plano de composição, a partir de ressonâncias das figuras estéticas. Assim como a ciência inventa funções em um plano de referência, graças à reverberação do observador parcial.10

Gostaríamos de tornar explícitos alguns aspectos que podem parecer banais, mas que são importantes em uma perspectiva da filosofia da imanência, a saber: bloco de sensação não é o que o artista cria. Trata-se antes do que o filósofo cria em aliança com as criações artísticas. Trata-se de pensar filosoficamente com o pensamento artístico.

É verdade que Deleuze & Guattari dizem que os artistas inventam blocos de sensação, mas o fazem a partir do território da filosofia. A arte tem suas próprias máquinas, semióticas e fluxos: não precisam do conceito de bloco de sensações para pensar.

Cavalcante11 apresenta a hipótese de que o bloco de sensação é um conceito filosófico criado tomando a criação artística como intercessora: um conceito-conector. Assim, em consonância com o tipo de arte, seriam produzidos blocos de sensações específicos. Se os personagens conceituais servem para criar com filósofos, as figuras estéticas são os intercessores da relação da filosofia com a arte.

Por outros termos, quando Deleuze captura Kant, Espinoza, Nietsche, Bergson como intercessores, ele inventa um “duplo-simulacro” dos aludidos filósofos para que funcionem em sua filosofia. Ainda, se Deleuze captura Bacon, Godard, Artaud, Kafka ou Proust, produz um “duplo” destes para pensar filosoficamente com a arte. Propomos que os blocos de sensações podem ser pensados a partir da relação entre cinco conceitos: agenciamento, figuras estéticas, afectos e perceptos, fábula e monumento.

Interessa-nos aqui pensar com a invenção em uma arte específica, a música. O primeiro aspecto importante para pensar com a música é o agenciamento. Esse último pode ser sintetizado como o cofuncionamento das linhas que caracterizam a relação do território com o seu “fora”, gerando processos de desterritorialização/reterritorialização. O território é pensado como acoplamentos entre formas de expressão (semióticas) e formas de conteúdo (máquinas).

Em um agenciamento criativo, o “fora” que assalta o território é maquinado, produzindo outros tipos de fluxos. Existe, portanto, uma relação entre conservação e transformação, entre repetição e diferença.

Deleuze & Guattari12, em um agenciamento com a música, capturaram a noção de espaço-tempo estriado e liso, do maestro e escritor Pierre Boulez (2017). O espaço-tempo estriado é o da contagem, da numeração, da formação dos padrões, das métricas e dos espaços dimensionais: “[...] o estriado é o que entrecruza fixo e variáveis, ordena e faz sucederam-se formas distintas, organiza as linhas melódicas horizontais e os planos harmônicos verticais”.13

O estriamento é a produção da repetição. É o que possibilita o território manter sua distância em relação aos outros territórios, bem como controlar a agência do caos. Por outro lado, o liso é o espaço das singularidades e das semióticas moleculares. Não se trata de mera oposição entre liso e estriado, mas coexistência em níveis diferentes de predominância.

Nessa dinâmica, a repetição não é senão uma diferença com elevado nível de estriamento. Por outro lado, a diferença é uma estria extremamente flexibilizada. A diferença só ganha consistência na repetição. A repetição só é possível de ser identificada se houver algum nível de diferença.

É preciso também distinguir os diferentes tipos de violência em um agenciamento. Uma violência que afeta o território, vinda do “fora”, e uma violência imanente caosmótica, ou seja, produzida no território. Deleuze, em seu livro com o pintor Francis Bacon, distingue estes dois tipos de violência a partir da figuração e da figura:

Bacon distingue a violência do espetáculo, que não lhe interessa, e a violência da sensação como objeto da pintura [...]. O horror ainda é figurativo demais e, passando-se do horror ao grito, obtém-se um ganho formidável em sobriedade; toda a facilidade da figuração desaparece.14

É nessa trama que emergem as figuras estéticas no agenciamento, o segundo conceito que nos interessa para investigar os blocos de sensações. As figuras estéticas marcam as ressonâncias entre o “fora” e o território: é a garota de Ipanema para Antônio Carlos Jobim; o barquinho para Roberto Menescal; a seleção brasileira de 1960 para Chico Buarque; um almoço na roça para Hermeto Pascoal. São os intercessores para a invenção musical:

O essencial são os intercessores. A criação são os intercessores. Sem eles não há obra. Podem ser pessoas – para um filósofo, artistas ou cientistas; para um cientista, filósofos ou artistas – mas também coisas, plantas, até animais como em Castañeda. Fictícios ou reais, animados ou inanimados, é preciso fabricar seus próprios intercessores.15

Nesse sentido, o bloco de sensação é forjado a partir do agenciamento da filosofia com a arte e desta com elementos não artísticos. São desses acordos discordantes, desses paradoxos, multiplicidades e heterogeneidades que emergem os afectos e perceptos.

O percepto nada tem a ver com percepção. O afecto nada tem a ver com sentimento. Não se trata de conceitos que remetem à subjetividade. Trata-se do espaço e dos modos de existências propriamente expressivos, das violações propriamente artísticas:

[...] os perceptos não são percepções, são pacotes de sensações e de relações que sobrevivem àqueles que o vivenciam. Os afectos não são sentimentos, são devires que transbordam aqueles que passam por eles.16

Na literatura, por exemplo, no trabalho de Deleuze & Guattari com Kafka, as forças conservadoras produzem acoplamentos entre cabeça curvada (forma de conteúdo) e retrato-foto (forma de expressão). Esse primeiro acoplamento expressa o desejo bloqueado, as conexões estriadas, o privilégio da conservação.17

Por outro lado, a cabeça levantada (percepto) e o som musical (afecto) expressam a produção do desejo, dos devires, de outros modos de existência. Não é, senão, a fuga dos territórios dominantes, a promoção de quedas, as subidas e descidas que forjam a sensação:

Uma máquina de Kafka é, portanto, constituída por conteúdos e expressões formalizadas em graus diversos como por matérias não formadas que nela entram, dela saem e passam por todos os estados.18

O percepto forja máquinas incorpóreas graças à sua produção desejante. São as paisagens “surreais” por onde circulam os devires: trilhas da involução. É nesse sentido que se diz que o artista inventa sensibilidades ou percepções inumanas:

Os perceptos podem ser microscópios ou telescópicos, dão aos personagens e as paisagens dimensões gigantescas, como se tivessem repletos de uma vida a qual nenhuma percepção vivida pode atingir.19

Os perceptos estão relacionados à desmontagem do organismo, produzindo um rearranjo disfuncional, bem como a composição de uma paisagem monstruosa. Em Kafka, no processo, desarticula-se a máquina da justiça; em Melville, no escriturário, a máquina do escritório é violada por Bartleby quando se acopla com os móveis do escritório, capturando sua imobilidade: “Eu prefiro não fazer”. O artista é um inventor de “percepções” não humanas, não representativas ou figurais.

Em “Garota de Ipanema”, o percepto é a paisagem musical por onde desfila a garota. Pode haver grande decepção ao visitar Ipanema ou ver a garota que inspirou Jobim. Não se trata da representação da aludida praia ou da mulher, mas antes de um percepto. O percepto inventa o ambiente da sensação e não busca uma cópia da realidade. É um agenciamento de produção de simulacros da percepção.

Não é mais o som que remete a uma paisagem, mas a música desenvolve uma paisagem sonora que lhe é interior [...] não se sabe mais se o som remete a uma paisagem associada ou se, ao contrário, uma paisagem é interiorizada de tal modo no som que ela só existe nele.20

Roberto Menescal e Ronaldo Bôscoli estavam em um passeio de barco quando compuseram a canção “O barquinho”. Não se trata, no entanto, de tentar imitar o ambiente. Os perceptos compõem a propriamente sonora: é um passeio de barco pelos ouvidos. Na música “O futebol”, de Chico Buarque, a Seleção Brasileira de 1962 é a figura estética. Chico inventa um campo de futebol sonoro onde desfilam jogadores. Em “Mistérios do corpo”, Hermeto Pascoal inventa um almoço propriamente sonoro.

A outra valência dos blocos de sensações são os afectos. São os devires da produção artística. Trata-se de um processo de “dessubjetivação”. Essa desconfiguração do sujeito está ligada às capturas, às contaminações, às alianças, aos encontros com o “fora” promovidos pelas figuras estéticas.

Nesse sentido, devir jamais é representar ou imitar, é antes “enlaçar” acoplados heterogêneos e dessa aliança forjar um “meio”, um entre, intermezzo, uma involução: “[...] o devir é involutivo, a involução é criadora [...] involuir é formar um bloco que corre segundo sua própria linha, ‘entre’ os termos postos em jogo e sob relações assimiláveis”.21

O devir é processo que passa entre (intermezzo) os termos em um encontro: devir-mulher, devir-criança, devir-animal, devir-molécula: “É uma zona de indeterminação, de indiscernibilidade, como se coisas, animais e pessoas tivessem atingido, em cada caso, esse ponto que precede sua diferenciação natural’’.22

Tomemos o exemplo da música “O barquinho”. Nessa composição, Roberto Menescal, em um passeio de barco23, captura os ruídos do motor falhando e o transforma em ritmo musical. Não se trata de imitar os sons do motor, mas produzir um simulacro com o motor: devir-motor da música. Inventar uma indiscernibilidade entre motor e ritmo. O motor falhando é sua figura estética e possibilita uma conveniência entre música e motor.

Nesse sentido, Hur24 escreve sobre o devir-mulher do vocalista André Matos (1971-2019), então vocalista da banda Angra, em 1993. O cantor brasileiro captura ressonâncias da voz feminina de Kate Bush na música “Wuthering Heights”, produzindo um modo singular de cantar a aludida canção: nem homem, nem mulher, um intermezzo potente.

É exatamente por estar “entre” os reinos, no meio, que o devir25 promove zonas de indiscernibilidade e as quedas dimensionais da sensação. Indiscernibilidade entre o balanço do mar, o balanço da Bossa e o balanço da garota de Ipanema, forjados por Jobim.

Em “Mistérios do corpo”26, Hermeto Pascoal, por exemplo, produz indiscernibilidades entre corpo, alimentação e música. Seu estômago devir-tambor, sua boca produz sons monstruosos que transformam o ato da refeição em música. Alimentação transmutada em música? “Mocotó bom danado. Saudades daquela feijoada. Tá me dando uma coisa”, balbucia Hermeto Pascoal na aludida música. Fluxos sonoros de alimentação, de digestão, da invasão de abelhas.

Na música “O futebol”27, de Chico Buarque, trata-se de tornar musicais os movimentos dos jogadores da Seleção Brasileira, campeões mundiais em 1962. Didi, por exemplo, jogador da Seleção Brasileira de 1958 e 1962, desenvolveu um modo de chutar que ficou conhecido como folha seca. Isso porque, quando Didi aplicava essa técnica, a bola parecia cair como uma folha seca, enganando o goleiro. Chico Buarque torna musicais esses afetos cinéticos em seu modo de cantar. A alternância do volume da voz, como se desafinasse, torna musical a sedução do movimento do jogador: “de flecha e folha secaAAaAAaa”.

A coexistência dessas monstruosidades forjadas com as figuras estéticas em um bloco compõe dimensões paradoxais e discordantes que caracterizam o funcionamento das sensações. As sensações, portanto, são as quedas operadas pelas relações entre os simulacros, tensionando os modelos de representação dominantes.

A sensação não é senão a do fluxo que se passa entre essas atualizações monstruosas da arte: “Cada sensação está em diversos níveis, em diferentes ordens, ou vários domínios”.28 Em uma sentença: a sensação é produzida na “queda” entre as dimensões compostas no bloco atualizado: “Bacon não se cansa de dizer que a sensação é o que se passa de uma “ordem” para outra, de um “nível” a outro, de um “domínio” a outro”.29

Das relações entre afectos e perceptos emerge a fábula. Poder-se-ia dizer: são as monstruosidades produzidas pelas relações entre afectos e perceptos. Não se trata, portanto, da narração de um suposto objeto representado na arte. Trata-se das variações autônomas das sensações: suas quedas, seus vazios e seus saltos: “[...] a função fabuladora não consiste em imaginar ou projetar um eu. Ela atinge, sobretudo, essas visões, eleva-se até esses devires ou potências”.30 A fábula é intuitiva: são as variações de intensidades específicas da expressão e suas paisagens:

A fabulação criadora nada tem a ver com a lembrança, mesmo que amplificada [...]. Com efeito, o artista, entre eles o romancista, excede os estados perceptivos e as passagens afetivas do vivido [...] toda fabulação é fabricação de gigantes.31

Nessa perspectiva, em “Mistérios do corpo”, de Hermeto Pascoal, a fábula são as variações de sensações propriamente musicais do encontro com a degustação, a digestão ou o ataque de abelhas. Em “O barquinho”, são as sensações musicais de um passeio de barco. Em “O futebol”, de Chico Buarque, são sensações musicais de chute folha seca, do drible de Garrincha ou da genialidade de Pelé, expressos em modos propriamente musicais. São os seres gigantes ou microscópicos imanentes à música.

O monumento é o composto das sensações e de suas fábulas expressas em um material artístico e que marcam a singularidade de uma obra ou artista. Os complexos das quedas, as subidas, os buracos e as diferenças de nível: isso é uma sensação Chico Buarque; isso é uma sensação Hermeto Pascoal. Cada artista ergue um monumento a partir do modo como inventa as sensações, seu estilo:

É verdade que toda obra de arte é um monumento, mas o monumento não é aqui o que comemora o passado, é um bloco de sensações presentes que só devem a si mesmas, e dão ao acontecimento o composto que celebra [...] os métodos são muito diferentes, não somente segundo as artes, mas segundo cada autor, pode-se, no entanto, caracterizar grandes tipos monumentais, ou variedades de compostos de sensações.32

Um dos monumentos da Bossa Nova é o agenciamento entre amor, boemia, paisagens, apartamentos de classe média, tudo isso tornado música. Da mesma forma, entre os monumentos de Hermeto Pascoal está o encontro com a natureza, os bichos, os insetos, as águas, as árvores, etc.

No próximo tópico, destacaremos a possibilidade de pensar com invenção musical. Para isso, faremos uma aliança com Hermeto Pascoal, de forma específica com sua composição “Música da lagoa”.

2. Hermeto Pascoal e o devir-lagoa da música

Deleuze & Guattari33 destacam três modos de inventar: a filosofia, a arte e a ciência. Cada território tem sua especificidade ao mesmo tempo que é afetado por ressonâncias de outras formas de saber. Nesse sentido, convém a uma estética da imanência pensar com a arte. Da mesma forma, embora a música tenha suas especificidades expressivas, é na aliança com o “fora” que emergem os intercessores para sua criação:

A música, então, não é um assunto apenas dos músicos, na medida em que ela não tem apenas o som como elemento exclusivo e fundamental. Ela tem por elemento o conjunto de forças não sonoras que o material sonoro elaborado pelo compositor vai tornar perceptíveis, de tal maneira que até mesmo se poderá perceber diferenças entre as forças, todo o jogo diferencial das forças.34

Apresentamos uma proposta de procedimento para pensar com a arte a partir da relação entre cinco conceitos. Os blocos de sensações poderiam ser pensados a partir da articulação entre agenciamento, figuras estéticas, afectos/perceptos, fábula e monumento.

Tomaremos Hermeto Pascoal como intercessor para pensar a invenção de sensações sonoras. Hermeto Pascoal é um compositor brasileiro, conhecido também pela alcunha “o bruxo”. Desde criança, na comunidade de Lagoa da Canoa, Alagoas, experimentava sons com a natureza. Fez do jerimum um pífano, tocava-o para os pássaros, para a floresta, para os peixes. Para pensar com as sensações inventadas com Hermeto Pascoal, destacamos a composição denominada “Música da lagoa”.35

O agenciamento “Música da lagoa” promove uma série de “picos” de desterritorialização da música: é um acontecimento sonoro. A gravação sai do espaço do estúdio, palco, praça ou dos espaços convencionais da música. O estúdio é a lagoa. Existe, portanto, um acoplamento maquínico entre as forças da lagoa e as semióticas da música. A música é produzida na própria lagoa que devém estúdio.

A partir desse agenciamento, emergem as ressonâncias, as simpatias, as conveniências, as reverberações, relações melódicas entre a música e a lagoa. Inventam-se as figuras estéticas: aquilo que Hermeto Pascoal captura para transformar em música. Poder-se-ia destacar: a lagoa, os grilos, as borboletas, os vaga-lumes e os pássaros.

No agenciamento-lagoa, Hermeto e seus amigos músicos promovem uma série de maquinações que desterritorializam a lagoa, ao mesmo tempo que renovam o território da música. Uma primeira maquinação deriva do encontro entre boca, garrafa e água. Os músicos sopram a garrafa com água dentro, de modo que cada uma produz uma nota diferente em consonância com a intensidade do sopro e da quantidade de água. Hermeto faz uma melodia simples, variando entre tônica, segundo e quarto grau da escala de sol menor. Hermeto faz a melodia utilizando três “garrafas-flauta”.

Em seguida, os músicos – que estão com Hermeto na lagoa – fazem um ritmo com suas garrafas-flauta: é a emergência de uma outra figura estética, os grilos. Os sons das garrafas capturam uma intensidade-grilo. Seriam grilos ou vaga-lumes tornados música? O som acende e apaga.

São essas variações entre ordens musicais diferentes que marcam a sensação. A sensação é o “entre” as diferentes ordens. Entre o som garrafa “e” o som flauta; entre o ritmo “e” o grilo “e” o vagalume. Não se trata, portanto, de imitar um grilo, mas capturar suas intensidades sonoras de modo a torná-las musicais. É o devir-grilo do ritmo nos perceptos da lagoa sonora.

Logo em seguida, os grilos silenciam: entram as borboletas? Uma melodia singela composta por Hermeto inventa a dança de borboletas ao redor da lagoa? São pássaros que cantam para as borboletas dançarem? Os grilos voltam para compor a festa.

São os devires que promovem as monstruosidades musicais. Emergem as fábulas de “Música da lagoa”. Da flauta para a borboleta? Da garrafa para a flauta? Da flauta para o grilo? Da garrafa para os pássaros? São as variações de ordens, as quedas e subidas que caracterizam a fábula inventada por Hermeto com seus amigos e a lagoa: os monstros sonoros da lagoa.

Se a sensação é a queda entre ordens diferentes, então os blocos inventados por Hermeto nos colocam entre grilos, borboletas e passarinhos em um banho na lagoa propriamente musical.

Em um dado momento, Hermeto Pascoal submerge nas águas da lagoa e reaparece tocando sua flauta. Faz isso várias vezes como quem brinca com a flauta na lagoa. O banho de lagoa devém brincadeira ao mesmo tempo que é também música.

Os parceiros de Hermeto – que até então faziam a harmonia para os solos – também desterritorializam suas expressões musicais. A própria música parece gaguejar. Isso é música ou brincadeira? O propósito parece experimentar timbres com pequenos choques entre as garrafas que produzem um ritmo ou protorritmo. É o encontro da água, dos “instrumentos” em um agenciamento musical infantil.

É preciso destacar o monumento erguido por Hermeto Pascoal com seus amigos e com a lagoa. Trata-se das singularidades produzidas que marcam seu estilo. Seus tipos de monstruosidades, de fábulas, as quedas e subidas que distinguem seu modo de inventar. Suas maquinações com o corpo, com a natureza, com materiais inusitados que também fazem parte de seu monumento. São essas singularidades, estranhamentos que tornam possível conjecturar: isso é um Hermeto Pascoal?

O banho na lagoa faz parte do monumento musical inventado por Hermeto Pascoal. É verdade que nos banhamos pelos ouvidos, mas é exatamente essa a função do artista, alargar as percepções:

É que o problema da arte, o problema correlativo à criação, é o da percepção, e não o da memória. A música é pura presença e ela exige o ampliamento da percepção até o universo. Uma percepção alargada, esta é a finalidade da arte.36

Considerações finais

Poder-se-ia dizer que Deleuze & Guattari semeiam uma filosofia da arte? Acreditamos que não seria esse o caminho. Tratar-se-ia antes de pensar com a arte ou inventar conceitos em aliança com a arte. Nesse sentido, seria a partir do conceito de bloco de sensação que Deleuze & Guattari pensam com a arte.

O conceito de bloco de sensações é, antes, uma máquina conceitual prenhe de conexões virtuais para produzir com as diversas artes. Neste trabalho, apresentamos um possível experimento para pensar com a música. Consideramos que o pensamento com a arte poderia funcionar a partir da articulação entre cinco conceitos: agenciamento, figuras estéticas, afectos/perceptos, fábulas e monumento.

Para experimentar o procedimento, capturamos o compositor brasileiro Hermeto Pascoal e, de forma mais detida, a sua canção “Música da lagoa”. O que está em jogo é pensar com a criação musical. Embora o espaço aqui apresente uma trama ainda incipiente, a intenção é, antes, de dar o “tom” para que – em trabalhos futuros – sejam compostas harmonias mais elaboradas na experimentação filosófica com a música.

Referências bibliográficas

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MACHADO, Roberto. Deleuze, a arte e a filosofia. Rio de Janeiro: Zaar, 2009.

* Diego Marques é professor da UNIFESSPA
1 MACHADO, 2009.
2 DELEUZE, 2009.
3 Não é o propósito deste trabalho aprofundar a noção de agenciamento. É importante apenas destacar que o agenciamento é a “peça” básica de funcionamento dos territórios. O agenciamento funciona a partir de uma tetravalência. Por um lado, as máquinas (corpos) e semióticas (regime de signos), por outro lado, processos de desterritorialização e reterritorialização. A partir da relação com o “fora” as valências entram em tensão. O “fora” é aqui caracterizado seja pela ação do caos, seja por elementos de outros territórios. Tratam-se das virtualidades de um território que o violam sistematicamente. Em um agenciamento criativo, por exemplo, a tensão é incorporada pelo território produzindo novas máquinas e semióticas moleculares. Para essa discussão de forma aprofundada ver CAVALCANTE, 2020.
4 CAVALCANTE, 2022.
5 DELEUZE; GUATTARI, 2010.
6 DELEUZE, 1992, p. 24.
7 DELEUZE,1992, p. 28.
8 DELEUZE; GUATTARI, 2010.
9 DELEUZE, 2016, p. 334.
10DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 255.
11CAVALCANTE, 2022.
12 DELEUZE; GUATTARI, 2005, p. 183
13 DELEUZE; GUATTARI, 2005, p. 184.
14 DELEUZE, 2007, p. 193.
15 DELEUZE, 1992, p.156.
16 DELEUZE; GUATTARI, 2007, p. 171.
17 DELEUZE; GUATTAR, 2014, p. 13.
18 DELEUZE; GUATTARI, 2014, p. 17.
19 DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 202-203.
20 DELEUZE, 2018, p. 241.
21 DELEUZE; GUATTARI, 2007, p.19.
22 DELEUZE; GUATTARI, 2010, p.205.
23 Disponível em <https://www.abramus.org.br/musica/15284/bossa-abramus-2-roberto-menescal/>. Acesso em 21/04/2022.
24 HUR, 2022, p. 102.
25 O devir-animal, por exemplo, é um processo intensivo constante na literatura de Kafka: “Os animais de Kafka não remetem jamais a uma mitologia, nem a arquétipos, mas correspondem somente a gradientes ultrapassados, zonas de intensidades liberadas em que os conteúdos se fraqueiam de suas formas, não menos que as expressões dos significantes que as formalizavam. Nada além de movimentos, vibrações, limiares, em uma matéria deserta: os animais, os ratos, os cães, os macacos, as baratas, distinguem-se somente por tal ou qual limiar, por tais ou quais vibrações, por tal caminho subterrâneo em um rizoma ou toca” (DELEUZE; GUATTARI, 2014, p. 27-28).
26 Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=UPMPye2gg3o>. Acesso em 21/04/2022.
27 Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=-62llQXOxek>. Acesso em 23/04/2022.
28 DELEUZE, 2007, p.45.
29 DELEUZE, 2007, p.43.
30 DELEUZE, 1997, p. 14.
31 DELEUZE; GUATTARI, 2010 p. 202-203.
32 DELEUZE; GUATTARI, 2010 p. 198.
33 DELEUZE & GUATTARI, 2010.
34 DELEUZE, 2016, p. 167.
35 Disponível em < https://www.youtube.com/watch?v=06Qm-Z5OsHw>. Acesso em 14/04/2023.
36 DELEUZE, 2016, p. 315.