Uma obra em que há teorias é como um objeto sobre o qual se deixa a marca do preço
Proust
Aprendemos com Marcela Oliveira que a palavra fim, na derradeira página dos sete volumes de Em busca do tempo perdido, assinala uma abertura para novos começos e recomeços. Se, por um lado, a palavra fim circunscreve um conjunto textual e encerra um processo de escrita – que as edições críticas do texto proustiano nos mostram que foi longo e meticuloso – por outro lado, configura o todo do romance como uma totalidade aberta ou movente. A abertura e o movimento se fazem sentir não apenas porque novas leituras podem fazer proliferar distintas interpretações, mas também porque atravessam o texto, são propriedades essenciais a ele, na medida em que a sucessão das frases se interrompe deixando no ar a promessa da escritura de um romance.
Tal promessa, como sugere Marcela, poderia levar muitos leitores – como ocorre frequentemente – a recomeçarem a leitura dos volumes da Recherche, entendendo-os, então, como o romance que o personagem Marcel teria finalmente escrito. As últimas páginas de O tempo redescoberto (ou reencontrado), apresentam o tempo, não mais como fluxo que passa e se perde de modo irrecuperável, mas como dimensão de presença mais intensiva do que o espaço, porque nela os seres humanos surgem como “ocupando um lugar [ao contrário] prolongado sem medida – já que tocam simultaneamente como gigantes mergulhados nos anos, em épocas tão distantes”.1 Somente a revelação desse aspecto da natureza do tempo permitiria a efetivação do projeto anunciado em tantas páginas, frustrado em outras tantas, aparentemente adiado pela vivência das aventuras (ou desventuras) narradas no imenso conjunto delas.
De minha parte, quis começar a reler No caminho de Swann logo depois de terminar O tempo reencontrado por saudades antecipadas daqueles seres fascinantes que habitam os mundos criados na escrita proustiana. Era triste pensar em prescindir do convívio assíduo com o barão de Charlus, da observação das cenas mundanas da sofisticação dos Guermantes, ou da cafonice dos Verdurin. A época em que li a Recherche, no entanto, não propiciava releituras. De algum modo ainda obscuro para mim, Proust foi uma das leituras que me ajudaram a desistir do insano projeto de pesquisa de mestrado em torno do amor na filosofia contemporânea, em proveito do mais factível plano de estudar o conceito de desejo na filosofia de Deleuze. Proust e os signos fazia parte dessa pesquisa, em função de interesses bastante específicos, ligados à gênese de alguns elementos do campo conceitual criado pela ideia de desejo como produção inteiramente afirmativa, tais como o conceito de agenciamento.
Algum tempo mais tarde, já cursando o doutorado, surgiu uma oportunidade de reencontrar Proust, num curso da professora Jeanne Marie Gagnebin oferecido aos pós-graduandos de letras e de filosofia. Lendo o belo texto da Marcela Oliveira, lembrei-me de que tinha transformado o trabalho feito para esse curso em um artigo. A busca desse artigo conduziu-me a uma constatação que me espantou: sua publicação data de vinte anos atrás.
A saída da juventude favorece esse tipo de situação com frequência crescente. Quanto mais o tempo passa, menos sua passagem se faz notar e tantos acontecimentos que nos parecem recentes se mostram distantes no tempo. Esse fato tão corriqueiro, que talvez tenha relação com o privilégio crescente da memória de longo prazo sobre a memória recente, é um dos temas da vida ordinária que, com o tratamento extraordinário a ele conferido por Proust, fazem a glória da obra e do escritor que ora nos ocupam. Não me parece sensato ultrapassar a alusão a ele, posto que, para uma estada mais demorada nele, é sempre mais proveitoso reler Proust. O que motiva essa releitura, no meu caso, talvez mereça, ao contrário, um pouco de consideração.
Pois bem, segundo a tão frutífera dinâmica desses encontros do GT de Estética, em que dois ou mais colegas comentam o trabalho de uma colega que apresenta sua pesquisa, logo me ofereci para ser uma das debatedoras, quando soube que Marcela Oliveira falaria a respeito de Proust, por saber que é um autor a quem ela vem se dedicando há tempos e por admirar seu trabalho que transita de maneira tão desenvolta entre filosofia e literatura. Nem sabia, então, que Marcela mobilizaria a leitura deleuziana de Proust em seu texto, o que me oferece uma via de acesso mais familiar. Costuma ser enriquecedor revisitar temas e autores velhos conhecidos nossos, mas depois de ler algumas vezes esse texto cujo título é dos mais belos e felizes que já vi – “Escrever a palavra fim: cem anos da morte de Proust” – de reler outros tantos textos (dentre eles o estranho “Exercício de leitura contrassexual”, ao fim do Manifesto contrassexual de Preciado, intitulado “Da filosofia como modo superior de dar o cu: Deleuze e a homossexualidade molecular”) estava aqui pensando o que poderia motivar minha fala, para além do relato factual que acabo de fazer. Tendo em vista o conjunto da mesa, e o fato de ser estudiosa da filosofia deleuziana, pareceu-me útil retomar os temas de Proust e os signos que despertaram o interesse de Marcela Oliveira e, a partir deles, acrescentar alguns que seguem a me interpelar, deixando de lado, por minha vez, outros tantos aspectos desse livro microcosmo.
Para os propósitos de “Escrever a palavra fim”, são três, basicamente, os elementos selecionados da leitura deleuziana de Proust. Primeiro, Deleuze contribui para pensar o tipo de unidade constituído por uma obra que, segundo se tem notícia, foi escrita com a interpolação de uma miríade de papeizinhos – Proust adoraria os post-its e a possibilidade de recortar e colar ao infinito que o computador nos oferece – e que traz a marca do fragmentário, o selo do que Marcela Oliveira chama de “maldição moderna”, que se manifesta como “despedaçamento da ordem do cosmos”. Tal unidade não preexiste à multiplicidade que a constitui, nem atua como princípio ordenador, e, menos ainda, como origem. A definição do tipo de unidade ou totalidade produzido pela Recherche encontra-se na segunda parte de Proust e os signos, que só aparece na segunda edição do livro, de 1970, seis anos depois da primeira edição de 1964, portanto. A noção de transversalidade, que Deleuze captura de Guattari2, é crucial para a compreensão de todo e unidade do romance de Proust. E, no esforço de compreender Proust e, quem sabe, reiventá-lo, Deleuze parece recolher elementos que serão reelaborados em sua produção conceitual posterior. Cito Deleuze:
O que constitui a unidade de uma obra? O que nos faz "comunicar" com uma obra? O que constitui a unidade da arte, se é que existe uma? Desistimos da procura de uma unidade que unificasse as partes, de um todo que totalizasse os fragmentos, porque é da própria natureza das partes e dos fragmentos excluir o logos, tanto como unidade lógica quanto como totalidade orgânica. Mas há, deve haver, uma unidade que é a unidade desse múltiplo, dessa multiplicidade, como também um todo desses fragmentos; um Uno e um Todo que não seriam princípio, mas, ao contrário, "o efeito" do múltiplo e de suas partes fragmentadas; Uno e Todo que funcionariam como efeito, efeito de máquinas, ao invés de agirem como princípios. Uma comunicação que não seria colocada como princípio, mas que resultaria do jogo das máquinas e de suas peças separadas, de suas partes não comunicantes.3
Outro elemento retomado por minha colega é a caracterização da estrutura formal da obra de arte como aquilo que assegura a unidade produzida no conjunto de fragmentos, uma vez que a natureza objetiva desses fragmentos, ou melhor, tais fragmentos tomados como conteúdos de uma narrativa, não trazem consigo critérios que permitiriam definir em que ponto interromper a narração, ou quando “escrever a palavra fim”. No entanto, se no trecho citado por Marcela Oliveira Deleuze parece identificar estilo e estrutura formal da obra, colocando ambos como responsáveis pela produção de uma totalidade, em outro ponto do livro, há uma clara distinção entre os dois elementos: “não é, portanto, o estilo que garante a unidade, pois ele deve receber de outra parte sua própria unidade: nem tampouco é a essência, visto que esta, como ponto de vista, está perpetuamente fragmentando e sendo fragmentada”.4
Aproveito para inserir aqui uma digressão concernente a uma hipótese a respeito do que explicaria o interesse de Deleuze, em particular, e de filósofos, de modo geral, pela obra de Proust. À parte as motivações singulares, e talvez insondáveis, algumas delas concernentes a afinidades afetivas, parece-me que a Recherche tem interpelado tantos filósofos, antes de mais nada, por se configurar como um empreendimento artístico que rivaliza abertamente com a filosofia, ou, ao menos, com um certo tipo de saber teórico. Trata-se de uma construção literária que faculta o acesso ao Tempo em estado puro, a essências que são espiritualizadas ou mentais, mas constituem pontos de vista individuantes sobre o mundo material e sensível. No caso de Deleuze, a ideia de um uso involuntário das faculdades, promovida a partir da ampliação da figura proustiana de uma memória involuntária a todas as faculdades, será determinante para a formulação de um projeto filosófico em que o pensamento se desprende da recognição – e, portanto, da representação. O último capítulo da primeira parte, publicada em 1964, intitula-se A imagem do pensamento, título que também nomeia o terceiro capítulo de Diferença e repetição, cuja posição é estratégica tanto no livro, quanto no projeto filosófico deleuziano.
Dentre as camadas, ou mundos, de signos que constituem a Recherche, apenas os signos artísticos alcançam as essências. Os signos sensíveis induzem seus receptores (ou captadores) à ilusão objetivista, que leva a buscar em vão pelo âmbito do essencial nas qualidades dos objetos que são tidos erroneamente por emissores dos signos. Os signos amorosos, por sua vez, são primordiais para deflagrar o movimento de decifração, disparada tanto pela paixão amorosa, quanto pelo afeto que constitui seu sentido – a direção para a qual tende – a saber, o ciúme. No entanto, a conexão intrínseca que Proust tece entre amor e ciúme indica que os signos amorosos são constitutivamente mentirosos. Não apenas porque os mundos possíveis complicados na pessoa amada são promessas não cumpridas para aquele que ama, mas também porque, segundo as dolorosas descobertas de Sodoma e Gomorra, a homossexualidade é a verdade escondida sob os amores heterossexuais. Menciono de passagem que é a insistência de Deleuze nos temas proustianos do hermafroditismo originário e da homossexualidade fundamental oculta sob todos os amores que será analisada por Preciado, no texto a que me referi, para compreender o conceito de homossexualidade molecular, tal como proposto por Deleuze e Guattari em O anti-Édipo.
Voltando aos signos amorosos, estes não permitem aceder às essências por induzirem a uma ilusão, desta vez, subjetivista. Como se a pessoa amada, em sua subjetividade, pudesse descortinar o mundo das essências, o que não ocorre. Há ainda outro campo de signos que nem ao menos acenam com tal promessa, uma vez que se mostram logo de cara como constitutivamente vazios, como signos que remetem a outros signos, não a um conteúdo ou significado. Apesar de vazios, os signos mundanos são de extrema importância no aprendizado do artista, grande produtor de signos, por tornarem possível um puro exercício formal de conexão entre signos.
Não apenas os signos da arte são os únicos capazes de remeter a essências, que são pontos de vista que reúnem objetos, sujeitos e momentos distintos no tempo, como também, numa época em que não é mais possível restaurar nem a bela totalidade orgânica, nem uma unidade lógica inteligível, só a arte consegue se configurar como produtora de unidade. Cito Deleuze: “num mundo reduzido a uma multiplicidade de caos, é somente a estrutura formal da obra de arte, enquanto não remete a outra coisa, que pode servir de unidade – vinda depois [par après]”.5
Por último, Marcela de Oliveira busca em Deleuze a ideia de que a dimensão temporal privilegiada na Recherche é o futuro, “a flecha para a frente”, que move o aprendizado do artista em meio às camadas de signos diversos, não o passado rememorado de modo voluntário, ou mesmo, no melhor dos casos, involuntário. É o predomínio do futuro que permite a Deleuze relegar a memória a um papel secundário, o que constitui inclusive o tema de um dos capítulos de Proust e os signos.
A epígrafe do texto de Marcela Oliveira, recolhida de Benjamin, nos indica que a palavra fim, encerrando os romances, convida a refletir sobre o sentido da vida. Na leitura de Deleuze, a narrativa proustiana coloca o problema do sentido conectado ao aprendizado com os signos, por meio do encontro com eles e de sua intepretação. A essência envolvida ou complicada nos signos só é desenvolvida e explicada (liberada de seu aprisionamento na matéria) pela arte. A arte é que produz, engendra sentidos para os signos, que, sem ela, permaneceriam decepcionantes, irremediavelmente aquém do essencial. Cabe à filosofia, na perspectiva de Deleuze, abrir-se ao encontro fortuito com os signos, encontro não comandado pela vontade nem pela inteligência, aprender com a arte a disciplinar a inteligência a se exercer sob o impacto da violência dos signos, não no sentido de acomodar o que produzem de novo ao já conhecido. Talvez por isso haja tantos filósofos leitores de Proust. Talvez com ele a filosofia possa aprender, e, eventualmente, tenha aprendido, a produzir conceitos que não permaneçam arbitrários, extrínsecos ao que foram criados para pensar, além de fabricar unidades como efeitos do múltiplo, totalidades ou sistemas abertos e fragmentários, que nos permitam nunca ter que escrever a palavra fim como epitáfio da filosofia.
Referências bibliográficas
DELEUZE, Gilles. Proust et les signes. Paris: PUF, 1996.
PRECIADO, Beatriz. Manifesto contrassexual. Tradução de Maria Paula Gurgel Ribeiro. São Paulo: n-1 edições, 2014.
PROUST, Marcel. A la recherche du temps perdu. Le temps retrouvé. Paris: Flammarion, 1986.