WORLD PEACE COUNCIL. Congrès mondial pour le désarmement général et la paix. Moscou 9-14 juillet 1962. [S. l. : s.n.].
SARTRE, Jean-Paul. Situations VII. Paris: Gallimard, 1965.
Introdução
Intitulado “A desmilitarização da cultura”, o texto cuja tradução apresentamos a seguir é uma conferência realizada por Jean-Paul Sartre no Congresso Mundial para o Desarmamento Geral e a Paz, ocorrido em Moscou, na então URSS, em 1962. Nela, o filósofo francês discute o impacto da Guerra Fria sobre a cultura em geral, considerando que não apenas a tecnologia e a ciência tornaram-se militarizadas, mas também a literatura. Daí seu apelo por uma “desmilitarização da cultura”, denunciando a submissão da arte e da crítica especializada a uma lógica de guerra que consiste em tomar como estáticas as características contraditórias (em sentido dialético) de toda manifestação cultural possível: seu particularismo nacional e sua universalidade latente. Ora, é por conta de sua particularidade que uma obra tende ao universal, realizando-se como expressão mesma da humanidade. Ao contrário, em tempos de guerra a cultura começa por afirmar-se em uma particularidade identitária plena, mistificada, eliminando a alteridade dialética que permitiria sua passagem ao universal: “há apenas uma única cultura, e, em qualquer outro lugar, a barbárie”. Neste sentido, o diagnóstico de época realizado por Sartre se faz acompanhar pela ideia da própria cultura como realização do universal singular.
Mas mesmo situada em seu tempo, no contexto bastante específico da Guerra Fria, ainda assim a conferência de Sartre não perde sua atualidade, sobretudo tendo-se em vista nossa quadra histórica nacional: no momento atual, acirrado pelas polarizações políticas e pela mobilização de uma “guerra cultural” que serve de veículo à retórica do ódio, a arte volta a ser “militarizada” no Brasil, colocada como artilharia de guerra de um e do outro lado da trincheira. Nesta ambiência, afirmar o engajamento da arte sem reduzi-la a uma instrumentalização bélica, tal como Sartre propõe, volta a ser fundamental. Seria necessário realizar o saldo crítico do sistema de crenças de nossa “guerra cultural”, que se espraia, de modos diversos, por todo o nosso espectro político.
Apresentada em 1962, “A desmilitarização da cultura” seria ainda parcialmente publicada em Situations VII, em 1965, com modificações. No interesse de saber o que foi retirado da publicação final, buscamos a existência de algum documento sobre o congresso no qual estivesse transcrita toda a fala de Sartre. Agradecemos ao International Institute of Social History, da Holanda, pela gentileza de disponibilizar a ata, com a qual foi possível trabalhar em uma tradução comparada das duas versões.
A maior parte das alterações realizadas na tradução refere-se à pontuação, à correção de algum dado errado (como o século em que um escritor viveu) e a uma melhor fluidez do texto escrito a partir da fala, sem lhe retirar o caráter de uma apresentação oral. De modo geral, mantivemos o texto tal como aparece na versão final, publicada em Situations. Há, no entanto, alguns trechos que foram omitidos na publicação final e que, não obstante, estão presentes em nossa tradução.
Os parágrafos retirados da versão final foram reinseridos em nossa tradução, estando sinalizados por [ ]. Além dos trechos iniciais e finais, de contextualização sobre o próprio congresso (possivelmente omitidos em razão de se tratar de uma publicação sem relação direta com o evento soviético no qual a fala foi originariamente pronunciada), há também uma discussão importante sobre a guerra do Vietnã e sobre o papel dos intelectuais franceses na guerra da Argélia que não aparece na versão final. Reinserir essa temática, ainda mais quando Sartre associou as guerras a uma mitologia racista, é urgente. Fica a questão – que só admite respostas hipotéticas, dado que o intelectual não justifica a retirada dos trechos – de imaginar o motivo de essas referências terem sido suprimidas. Sabemos que não se tratava do receio em indicar a responsabilidade dos intelectuais franceses, e, portanto, de si mesmo, em relação à Guerra da Argélia. Afinal, como intelectual engajado, Sartre jamais se eximiu de polêmicas e autocríticas.
Além da retirada de alguns parágrafos e de correções formais e de estilo, a versão final da conferência, tal como publicada em Situations, ainda conta com modificações que corrigem certos equívocos de digitação de algumas palavras, permitindo um sentido mais adequado às ideias do texto. Nestes casos, adotamos sempre a palavra utilizada na versão final, já que se trata de uma correção feita pelo próprio Sartre, e porque resolve problemas de interpretação textual (por exemplo, em determinado contexto a versão original registra a palavra hommage em um sentido que destoa do conjunto da argumentação, a não ser em seu uso irônico, ao passo que a versão de Situations faz uso da palavra dommage, coincidindo perfeitamente com o sentido da frase). Estes casos serão sempre apontados em notas de rodapé na tradução.
Tradução
[A honra que me foi dada pelo Congresso permitindo-me expressar meu pensamento à tribuna me é ainda mais sensível na medida em que não represento ninguém e não posso falar senão em meu nome. Entretanto, existe um grupo de homens, até aqui sem grande articulação, sem poderes, sem política comum e, no entanto, mais unidos que muitos políticos no seio de um mesmo partido, que é o grupo dos homens de cultura: o grupo ao qual pertenço, por meu trabalho e minhas preocupações. Ninguém pode falar hoje em nome dessa coletividade tão dispersa, e vocês compreenderão que não pretendo fazê-lo: no entanto, não posso me dirigir a vocês senão como homem de cultura, o que também sou. Tomei o cuidado de consultar meu amigo Carlo Levi, da delegação italiana, escritor conhecido de todos, assim como Vigorelli que, vocês também sabem, luta para realizar uma comunidade cultural organizada na Europa e na qual 25 nações já estão representadas. Eles compartilham minha opinião e me permitiram falar em seus nomes, assim como no meu.
Todo mundo aqui está convencido de que os povos devem obter, custe o que custar, o desarmamento mais total ou resignar-se a uma guerra que os exterminará. Se retorno a essa evidência, é para anunciar minha intenção: é na perspectiva desse desarmamento que é preciso entender o que quero tentar dizer. Pareceu-me, no curso dos meses precedentes, que o Congresso se orientaria menos na direção de considerações teóricas do que na da pesquisa de novas táticas; diante do perigo crescente, pareceu-me que o Movimento da Paz receava fechar-se naquilo que fora, outrora, um combate eficaz, e que hoje corre o risco de tornar-se uma tomada de posição conhecida e acadêmica demais. Encontrei uma confirmação desse ponto de vista no discurso do senhor Khrouchtchev: ele sublinhou muito claramente que a situação presente só iria piorar se as massas elas mesmas não aumentassem em toda parte suas pressões sobre os governos. Suponho, portanto, que o Congresso queira colocar em primeiro plano de suas preocupações a racionalização da luta contra a guerra. Como retirar da indiferença essa grande parte da opinião mundial da qual justamente falava o senhor Khrouchtchev? Quais novos métodos preconizar? E sobretudo por quais atos reais, elaborados necessariamente contra os governos belicistas, os autores dessa guerra, por qual prática verdadeiramente revolucionária podemos forçar o desarmamento dos grupos políticos ou militares que investiram, de início, na intensificação crescente da produção de armas? Suponho que seja disso que o Congresso queira se ocupar e saberemos em breve quais providências tomou e quais diretrizes deu. Em todo caso, é partindo desta preocupação maior que gostaria de tratar deste tema particular: a desmilitarização da cultura].
Não é a vocês que preciso dizer o que é a cultura, o que ela significa para cada um, mesmo para o homem mais inculto. E tampouco vou dedicar-me, aqui, a meditações filosóficas. Mas lhes direi apenas o que um jovem soviético me disse durante um debate público sobre a poesia: “Eu sou um técnico e preciso da poesia para fazer corretamente meu trabalho técnico”. Certamente a técnica é, ela mesma, cultura; mas essa palavra, que penso ser ao mesmo tempo totalmente natural e muito bela, mostra que todas as formas da cultura são complementares e que o rigor científico reclama, em cada um, a presença de um outro rigor, mais difícil, que o equilibra: o rigor poético. Outros dirão melhor que eu as terríveis devastações que a guerra fria fez nos domínios da técnica e da ciência, como seus objetivos reais são torcidos e falseados, e quão inútil é o emprego de inteligência e de dinheiro necessário aos pesquisadores no interior de um bloco para descobrir aquilo que achariam mais facilmente com a ajuda dos pesquisadores do outro bloco.
Eu quero manter-me em meu domínio: a poesia, as letras e, mais indiretamente, as artes. Esse jovem técnico, como vocês podem ver, necessita de poemas, ele os absorve e, se posso dizer, os consome. A verdadeira responsabilidade, para nós, homens de cultura, é esta: nós devemos impedir que ele absorva poemas envenenados. Pois é nossa cultura, aquela que nós mesmos produzimos hoje, que se infiltra lentamente nas gerações que nos sucedem. Em vão diremos que as grandes obras do passado podem servir de antídotos: elas podem, é certo, com a condição de que uma propaganda belicosa não lhes tenha falseado, com a condição de que nós não nos sirvamos delas como uma máquina de guerra contra os homens que estão do outro lado da trincheira.
A cultura é, a meu ver, a consciência em perpétua evolução que o homem toma de si mesmo e do mundo no qual vive, trabalha e luta. Se essa tomada de consciência é apropriada, se ela não é sistematicamente falseada, nós deixaremos, apesar de nossos erros e ignorâncias, uma herança válida para aqueles que nos seguirão. Mas se subordinamos nosso trabalho a imperativos bélicos, faremos das nossas crianças, que consumirão verdades envenenadas, fascistas ou desesperadas. Fiquemos atentos, esse perigo é ameaçador: o número daqueles que chamamos na França de blousons noirs1, em outros lugares de hooligans2, está em crescimento. Podemos e devemos dizer desses jovens – quaisquer que sejam seus crimes – que somos responsáveis por eles, que, nesses últimos quinze anos, não soubemos lhes dar essa consciência lúcida deles mesmos, de sua classe, das alienações que sofriam, e que, na falta de esclarecê-los e dirigi-los, permitimos essas violências nuas e selvagens.
[A indiferença desta larga fração de opinião da qual falava o senhor Khrouchtchev, nós, franceses, a conhecemos, na França, a propósito da guerra da Argélia. Nós a sofremos e somos, em parte, responsáveis por ela, na medida em que é normal que as massas retomem por elas mesmas os slogans do imperialismo colonial quando não lhes chamamos diretamente a atenção para esse problema. Ora, a cultura é profundamente antirracista – mesmo se alguns homens de cultura tenham sido racistas em seu tempo – pela única razão de que ela é o produto do homem em sociedade, não importa qual homem, não importa qual sociedade. Nós, homens de cultura, não extirpamos, por nossas obras, esse racismo sorrateiro que se expressava nos franceses por sua indiferença a essa guerra ao mesmo tempo trágica, ignóbil e magnífica: ignóbil pelos sofrimentos que nós, povo rico, infligimos a um povo de pobres que exploramos até a morte, magnífica pela resistência de 9 milhões de homens — a maioria sem armas — ao fogo, ao ferro, à tortura, à devastação. Nós não a extirpamos porque nossas obras não tocavam nessa questão ou porque não o faziam como era necessário. Porque elas estavam, apesar de nós, envenenadas pelo mesmo racismo que queríamos combater, e que, em alguns, já estava presente. Pedantismo, formalismo, indiferença, racismo, fúrias anticomunistas: nosso passivo já é pesado. Produzimos flores venenosas, nossos livros são açafrão-do-prado.3 Entendam-me bem: eu não falo aqui dos escritores reacionários que, ao contrário de nós, bem mereceram a direita que os paga, e que muito mentiram e mistificaram seus leitores. Falo de todos aqueles que, ao contrário, deram mais ou menos prova de boa vontade e que fracassaram em seu trabalho. De nós todos que, contra os mitos falsos e fascinantes do imperialismo racista, não soubemos encontrar o mito do antirracismo, este mito verdadeiro que teria liberado todos esses possuídos que fazem o mal sem compreender o que fazem.
Se nossa responsabilidade é tão pesada e se cometemos tantos erros, é porque – explicação e não desculpa – vivemos em um tempo no qual a cultura é utilizada por toda parte como uma arma de guerra. Compreendam-me: certos escritores, certos políticos fazem a coisa conscientemente; outros agem sob o império de forças objetivas que ignoram – a cultura já se transformou, já há linhas de força, rotas. Em uma palavra, ela já foi transformada em estratégia e em tática militar.
Vejam o que se passa conosco. Homens políticos, homens de finanças, administradores e soldados se deram conta, subitamente, de um grande perigo: a cultura greco-latina estava ameaçada. Repentinamente, todos correram a socorrê-la. Um oferecia dinheiro para defendê-la e o outro, sua espada. Pobre cultura, quão bem nós a defendemos. Quantas associações – cuja sede é na França, na Itália e o caixa na América do Norte – foram formadas no entusiasmo e que se intitulam “Defesa da Cultura”, “Cultura e Liberdade”, “Liberdade da Cultura”, etc... Os escritores nos ensinaram durante a guerra da Indochina que o Parthenon corria risco de morte: os asiáticos o ameaçavam. Tínhamos antes acreditado que os vietnamitas ameaçavam os interesses de certos bancos e empresas. Nós nos enganávamos: Ho Chi Minh obsediava diretamente a Acrópole; defenderíamos a África em Saigon, em Hanói, nos sacrificaríamos, lá, em nome do milagre grego. Eis aqui a mobilização da cultura: cruzeiros foram organizados para mostrar aos franceses o que eles perderiam: encontraram-se barcos, fizeram-se negócios; a pequena burguesia fora ver em Atenas, em Delfos, a justificativa da guerra vietnamita. Eis o que chamo uma verdade adulterada – mais perigosa que o próprio erro. Mostraram-lhes o verdadeiro templo, mas eles não viram senão a guerra. Eles viram a guerra transformada em templo; eles retornaram com um novo motivo para sustentar o Banco da Indochina: o sorriso das Korai4].
Vocês conhecem esse passe de mágica: pretende-se defender a cultura quando, na verdade, se a mobiliza; declara-se por toda parte que se faz a guerra para salvá-la quando, na verdade, ela está inteiramente submetida aos interesses bélicos. O truque é simples: joga-se com as duas características contraditórias – contradição fecunda quando se desenvolve livremente – que definem em conjunto toda cultura: o particularismo nacional e a universalidade ao menos potencial. A profundidade de uma obra vem da história nacional, da língua, das tradições, das questões particulares e muitas vezes trágicas que a época e o lugar colocam ao artista através da comunidade viva na qual ele está integrado. Quem compreenderia Mickiewicz sem conhecer a situação da Polônia no século XIX5? O que nós, mediterrâneos, chamamos com tanta soberba de “civilização greco-latina” não é senão o nosso particularismo e o parentesco de nossas línguas, tanto a italiana ou a espanhola quanto a francesa. E percebi, na URSS, em uma viagem recente, que o público era desde o início sensível a uma certa qualidade que o estrangeiro pressente sem nunca poder defini-la: o aspecto propriamente russo de um livro, de uma encenação, da atuação de um ator.
Por conta desta particularidade, toda obra tende ao universal. Nos disseram em demasia, no final do século passado, que Tolstoi, Tcheckov, Dostoievski eram incompreensíveis aos “latinos” e que tinham “a alma eslava”. E, finalmente, sessenta anos mais tarde, é preciso reconhecer que todo mundo tem a alma eslava na França, já que acolhemos esses grandes autores e fizemos deles o nosso patrimônio. Isso quer dizer que o aspecto propriamente russo de uma obra, retomada por um francês à luz dos costumes e das inquietações francesas, desvela ao seu leitor aspectos até então desconhecidos ou obscuros de si mesmo ou de seu país. Do mesmo modo, os americanos “deram” a nós, “latinos”, Faulkner, mas – e esse é o aspecto complementar e inverso da universalização – nós o devolvemos a eles; esse homem do Sul, assombrado pelos problemas raciais, nos ajudou a melhor nos compreendermos; mas, ao nos compreendermos por intermédio dele, desvelamos aspectos de sua obra que os americanos não podiam conhecer. É o que faz compreender a frase célebre de André Gide: “Fazendo-se o mais particular, tornamo-nos o mais universal”. Entendemos, é claro, “particular” no sentido nacional e histórico, e não no sentido de um subjetivismo idealista.
Mas a tática bélica, em tempos de guerra fria, consiste em separar esses dois aspectos de uma obra para opô-los um ao outro. Ao invés de uma passagem dialética que transforma o particular em geral, a cultura em guerra começa por afirmar sua particularidade (ela é greco-latina, ou europeia, ou ocidental) para só então decidir que ela não é senão o universal, pela simples razão de que há apenas uma única cultura, e, em qualquer outro lugar, a barbárie. Isso equivale a recusar a universalidade em nome do universal. Assim, o humanismo burguês pode se dar ao luxo de ser ao mesmo tempo racista; ele diz: todos os homens são meus irmãos; e acrescenta, à parte6: só são homens os burgueses. A partir daí, a manobra consiste em manipular as grandes obras com a colaboração dos críticos e de jornais inspirados. Vejam Kafka: esse escritor genial era judeu; estava atormentado ao mesmo tempo pelo destino da comunidade judaica em Praga, à época dos Habsburgos e, mais tarde, nos primeiros anos da Tchecoslováquia burguesa; devorado pelos conflitos familiares e pelas contradições de ordem religiosa; e prestou um testemunho tanto mais universal quanto mais profundamente singular. Mas o que nossos críticos fizeram? Emboscaram seus livros na esperança de que explodissem nas mãos do público soviético. Começaram por declarar que a burocracia era um defeito necessário do socialismo – como se esse vício não fosse inerente a todas as sociedades industriais – e então fizeram de Kafka o denunciador dos burocratas. Nada mais resta depois disso senão enviá-lo, se se pode dizer7, aos russos, esperando que cada leitor venha a reconhecer seu país no universo de O processo.
Não seria nada se essa agressão premeditada não provocasse, na URSS, um reflexo de defesa que, embora perfeitamente compreensível, é também um reflexo de guerra: uma vez que esses livros nos insultam, diz-se na União Soviética, não temos nenhuma necessidade de traduzi-los. O resultado: faz quase meio século que Kafka escreveu O processo e o público desse grande país, na vanguarda do progresso social, científico e técnico, ignora frequentemente até o seu nome. Esse autor é submetido a um duplo prejuízo8: no Oeste ele é falseado, torcido; no Leste, silenciam-no. Mas, inversamente, sofremos em toda parte do mal que lhe fazemos: nós o deformamos no Oeste e no Leste pela parcialidade de nossas paixões e não nos beneficiamos em lugar algum de sua verdadeira universalidade9, quer dizer, do valor que ele teria para cada um se lhe deixássemos amadurecer livremente nos espíritos e nos corações e, como diz Marx, em relação a outro assunto, sem a adição de nenhum elemento alheio.
Cito um romancista, mas poderia mostrar, com exemplos tirados10 de disciplinas antropológicas, o grave erro que esse belicismo cultural faz a toda humanidade. Técnicas novas – cibernética, métodos sociológicos, psicanálise – foram concebidas e desenvolvidas no Ocidente capitalista. E não há nenhuma dúvida de que algumas delas foram inventadas precisamente contra o marxismo. Quer dizer que tudo é falso nelas? Não, evidentemente: uma vez que são eficazes, na medida em que servem ao patronato, é preciso que possuam alguma verdade. Isso significa que somente o marxismo pode integrá-las, discernir o joio do trigo, assimilar o verdadeiro, enriquecer-se com isso, e conduzir a luta ideológica, vencendo-a. Mas, precisamente porque conhece a intenção primeira dos pesquisadores, ele desconfia, exclui e rejeita, quando sua imensa vitalidade lhe permitiria redirecionar suas técnicas contra aqueles que o inspiraram. O resultado é que a cultura é dividida em duas: há duas verdades inertes lado a lado que se condenam mutuamente e que são ambas incompletas, embora em sentidos muito diferentes.
Hoje, o momento histórico é tal que a luta ideológica consiste, para a ideologia marxista, em tudo tomar, tudo dissolver em si, e tudo transformar. Mas isso implica necessariamente que uma força tão poderosa, e que poderia ser irresistível, renuncie à desconfiança em relação a tudo que não é originalmente nascido dela, quer dizer, enfim, em relação a si mesma. Em outros termos, requerer a unidade da cultura é reivindicá-la em suas contradições vivas e não, pelo contrário, abandonar a luta ideológica. É a guerra que mata a luta ideológica na medida em que substitui o confronto pela separação e pela condenação recíproca. Aqui mesmo o senhor Khrouchtchev falou sobre a coexistência dos regimes e declarou, com razão, que ela não pode ser senão uma competição em todos os níveis, mas que deve ser pacífica. Eu aplico à cultura o que ele nos disse e concluo que ela deve ser competitiva, que sua unidade sintética implica justamente, em cada caso, uma competição que deve, a meu ver, acabar em prol do marxismo.
Retornemos a Kafka. Nós teremos o exemplo de uma verdadeira competição cultural. Eu perguntei a um de meus amigos soviéticos: por que não traduzi-lo? Ele me respondeu: em breve, vamos começar a publicar obras menores, mas compreenda, a crítica do Ocidente já o deformou tanto que ele aparece, a muitos, como nosso inimigo jurado. Respondi: E por que, então, de sua parte, vocês não escreveram artigos de crítica marxista para reivindicá-lo? Ainda aqui vocês teriam ganhado, pois seus métodos vão mais longe na explicação que os dos críticos ocidentais. Ou, antes, eles irão muito mais longe quando vocês lhes tiverem tirado o que possuem de verdadeiro, rejeitando11 o falso. A verdadeira competição cultural, em uma palavra, é suprimir todas as fronteiras e barreiras da cultura e lançar, em seguida, esse desafio pacífico: a quem, a vocês ou a nós, pertence Kafka – isto é, quem o compreende melhor? Quem pode dele melhor tirar proveito?
Não: nós, homens de cultura – e me dirijo a todos aqueles que me escutam –, sabemos bem que não se deve defender a cultura. Defendê-la é, na verdade, servir-se dela para justificar a guerra; contra quem a defenderíamos, com efeito, senão contra homens? Mas, justamente, quem a faz senão os próprios homens? Eu sou daqueles que preferem uma vida humana à catedral de Chartres. Porque a catedral, se nós morrermos por ela, não fará homens para nos substituir; e porque os homens, se eles permanecem e a catedral desmorona, podem refazê-la, como prova o exemplo de Varsóvia. A cultura é feita pelos homens e para os homens. Defendê-la contra eles é transformá-la em ídolo, é alienar o homem de seu produto. E se o canhão entra em jogo, se dispara bombas greco-romanas contra os canhões asiáticos, é de se temer, por fim, que não haja mais, nem em Angkor nem em Atenas, senão pedras espalhadas pelos bombardeios.
A cultura não tem que ser defendida. Nem pelos militares, nem pelos políticos. E aqueles que se pretendem seus defensores são, na verdade, quer queiram ou não, os defensores da guerra. Quando os soldados do imperialismo defendem o Parthenon, na realidade, é o Parthenon que defende o imperialismo. Não é preciso proteger a cultura, e a única tarefa que ela espera, cabe a nós, intelectuais, realizar: é preciso desmilitarizá-la.
Como? Não cabe a mim dizê-lo. Mas a todos: todos os antropólogos, todos os escritores, todos os artistas conhecem essa fissão cultural que corresponde tão rigorosamente à fissão do átomo; cabe a eles impedir a explosão e pesquisar os meios para trazer ao mundo das ideias e das formas sua unidade12, suas contradições fecundas, suas competições pacíficas e, em última análise, sua potência criadora. Aqui, como em todos os domínios, os países descolonizados ou em luta contra o imperialismo nos serão de uma preciosa ajuda. Neles, os problemas culturais são outros: não se trata de uma guerra ideológica; se eles estão em luta é contra a cultura de sua ex-metrópole, que lhes impôs frequentemente sua língua e suas ideias; e seu objetivo não é simplesmente rejeitá-la nem retornar, sem mais, às suas antigas tradições, mas forjar, com e contra o passado pré-colonial e o que eles jugam ainda válido nas artes e nas ideias da potência que os oprimia, uma cultura revolucionária e atual, que se forja ao mesmo tempo que sua unidade nacional.
Eles serão nossos mais importantes aliados, precisamente porque o problema cultural não se apresenta a eles de acordo com as mesmas clivagens. [E uma vez que colocam a questão em termos de superação e de integração, a unidade dialética da cultura nacional reivindica e tende a provocar a unidade mundial da cultura. Contra os antigos opressores, eles precisam justamente da unidade internacional das ciências, das ideias e das artes. Tanto Marx quanto Kafka lhes são necessários; e é essa união necessária que pode nos conduzir, homens do Leste e do Oeste, a nos unirmos para eles e por eles.]
Uma reunião mundial dos homens de cultura para o desarmamento cultural, qualquer que seja sua forma, é, creio eu, a que melhor permitiria, pela união de todos os homens de cultura contra a guerra, restabelecer a unidade cultural que perdemos. Essa reunião, cuja ideia submeto ao Congresso, pode tomar formas diversas: pode ainda ser um Congresso (mas já não há muitos?), assim como uma reunião restrita de alguns indivíduos (mas aqui não acreditamos, nem uns nem outros, na importância de “personalidades”). O que resta? O que Vigorelli propunha nessa manhã: ele desejava13 que os escritores da África, da América e da Ásia constituam, em seus países e em seus continentes, comunidades orgânicas semelhantes à nossa; além disso, ele esperava que, quando feitas, cada comunidade, inclusive a comunidade europeia dos escritores, delegasse um pequeno número de seus membros para encontrar os delegados das outras. Sem serem exatamente mandatados, todos estes homens deixariam de representar apenas a si mesmos: eles se sentiriam responsáveis em relação a seu continente.
Por meio desse debate, poder-se-ia estabelecer as bases de um programa a ser proposto a todas as nações: supressão de todo protecionismo cultural, publicação de obras importantes – sejam ou não contemporâneas – em todas as línguas14, sob o controle de homens de cultura, que deveriam ao mesmo tempo assumir em cada caso a responsabilidade de propor as obras ao editor e, por meio de prefácios ou artigos críticos, explicá-las ao público de acordo com a ideologia admitida, na intenção de torná-las acessíveis ao maior número – mesas redondas frequentes (entre escritores, artistas, entre críticos e críticos de arte), contatos privados, obrigação de todos defenderem cada um. Temos um grande desafio a superar: a guerra fria não fez senão poucos mortos, mas estagnou a cultura universal. Mas se realmente, pela primeira vez no mundo, os homens de cultura se unissem, estou convencido de que chegaríamos rapidamente ao degelo. [E essa nova força, por sua mera existência bem como por seus interesses profundos, não poderia deixar de ajudar poderosamente na manutenção da paz].