1. Os três c’s de crise
Ao longo dos anos 2000, era comum a reflexão sobre um problema que, à época, se descrevia como a “perda de lugar” da poesia. Em resumo, a questão ia mais ou menos no seguinte sentido: após o grande ciclo da poesia moderna, na virada do século XX para o XXI a poesia teria perdido a sua capacidade de abordar as grandes questões do mundo, o que parcialmente se explicaria em razão de um rebaixamento de horizonte da própria atividade poética, desde os anos 1970 mais interessada em registrar os acontecimentos da vida cotidiana e da existência individual do que em sismografar os grandes eventos históricos, e em parte pela alegada irrelevância da poesia em meio aos novos meios de comunicação digital, o que implicava, também, na desvalorização do livro como meio privilegiado de transmissão de informação e conhecimento, processo no qual a poesia escrita sofreria pagando com a redução da sua circulação e, por extensão, com a diminuição do seu prestígio social. É difícil saber até que ponto um fenômeno seria consequência do outro; isso é, em que medida a desvalorização social da poesia era consequência do seu rebaixamento de horizonte (o que implicaria que o próprio desenvolvimento das formas teria levado à sua suposta irrelevância), ou a renúncia a abordar os grandes movimentos da história refletia a sua inserção em uma situação histórica marcada, na virada do século, pela globalização e pelo “fim das grandes narrativas” – pelo chamado “fim da história”, na expressão famigerada de Francis Fukuyama. Provavelmente a verdade estava no meio do caminho: tanto o desenvolvimento das formas quanto as transformações sociais do período contribuíram igualmente para a sensação de perda da capacidade de produção de sentido da poesia. No Brasil, Silviano Santiago expressou essa sensação em um ensaio de 2001 intitulado “As ilusões perdidas da poesia”, no qual prevê que, naquela virada de século, já incapaz de atender às grandes questões da existência, as quais teriam sido relegadas às ciências e às teorias da informação, só sobraria para o poeta “o opaco e enigmático dia a dia de sua vida”.1 A desconfiança não era nova, e com efeito repisava as críticas feitas à poesia décadas antes, a exemplo do notável ensaio “Poesia ruim, sociedade pior”, de Vinícius Dantas e Iumna Maria Simon2, e de “A nova poesia brasileira e a poesia”, de Dantas3, nos quais a produção poética dos anos 1980 é avaliada em termos similares.4
Refletindo sobre esse cenário, Marcos Siscar5 apresentava uma nova luz sobre o problema: talvez a demanda por sentido feita pela crítica à poesia dissesse menos sobre esta, e mais sobre a própria crítica. Defrontado com a acusação de crise da poesia do início do século, Siscar sugeria ampliar o espectro da inquisição teórica e se perguntar por uma crise “poética”, na qual o adjetivo caracterizava uma crise generalizada da escrita, a qual incluía decisivamente a própria crítica. No limite, a demanda feita pela crítica por um sentido mais amplo da palavra poética deveria ser lida como “desejo de refundação” da própria crítica. Ainda de acordo com Siscar, o elemento mais significativo dessa demanda era o apelo à resistência:
Nada mais significativo a esse respeito do que o apelo &acrase; resistência (“resistir &acrase; vulgarização do escrito”). O imperativo da resistência, assim como a cobranç;a ou a expectativa de projeto cultural, de interesse pelas grandes questões do mundo são marcas do discurso da crítica que iluminam seu próprio desejo de refundaç;ão.6
A expressão “resistir à vulgarização do escrito” evocada por Siscar é uma citação de um importante ensaio do período, “O inconfessável: escrever não é preciso”, de Alcir Pécora, originalmente publicado na revista Cronópios em 2005, e republicado na revista Sibila em 2010. Nele, a questão que se coloca é a de uma “crise da literatura” na medida em que, propriamente, o seu autor identifica uma “total falta de crise”. Nessa espécie de crise da crise, ou crise da experiência de crise – fundamental, segundo Pécora, para a emergência de obras relevantes – desaparecia também a tensão, no campo social e estético, de que necessitava a literatura forte, restando apenas o “tráfego de banalidades” dos elogios mútuos trocados entre escritores e críticos:
A crise aqui é a total falta de crise. A desistência da crise é a matéria básica de que se formam os bodysnatchers durante o sono da crítica. [...] O sistema de tráfego de banalidades está completo. O escritor qualquer coisa encontra seu crítico sem crise. Admiram-se, respeitam-se, amam-se.7
Hoje essas questões parecem um tanto fora de moda; na introdução a uma antologia recente, por exemplo (Uma alegria estilhaçada: poesia brasileira 2008-2018), o organizador, Gustavo Silveira Ribeiro, descreve o período antologizado como um “momento em que a poesia ocupa posto-chave dentre os discursos sociais contramajoritários do país, disseminada nos mais variados espaç;os”.8 A definição é em tudo diferente daquela com a qual Siscar se defrontava anos antes. Do mesmo modo, a partir da segunda década do século, e em especial depois de 2013, acompanhando a crescente politização do país, a poesia parece ter encontrado nova ressonância histórica, voltando a gozar da relevância social que teria perdido nos anos anteriores – uma outra antologia, de 2017, organizada pela Companhia das Letras, se chamava 50 poemas de revolta e recobria um arco que ia do Modernismo de 22 aos dias atuais, no que se vê que a relação entre poesia e mundo político deixava mais uma vez de ser problemática. A isso se soma, ainda, a centralidade que passaram a ter na produção e no debate literários contemporâneos vozes historicamente silenciadas, em especial com as autorias negras, femininas e gênero-dissidentes. Em tudo isso, o cenário de recepção da poesia é bastante distinto daquele da primeira década do milênio. Nos últimos anos, a ideia de que a poesia possa oferecer respostas ou ao menos elaborações consequentes dos nossos predicados políticos e sociais deixou, outra vez, de ser estranha.
Contudo, a questão não parece ainda inteiramente resolvida, e, se é verdade que estamos agora em um momento no qual a poesia parece ter novamente alguma centralidade para a vida cultural brasileira, cumpre mais do que nunca se perguntar sobre o que significa, para nós, a esta altura, dizer que há uma relação entre literatura e sociedade. Desse modo, ao nos perguntarmos hoje sobre que sentido pode ter a ideia de uma poesia e de uma crítica que “resistem”, estamos nos perguntando no fundo se a noção de resistência guarda lastro crítico, ainda hoje, com o nosso contexto histórico e político. A essa pergunta, e aos impasses que dela se desdobram, dei o nome de dificuldade. Tal dificuldade não diz respeito à suposta incapacidade dos poetas e dos poemas para tratar das grandes questões do nosso tempo, mas a uma dificuldade poética, no sentido que Siscar empresta ao termo – uma dificuldade também crítica. Embora Siscar não o articule assim, ela também diz respeito à constatação, na virada do século, de que o Brasil havia dado termo ao seu processo formativo, e de que o sentido da sua formação era, na verdade, a sua incapacidade de se formar, consciência nuclear da tradição dialética brasileira e das suas voltas mais recentes, com a hipótese da periferização9, e que se faz presente nas obras de autores contemporâneos como, por exemplo, Edimilson de Almeida Pereira, Ricardo Domeneck, Alberto Pucheu, Fabiano Calixto e Luiza Romão, entre outros.10 Em parte, ela diz respeito também ao lugar que uma consciência poética produzida na disformia periférica do sistema ocupa na terra arrasada do capitalismo mundial.
A obra crítica de Alfredo Bosi, até onde posso ver, é aquela na qual o problema da resistência se pensou de maneira mais rigorosa em conjunção com essas duas dimensões, nacional e global. Razão pela qual, antes de nos perguntar se os poemas contemporâneos resistem ou não – e a quê? – temos de nos perguntar o que significa resistir, como funciona este conceito na sua formulação bosiana, de onde ele vem, quais as suas virtudes e limitações e, finalmente, se ele é o melhor conceito que temos à disposição para capturar a relação entre literatura e sociedade hoje. Se Siscar saía do imobilismo que diz “crise” e punha em ação o dinamismo que pergunta “crítica?”, o que sugiro aqui é seguir este movimento e levá-lo em direção ao conceito que, a meu ver, é a pedra angular do problema, levando a cabo a avaliação interna da ideia de resistência.11
O que aqui se quer chamar de “dificuldade” nomeia um fenômeno objetivo, de que procuramos dar os contornos: o esvaziamento histórico do conceito de resistência. Entende-se por esvaziamento não a sua inoperância, pois esse é o paradoxo que interessa: a resistência é na verdade, hoje, o modo normal de mediação da cultura socialmente implicada com o mundo à sua volta. Uma resistência, entenda-se, em sentido fraco do termo, que significa apenas – o que não é pouco – imposição de freios contra o avanço destrutivo do progresso, da espoliação e da predação às quais tende o capitalismo, um tanto à maneira como Antonio Candido entendia, provocativamente, o sentido histórico do socialismo, ao caracterizá-lo como uma “doutrina triunfante”.12 Contudo, ainda que a ideia de que a cultura “resiste” seja moeda corrente e mesmo expressão comum, pouco se reflete sobre o que significa, a rigor, resistir: como funciona essa ideia, do que ela é feita, em que contexto surgiu como mediador privilegiado da relação com o mundo social – em suma, para repetir a formulação de Roberto Schwarz13, quais os “altos e baixos” da sua atualidade? Na falta dessa reflexão, o que corre risco de se esvaziar é, assim, o sentido forte de resistência, propriamente conceitual.
2. Um conceito pós-moderno
A conceitualização mais bem acabada da ideia de resistência que há no pensamento brasileiro foi elaborada por Alfredo Bosi, inicialmente no capítulo “Poesia resistência”, de O ser e o tempo da poesia, originalmente publicado em 1977, e posteriormente em Dialética da colonização, publicado em 1992, obra na qual a ideia de resistência, que em princípio dizia respeito à poesia, ganha escopo maior e passa a ser formulada na forma de uma hipótese a que o autor chama de “cultura de resistência”.
O panorama no qual o conceito de resistência se insere, quando surge, diz respeito ao advento da chamada pós-modernidade nas sociedades capitalistas a partir dos anos 1970, marcada, no âmbito da vida intelectual, pela desconfiança com relação a toda ideia de sistema ou de totalidade:
Até os anos 60 a unidade teórica das Ciências do Homem fundamentava-se no suposto de que os fenômenos sociais e simbólicos se enucleavam em torno de estruturas. O marxismo nos dava uma explicação sistêmica que, começando pelas relações de produção, delineava um esquema de classes em conflito. Era tangível a inteireza da visão de mundo que daí decorria [...]. Por sua vez o estruturalismo, que avançou pelos anos 70, relegava entre parênteses os acidentes diacrônicos, não escondia o seu desdém pelas veleidades de um Sistema composto de elementos ao modo dos fonemas e morfemas recortados pela Linguística estrutural. Os elementos valiam conforme a sua posição na sintaxe do objeto. [...] Em ambos os casos vinha à tona a ideia de um uno todo internamente articulado [...] Hoje, ao contrário, é o desejo do descontínuo e do descentrado, com suas figuras correlatas, que dá um ar de família às expressões culturais. O pendor para o informe e o atípico, para o desgarrado e o eventual, para o mutante e o volátil, trai um gosto difuso que se assume como já não mais moderno e, daí, à falta de melhor termo ou de imaginação conceitual, pós-moderno.14
Entre Cila e Caríbdis – entre a totalidade sistematizante da modernidade e a desintegração pós-moderna – Bosi opta por resistir sendo, nos seus termos, “antimoderno”, ao invés de “plus-moderno”; antimoderno tem sentido, aqui, daquilo que recupera na história da tradição moderna o seu lastro libertário, integrador:
Em um largo e profundo movimento de autodefesa, a inteligência que ainda não renunciou à possibilidade de compreender o todo vem agindo dialeticamente, não se importando em parecer defasada com a corrida geral pelos meios desvinculados de seus fins. [...] O que o plus-moderno desintegra na sua indiferença pela totalidade, o antimodernista tenta recuperar. O que o avanço da ratio instrumental continua a desunir (separando corpo e alma, economia e ética, meio e fim), uma nova mentalidade centrada na consciência do mundo da vida se esforça para reimergir no fluxo da experiência. [...] Da tradição moderna só deveria interessar o que aponta para algum sentido que aproxime inteligentemente as coisas e os signos, que faça habitável o planeta, que torne feliz (ou, pelo menos, digno) o convívio entre os homens.15
Conceituada no Brasil pós-1964, a ideia de resistência conservava as bases da sua pertinência histórica e utópica se opondo ao progressismo modernizador e industrialista que animara o nacional-desenvolvimentismo dos anos anteriores. Em vista da modernização reacionária realizada pela ditadura16, a resistência fará figura para a novidade histórica do momento: a insuficiência libertária do progresso, ou, mais precisamente, o divórcio histórico entre progresso técnico e desenvolvimento social, situação que marca o início do que se chama de pós-modernidade, e que, de acordo com Nicholas Brown17, havia sido mapeada pela primeira vez no “Cultura e política 1964-1969” de Roberto Schwarz. Com efeito, resistir é o oposto de desenvolver: uma cultura de resistência não mais deseja acelerar a locomotiva do progresso em direção à integração nacional, mas quer, e tem toda a razão para isso, puxar o seu freio.18 É só com o aparecimento da face sombria da modernização desenvolvimentista, que após 1964 perde quaisquer contornos anti-imperialistas que tivera até o golpe e alia o intervencionismo estatal na economia ao capital internacional, bem como com o surgimento, pós-1968, de uma contracultura global, que uma cultura de resistência como tipo sociológico e conceito crítico pode emergir da forma como a conhecemos. O conceito de resistência é assim, a rigor, um conceito pós-moderno, o qual, mais significativamente, resiste à pós-modernidade, buscando em meio ao “caos da história contemporânea” não renunciar à dialética entre forma literária e contradição social, e visando atualizar o seu sentido na nova conjuntura:
A cultura de resistência é democrática (e, no limite, se confunde com a “desobediência civil), porque nasceu sob o signo da ditadura; é ecológica, porque vê os estragos do industrialismo selvagem no campo e na cidade; e é distributivista, porque se formou em um país onde há uma das maiores concentrações de renda do mundo. Quando enformada por doutrinas religiosas (em particular, a Teologia da Libertação, formulada no começo dos anos 70 na América Latina), é aberta às correntes progressistas que militam ao seu lado e contra os mesmos alvos. Quando leiga, é respeitosa dos valores que chamam os crentes a lutar pela igualdade e pela liberdade. Em ambos os casos, provém de uma escolha política que não renunciou a detectar algum sentido no aparente caos da história contemporânea.19
Há, desse modo, uma irredutível ambiguidade na ideia de resistência bosiana, no que diz respeito à sua vinculação com a modernidade: ao mesmo tempo em que resiste contra a face opressora da modernização, escancarada pela ditadura – face cujo arco histórico, como Dialética da colonização mostra, remonta ao início da ocupação colonial do território –, ela resiste também em favor de uma outra modernização, uma outra integração, não mais, para Bosi, sob o signo desenvolvimentista ilustrado, nem sob o signo da desintegração tecnicista pós-moderna, mas sob um signo poético, humanista e mesmo, como se sabe característico do autor, de contorno religioso-progressista; à crítica ao estruturalismo “tecnicista” somava-se, assim, uma rejeição de toda modernização ilustrada que não compreendesse a cultura, e em especial a cultura popular.
Ainda assim, o “tornar-se um” de “Poesia resistência”, do qual falaremos adiante, é também uma nova face do desejo formativo da tradição crítica brasileira, ainda que concebido como contraponto ao que Bosi percebia como os seus limites, a saber, a ideia de que se poderia superar o subdesenvolvimento através de uma espécie de vocação iluminista que visse as culturas populares apenas como resquício ainda por ser integrado à sociedade moderna. Mais do que nascer de uma disputa departamental e metodológica do métier universitário de então, a ideia de resistência bosiana tem como pano de fundo uma crítica ao que, nos termos pós-coloniais do debate atual, se pode chamar, a respeito, por exemplo, da obra de Antonio Candido, de “formação como nacional-ocidentalização”20 – isto é, a ideia de que as aspirações de integração nacional pela cultura, representadas neste caso pela ideia de formação de Candido, atacado como “iluminista” e padecendo de “ideologia uspiana”, esconderiam uma face oculta de dominação eurocêntrica e antipopular. Como mostra Paulo Arantes, nos anos 1970
o Iluminismo tornava-se o alvo preferido da crítica, uma espécie de quinta-essência do nefasto onde evidentemente cabia de tudo, da razão tecnocrática à vontade de verdade das vanguardas políticas, de Voltaire à mídia, da cultura letrada dos vencedores ao crescimento econômico etc. Esse o ângulo de ataque de Alfredo Bosi, no caso, à cultura universitária de São Paulo, expressão acabada dos “ideais ilustrados do humanismo paulistano”, mito oligárquico-liberal de redenção nacional [...] Alinhado com as assim chamadas culturas de resistência, animadas pelos novos movimentos sociais e demais “vanguardas espirituais”, geralmente propensas a encarar a modernização capitalista antes de tudo como um fenômeno cultural de caráter predatório.21
São estes os termos da disputa em meio à qual nasce a ideia de “cultura de resistência” para Bosi. O diagnóstico bosiano sobre a poesia de resistência, porém, transcende o período histórico em que foi elaborado e ganha força de releitura sobre toda a poesia moderna. Lançando mão do expediente da teoria crítica, que vê a forma literária em relação com a forma social, Bosi começa com a constatação de que “a poesia há muito que não consegue integrar-se, feliz, nos discursos correntes da sociedade”.22 “Resistência” nomeia, assim, a maneira como uma pulsão libertária da modernidade segue ativa e atualizada, mesmo diante da desagregação da vida provocada pela ultramodernidade. Animadas por essa posição que atravessa a diferença entre modernização e pós-modernidade, a poesia e a cultura em geral seriam capazes de, ainda, “nomear” a vida – ou, nos termos que vimos há pouco, de “aproximar as coisas e os signos”.23
3. Um conceito do tempo
A ideia bosiana de resistência é, no fundo, um conceito do tempo. No inquérito a respeito do ser e do tempo da poesia, estas duas potências encarnam a mediação com o mundo implicada pela ideia de resistência. Resistir significa aparecer poeticamente em um ser e em um tempo, o que significa dizer que o ser da poesia é um ser temporal, histórico.24 Sob esse ponto de vista, na prática, no que consiste a lógica do tempo em Bosi? Ou: como Bosi pensa a poesia na sua dimensão histórica?
Em “Poesia resistência”, há dois modos de relação com o que o autor chama de “sentimento do tempo”: um “defensivo” e um “ofensivo”. O primeiro diz respeito ao circuito presente-passado-presente; trata-se de um tempo mítico, no qual o passado é redimido pelo presente:
Se considero a poesia mítica em função do sentimento do tempo, vejo que nela se opera um circuito fechado: a evocação é um movimento da alma que vai do presente do “eu” lírico para o pretérito, e daí retorna, presentificado, ao tempo de quem enuncia.25
O segundo diz respeito ao epos revolucionário, no qual vem à tona a figura do poeta-profeta (os exemplos de Bosi aqui são Maiakovski, Neruda e Brecht). Este tempo profético é composto pelos “modos de resistir dos que preferem à defesa o ataque”.26 Assim:
O presente solicita de tal modo o poeta-profeta que, em vez de voltar as costas e perder-se na evocação de idades de ouro, rebela-se e fere no peito a sua circunstância. Ao contrário do cantor da lenda já confirmada na memória pessoal ou coletiva, o profeta vive uma dimensão temporal tensa que vai do presente recusado para o futuro aberto, feito de imagem e desejo. Sobretudo desejo. Se o círculo presente-passado-presente evoca o paraíso, o eixo presente-futuro-presente invoca-o.27
Em um caso como em outro, cabe ao poema provocar o presente, seja evocando o passado ou invocando o futuro. Na sintética formulação da página 173: “Na resistência aos ídolos, a voz do canto chama a si todos os tempos. Evoca o passado, provoca o presente, invoca o futuro”. Evocação, provocação, invocação: em ambos os tempos (mítico ou profético), há um ricochete do presente para fora de si, e novamente de volta ao presente. No tempo da poesia o presente sai para fora de si, alienando-se de si mesmo e arriscando-se no atravessamento daquilo que, nele, não é presente. Há um dialético tornar-se outro do presente, que na modalidade mítica torna-se imagem evocada do passado, e na modalidade profética, imagem invocada do futuro.
No modernismo brasileiro, para dar um exemplo, Manuel Bandeira é um típico poeta mítico, “defensivo”, cujo modo de relação com o passado é, justamente, o da evocação (como em “Evocação do Recife”, de Libertinagem). O mesmo Bandeira em quem era “intenso o desejo de participação”28, sem que o poeta fosse contudo capaz de atendê-lo para tornar-se engajado em sentido estrito, ganha, quando lido sob o prisma da resistência, um novo estatuto político, pois passa a figurar entre aqueles que resistem, através de uma poesia “conatural ao mito, à infância, ao sonho”29, ao regime dos discursos coisificantes da vida moderna. Se Bandeira não era um poeta participativo, nos termos dos anos 1940, torna-se um poeta resistente, nos termos dos anos 1970. Também o esforço “participativo” de um Drummond, de outra parte, sai reconfigurado nessa leitura como “ofensiva” resistência ao presente “bloqueado” a partir da invocação de um futuro aberto, como em “A flor e a náusea”, de A rosa do povo, ou “Áporo”, de Claro enigma.
Tomado nessas duas direções, o esquema temporal de Bosi pode ser resumido no seguinte diagrama:

Figura 1: Esquema temporal da resistência da poesia
No entanto, o esquema da evocação/invocação poética não estaria completo sem que incluíssemos nele uma dimensão de duplicação do presente. Isso pois, nos circuitos “presente-passado-presente” e “presente-futuro-presente” de Bosi, o que emerge tanto da evocação do passado quanto da invocação do futuro é a cisão do presente consigo mesmo, a sua duplicação; “provocar” o presente significa desestabilizar a identidade do presente consigo mesmo, algo que talvez guardasse algum parentesco com uma espécie de versão poética do efeito de alienação brechtiano, o que, me parece, escapa a Bosi, que prefere falar em termos de uma reconciliação, embora o retorno do presente a si mesmo, após a sua incursão evocativa ou invocativa, não possa ser um retorno ao um mesmo, pois o presente do poema será agora um presente visto da perspectiva ou do passado mítico ou do futuro profético. Por isso, no tempo da poesia, o presente será sempre ou futuro do passado (encarnação mítica), ou pretérito do futuro (encarnação profética). Parte substancial da operação de resistência da poesia é que, ao arriscar-se no atravessamento de outros tempos, o poema provoca, como colateral, uma dissociação do presente consigo mesmo, fundando agora, no tempo do sujeito, um novo, outro, mais livre presente.

Figura 2: Tempo mítico e tempo profético
4. Reconciliação e unidade
Se ousarmos estender a teoria de Bosi, é a esta cisão do tempo presente que chamamos de “sujeito lírico”. Na resistência, o sujeito lírico nada mais é que o nome da cisão do presente consigo mesmo, a fenda aberta no real histórico pelo tempo que, inclinando-se sobre o passado ou projetando-se para o futuro, se desidentifica consigo mesmo. Sujeito lírico é, assim, o nome do presente aberto, ou, mais precisamente, o nome da abertura do presente.

Figura 3: Tempo mítico e tempo profético: produção subjetiva
Um conhecido poema de Ferreira Gullar, “Traduzir-se”, talvez seja na poesia brasileira aquele que melhor põe em cena precisamente esta emergência do sujeito na cisão do presente:
TRADUZIR-SE
Uma parte de mim
é todo mundo:
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.
Uma parte de mim
é multidão:
outra parte
estranheza e solidão.
Uma parte de mim
pesa, pondera:
outra parte
delira.
Uma parte de mim
almoça e janta:
outra parte
se espanta.
Uma parte de mim
é permanente:
outra parte
se sabe de repente.
Uma parte de mim
é só vertigem:
outra parte,
linguagem.
Traduzir uma parte
na outra parte
– que é uma questão
de vida ou morte –
será arte?30
As “partes” em conflito no poema não se somam uma à outra para formar um indivíduo coeso e indivisível; ao contrário, de início se estabelece que o sujeito deste poema não pode ser um, posto que aquilo que o define é, em primeiro lugar, justamente a sua divisão em dois. No entanto, do mesmo modo que seria um engano procurar ver o sujeito ali onde as partes “se somam”, igualmente equivocado seria querer que o sujeito fosse, na sua essência, apenas uma das duas partes. A leitura conservadora ou essencialista do poema gostaria que uma das duas partes representasse o “eu” verdadeiro – qual seja, o eu “poético”, aquele que “delira” – enquanto a outra seria simplesmente o substrato material, cotidiano, a face imaginária do poeta enquanto pessoa comum, indivíduo sem qualquer traço extraordinário, que apenas “almoça e janta”, mas não se espanta. Nos termos do poema, o “fundo sem fundo” vs. o “todo mundo”. Nesse caso, a arte estaria no “traduzir-se” que se dá entre um sujeito e outro, levando o falso ou na melhor das hipóteses simplesmente desinteressante “eu cotidiano” a se transmutar em “eu poético”.
Ocorre que ambos os eus são igualmente verdadeiros; nada indica que nos devemos orientar no sentido de preferir um ao outro. Ambos existem em pé de igualdade, e o vetor desta tradução – quem se traduz em quem? – não é dado com clareza. Na verdade, mais preciso seria dizer que nem uma parte nem a outra é, propriamente, o sujeito; o sujeito está, precisamente, no emergir deste traduzir-se que vem à tona em meio ao presente dividido, acentuado, ao longo do poema, pelo inexorável presente do indicativo. O sujeito não é uma ou outra parte, nem tampouco a sua soma, mas emerge no autorreflexivo do “traduzir-se”. Que um verbo no presente do indicativo ao qual se adjunta um pronome reflexivo (traduzir-se) seja o significante que marca esta entrada em cena do sujeito é um fato rico em consequências. Com efeito, ele vem à tona, na economia sintática do poema, a partir do duplo movimento de síntese e disjunção inscrito na palavra pelo hífen, que registra ao mesmo tempo a justaposição e a separação entre o verbo (traduzir) e o pronome (se). À pergunta “qual é o nome do sujeito deste poema?”, ou “que eu este poema nomeia?”, devemos responder: –, um nome sem nome e sem sentido, mudo, opaco; um antinome não-fonético, anterior não apenas a todo nome próprio e a todo substantivo comum, mas também aos próprios elementos sintáticos (verbo e pronome) os quais têm por tarefa, ao mesmo tempo, unir e diferenciar. É esta marca inscrita na língua, mas não pronunciada – o hífen sem som – que permite ao sujeito aparecer não como um “eu” substantivo, mas como pura função da diferença.
Alguém poderia objetar que há outra palavra que reclama para si a função de nomeação do sujeito: “arte”, que irrompe no último verso para consumar a rima com o elusivo “parte”, que nos acompanhou ao longo de todo o poema. Contudo, ainda que entre “arte” e “parte” tenhamos uma rima perfeita, não se pode ignorar o fato de que esta é, no todo sonoro, uma rima interrompida: a correspondência sonora perfeita entre “parte” e “arte”, antecipada talvez desde o início, é decisivamente conturbada na última estrofe pela introdução, no penúltimo verso, da palavra “morte”, que instaura uma rima imperfeita com as outras duas, deslocando uma de suas vogais. Temos então, na última estrofe, a sequência “parte-morte-arte”, um esquema rímico no qual as partes, para alcançarem a prometida rima perfeita com arte, que redimiria a sua divisão e as unificaria sob um novo significante, precisam antes correr o risco de se confundir com morte, termo que se impõe como antítese à vida dupla descrita no percurso do poema. Também no plano fônico/gráfico, antes da chegada à palavra arte, o desvio das partes através da dissonância estabelecida pela proximidade sonora de morte termina por cobrar o preço de uma mutilação, que se produz, significativamente, subtraindo uma letra de “parte”. Assim, “arte” não vem nomear a síntese entre as partes, mas tão somente a meta (posta já em dúvida por um “será?”) à qual o desejo de síntese almeja – meta esta que, não obstante, está para além da própria diferença irreconciliável entre as partes, da qual o sujeito-hífen é o nome próprio e operador da autorreflexão tradutiva, atividade marcada pela dúvida, falibilidade e imperfeição.
O poema de Gullar nos autoriza a capturar o núcleo da ideia mesma de unidade, no qual aquilo que aparece como um deve ser, no íntimo, dois, já que para que algo venha a emergir como um isolado, diferente e singular, deverá vir ao mundo a partir da diferenciação entre si e o nada (o si genérico de “todo mundo” e o ninguém-nada absoluto de “fundo sem fundo”). Apenas no atravessamento de uma diferença que preexiste àquilo que é por ela diferenciado, o um emerge. Ou, dito de outro modo, toda identidade, todo átomo irredutível e idêntico a si mesmo é, desde já, em razão da própria natureza da identidade, uma cisão.31
O problema se encontra melhor formulado em Hegel, no parágrafo 162 da Fenomenologia do espírito:
[...] a unidade é apenas um momento do fracionamento, é a abstração da simplicidade que defronta a diferença. [...] O que se torna igual a si mesmo defronta, pois, o fracionamento: quer dizer, põe a si mesmo de um lado, ou vem-a-ser, antes, uma fração.32
Em que pese o fato de que o contexto em que se inserem as observações de Hegel a respeito do problema da unidade diga respeito à sua reflexão acerca da física moderna, as consequências da lógica por ele aplicada no tratamento do tema extrapolam o âmbito das “ciências duras”. Mladen Dolar, por exemplo, aproveita o insight hegeliano nas implicações que este tem para se pensar um conceito de materialismo cujo escopo também vai além das ciências exatas. A boa paráfrase que Dolar faz da lógica hegeliana ajuda a compreendê-la:
O que é o atomismo senão precisamente uma tentativa radical de submeter os corpos, toda a matéria, e mesmo o cosmos, à conta-por-um? A matéria pode ser contada, e os átomos são as partículas indivisíveis que autorizam esta conta. O átomo seria assim o puro elemento mínimo da matéria, além do qual ela não pode ser reduzida, e é isso o que nos permite contá-la como um. Assim, se neles há divisão – e há – então ela pertence não às partículas indivisíveis, mas ao vazio que as cerca e permite que elas sejam finalmente contadas. Chegamos assim a uma entidade da divisão, uma entidade dividida entre si mesma e o vazio.33
Em “Traduzir-se”, essa cisão que precede a unidade se vê no fato de que as duas partes do eu não existem antes que o poema as nomeie. Elas não são essências do poeta, que as estaria descrevendo nas suas distintas propriedades; ao contrário, são criadas posteriormente, pelo próprio processo de nomeação da sua diferença. Este processo de criação da diferença pura entre partes que só em seguida adquirem as suas determinações específicas é o que chamamos de “sujeito do poema”, ou “eu-lírico”, o qual aparece no e pelo poema, e não existe antes. Isso se vê na própria lógica de enunciação do poema: começar dizendo “uma parte” significa dizer, já, que não se está dizendo tudo, que se pressupõe uma “outra”; no ato de dizer “uma parte”, instala-se a diferença antes mesmo que se diga no que consiste essa parte, e no que, exatamente, ela se diferencia da sua outra. Com o risco do exagero, digamos que o poema de Gullar põe em cena o problema central da poesia moderna: o eu como diferença entre enunciado e enunciação.
Há aí uma dificuldade com relação ao modelo de Bosi, que depende de uma concepção de unidade reconciliada para a qual o tempo e o sujeito retornam após a sua errância, evocativa ou invocativa, no outro do passado e do futuro. Este aspecto diz respeito sobretudo ao recurso de Bosi à “unidade perdida” como motor de engajamento do trabalho poético, o qual, em vista de um exame rigoroso do que significa unidade, só pode ser entendido como um resquício, ainda, de certo misticismo em torno da criação poética. Aquilo que Bosi chama de resistência diz respeito ao poder da poesia de “reinventar imagens da unidade perdida”34, mas o mito da unidade, que para o autor é um dos elementos produtivos de resistência, aparece, sob exame, como saída teórica insuficiente. Bosi, por sua parte, tem consciência de que o um da ideologia e o um mitopoético não são o mesmo. Ele reconhece essa diferença, contudo, apenas recorrendo às diferentes “práxis” às quais o um se incorpora; assim o poema, enquanto práxis “da paixão, da música e da festa livre das palavras”35, redime o um tirano e o reconecta novamente às aspirações de plenitude e liberdade que estariam na sua origem, devolvendo o sujeito à reconciliação de um “estar um com a totalidade”.36 Apesar do pragmatismo dessa visão, precisamente por depender da distinção prática entre o um poético e o um ideológico, ela não é rigorosa o bastante, pois introduz uma distinção que não se desdobra da necessidade do conceito, mas lhe é exógena. É preciso pontuar, assim, que a história não termina na reunificação com o um mítico; é preciso ver como esse um funciona por dentro, para descobrir ali a sua inconsistência, terminando por finalmente desativar a pretensão à unidade. No limite, o desejo por “unificação”, por “tornar-se um” que Bosi vê na poesia de resistência diz mais sobre o seu aparato crítico do que sobre o objeto, propriamente dito.
No que propusemos acima, a dificuldade dessa pretensão por “tornar-se um” já se mostrava insuficientemente elaborada por Bosi, já que, como vimos, os próprios circuitos temporais por ele propostos implicam na duplicação e cisão do tempo que a poesia seria capaz de reunificar. É apenas lendo Bosi contra Bosi que chegamos a ver como o conceito de resistência, cujo horizonte é o retorno à unidade perdida e a recuperação da capacidade de nomeação da vida pelo poema, pela própria maneira como é estruturado, implica ele mesmo a impossibilidade da sua realização final. É a esta autocontradição implícita no conceito de resistência que estou chamando, na falta de nome melhor, de dificuldade da resistência. Se a coisificação do mundo moderno impede que o poema recupere sua capacidade de nomeação da vida e lhe impõe a tarefa de resistir, a dificuldade da resistência interdita a possibilidade de que ele, mesmo resistindo, se reconcilie consigo mesmo, pois não é apenas a poesia, mas a própria resistência que está cindida. Se resistir é recuperar a unidade perdida do esforço mitopoético, a dificuldade está no fato de que é impossível resistir, pois os caminhos da resistência são, na verdade, os caminhos da autocisão do ser e do tempo da poesia.
No limite, Bosi não dialetiza o conceito de resistência, o qual serve como ferramenta para dialetizar os poemas por ele interpretados, fazendo-os ricochetear de um tempo a outro, mas cujo movimento jamais é reinteriorizado pelo próprio conceito. O esforço de pensar os limites aos quais esse conceito chega, seguindo de perto as suas contradições internas, é, em certo sentido, o de terminar o trabalho do conceito. O resultado não é uma anulação da ideia de resistência, mas a constatação de que ela não termina onde Bosi a deixou. É apenas quando se chega a uma resistência da resistência que a chave poderosa desse conceito é capaz, finalmente, de abrir os poemas para uma interpretação desmistificadora, na qual o horizonte não se limita à reunificação da unidade mítica perdida, mas que permite à leitura lançar-se à história aberta.
Do ponto de vista histórico, a situação que deu ensejo à formulação do conceito de resistência se desfez. Ele habitava uma posição dupla, ao mesmo tempo posterior à aspiração desenvolvimentista que então se esgotara, mas procurando, como afirmado pelo próprio autor, guardar do período anterior o que nele havia de positivo, e que diz respeito ao legado emancipador da modernidade. Criação interessantíssima, o conceito de resistência, assim, resiste ele mesmo às condições que progressivamente se desmancham debaixo dos seus pés. Em termos concretos, conceituada no momento histórico em que os sentidos de modernidade e de liberdade se revelaram opostos e irreconciliáveis, a resistência quer reconciliar modernidade e liberdade. Daí o conceito infinitamente se afastar da sua consumação, dado que a reconciliação a que ele aspira implicaria anulá-lo, por duas vias: uma, resolvendo a contradição que lhe havia posto em movimento e tirando-lhe o chão histórico, e outra, tornando supérflua aquela mesma aspiração. Resistir deve querer dizer assim, também, resistir a deixar de resistir, razão pela qual no centro da ideia de resistência pulsa a aspiração à reconciliação que significaria a autodestruição do conceito. Não creio que seja distorcer demais as coisas sugerir que o que anima a reconciliação pela unidade que está na base daquela ideia é o horizonte de modernização nacional, visto por Bosi em chave nova após as turbulências pós-1964, o qual, uma vez que hoje parece ter desaparecido, ou ao menos tendo sido revelada a sua limitação, ilumina por sua vez a limitação, mas também a abertura, daquele que possivelmente foi um dos últimos conceitos fortes da teoria crítica brasileira.
5. Poesia, resistência e alegria
Na poesia brasileira escrita hoje, não é raro se deparar precisamente com a tensão entre o desejo e a dificuldade de resistir na e através da palavra poética. Essa é a tensão que atravessa, por exemplo, a obra de um poeta como Fabiano Calixto, em especial no seu livro Fliperama, de 2020. Nele, a constatação do presente devastado do país não implica em esvaziamento da força poética, mas, ao contrário, é matéria de uma nova articulação entre sujeito e mundo que – nos termos da nossa reflexão – refaz o caminho da resistência bosiana, procurando, no entanto, evitar as suas armadilhas mistificadoras. O pano de fundo do livro é a ascensão do fascismo, a crescente violência social e a dobra na aposta da radicalização política à esquerda. Assim, Fliperama busca não apenas articular a dificuldade de um presente opaco, mas mobilizá-la no sentido de uma saída, ora menos ora mais clara – como em “Zap para Fabiano Calixto”, cujo único verso, grafado em itálico, como uma mensagem que cruza o espaço em vias de desaparecer, sintetiza:
ZAP PARA FABIANO CALIXTO
defender a alegria como um destino37
Aqui o destino ao qual está submetido o poeta é um destino escolhido, defendido. Impõe-se a tarefa de defender – lançando mão do jargão da luta política – a alegria, como um resto que resiste e cintila, aqui e ao longo do livro, apesar ou mesmo em razão da dificuldade, isso é, de um presente histórico que é tudo, menos alegre. A alegria é uma fagulha de abertura que, na solidão autorreflexiva do sujeito que envia uma mensagem para si mesmo, trinca o presente: fecha-o como obstáculo, destino que se impõe; abre-o como alegria, destino que se decide. Com alegria, é possível aspirar à resistência; com ela, “um arco-íris acende / sua luz na treva” e “nasce no céu da boca / um dia de primavera”.38
Mais além, contra o país mortífero de onde vêm os “buracos de bala” que cravam o poema39, outro país é imaginado, o país que poderia ter sido e que não foi, exercício elaborado pelo impressionante poema “Churrasco em Pasárgada”. Às custas de atravessar as ásperas dificuldades que compõem outros momentos do livro, o poeta reconcilia-se momentaneamente aqui com o passado mítico a partir do qual ricocheteia a profecia de um futuro utópico, alegre e livre – elementos da poesia de resistência no seu desenho bosiano. Não à toa o poema tematiza aquele que é talvez o mais importante dos elementos coesivos do espírito nacional: o futebol. Nele, a imaginação desejante do sujeito é modestamente disparada pela memória do que pode ter sido um momento de felicidade infantil, e que coincide, nessa metonímia, com o último instante feliz da nação: os 23 minutos do segundo tempo de Brasil e Itália na Copa de 1982, quando o gol de Falcão arranca um empate para os brasileiros. A alegria duraria pouco, e o placar mudaria apenas seis minutos depois, com o gol derradeiro dos italianos. Mas este gol, o da tragédia, não comparece no poema, e a seleção de 1982, que passaria a representar ao mesmo tempo o último suspiro e a crise derradeira do “futebol-arte” consagrado pelo encantador ciclo de 1958-1970, permanece para sempre congelada no tempo, no seu momento de máxima euforia. Não é difícil adivinhar aqui o desejo de que a seleção tivesse tido um destino diferente naquela Copa. Por metonímia, esse desejo termina por se configurar euforicamente em uma outra fantasia, mais ambiciosa no seu escopo e consequência: a fantasia de uma nação liberta do seu predicado trágico, povoada por um sujeito finalmente coletivizado (“escancaramos a garganta coletiva”), para, só então, ser possível apontar para o que a poesia poderá ter sido: antídoto contra a morte.
CHURRASCO EM PASÁRGADA
pensa bem,
5 de julho de 1982
estamos numa lanchonete
de posto de gasolina
TV ligada, meio-dia,
bebemos cerveja, refrigerante,
torresminho com limão, mortadela e biriba,
– mordemos o que podemos
aos 23 minutos do segundo tempo,
a voz de
Luciano do Valle,
[...] Boa abertura! Falcão. Cerezzo passou pra receber. Falcão limpou,
vai bater! Bateu! Goooooooooooollllllllllllllllllllll!!!!!!!!!!!!!!!!!! Só mesmo
Falcão! Com toda categoria, com toda habilidade!
pensa bem,
nós, severinos de mesmas águas de pias,
filhos de mesmas mães e de mesmos finados zacarias,
de mesmas sesmarias, na fila da mesma fria ruína destes dias,
mesmos subúrbios, favelas, vilas, cortiços, periferias,
defendendo a alegria
contra a parada cardíaca
vivendo a vida,
contrariando as estatísticas
pensa bem,
escancaramos a goela coletiva
acendemos as velas
molhamos a caveira
brindamos
nos abraçamos
nos beijamos
choramos
– enquanto isso
um poema adentra o corpo
e trapaceia a morte40
Talvez haja na poesia brasileira contemporânea poucos exemplos mais bem-acabados de expressão do desejo por um passado mítico quanto este poema de Calixto. Contudo, “Churrasco em Pasárgada”, com seu título espertamente ambivalente que remonta inequivocamente ao Modernismo – o reino da utopia poética, a festa popular do fim de semana (todo torcedor, no instante do gol, é um habitante de Pasárgada) – não é um poema propriamente nostálgico, embora a rememoração de uma alegria que ficou pelo caminho lhe dê, ao início, certo tom de melancolia.41 No entanto, o passado não é evocado apenas pelo fetiche de evocá-lo; como no ricochete presente-passado-presente* da resistência defensiva bosiana, o passado, transformado em mito, aponta para um presente alternativo no qual a pulsão mortífera da vida sem alegria é trapaceada.
Ao mesmo tempo, um deslocamento decisivo se faz necessário para que o gesto da resistência se mantenha ativo. Já não há espaço para a coincidência sem resto do poema com o mito, e do poeta com o eu-reconciliado; ao contrário, sem perturbar o que há de comovente no retrato, tudo se dá como que de segunda mão, sugerido pelo sujeito que, ao mesmo tempo e sem confessar, deixa implícito que a experiência descrita pelo poema já não se dá, ou já não pode se dar de maneira imediata. No limite, em razão da sua estrutura de mediação, “Churrasco em Pasárgada” é uma alusão de experiência, miragem de mito, mais do que mito propriamente; o poema está no registro do “seria”, e não do “foi” ou do “será”. À condição já sempre mediada da poesia em relação à experiência, dada a sua natureza representativa, soma-se uma segunda mediação, interna à economia do poema, capturado no “pensa bem” com que o eu-lírico se repete e se repõe, sempre com um pé fora da felicidade que promete. Tal distanciamento se vê, já, na substituição com a qual ele opera, trocando a nação pela seleção, o cidadão pelo torcedor, numa espécie de jogo de felicidades contrabandeadas, próprio, aliás, da euforia provocada pelos esportes, isso é, uma euforia excepcional, de jogo, depois da qual a vida volta a girar normalmente. Não obstante, a estrofe final, com a imagem notável do poema se embrenhando pelo corpo e trapaceando a morte, resguarda ainda que por um instante a crença no poema como um acontecimento capaz de suspender o tempo. Um poema que jogasse como a mítica seleção de 1982 – belo, encantador, sublime, capaz de dar forma à vida e ao êxtase: este parece ser o desejo instigado pelo poeta como potência sempre pulsante, sugestiva do que a poesia pode e talvez deva ser.
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