Carla Damião constrói parte de seu argumento a partir de uma abordagem do modelo de classificação social do sistema de cotas de 2012, projeto de reparação histórica destinado à entrada de não-brancos nas universidades públicas brasileiras. Um sistema que se baseia na autodeclaração, ou seja, em um sentimento de pertença subjetiva e estética à categoria de não brancos (em toda a sua diversidade). Esse sentimento é sintoma da construção das diferenças raciais no país, intrinsecamente associadas ao fenótipo, o qual faz ressaltar a importância da dimensão estética desse construto. Damião aborda essa dimensão, do ponto de vista histórico brasileiro, por meio da tese de várias teóricas do assunto, e do ponto de vista da filosofia, a partir da tese de Monique Roelofs no livro The Cultural Promise of Aesthetics, em que a pesquisadora trabalha a raça partindo de uma crítica à estética oitocentista, principalmente a Hume e Kant, com o intuito de elucidar os recortes raciais associados aos usos e significados da estética na atualidade.
Como comentário a essa abordagem, farei uma análise do modelo de construção da história da arte no Brasil por um recorte de raça, mas ao contrário de Damião e Roelofs, minha abordagem será a partir da branquitude. Meu objetivo é tratar dos questionamentos que Damião traz com foco na população que criou a racialização, beneficia-se dela e, muitas vezes, não está consciente de que pertence, também, a uma raça. Essa falta de consciência e o hábito de sempre ocupar as estruturas de poder fazem da branquitude uma marca da história e do sistema da arte no Brasil, assim como o seu recorte.
Tendo isso em vista, costurarei minha análise sobre a branquitude a partir da questão que organiza o texto “O poder duradouro da branquitude: um problema a solucionar”, escrito pela pesquisadora britânica Vron Ware: “que forças históricas e contemporâneas sustentam as formações particulares da branquitude no Brasil e que estratégias antirracistas seriam apropriadas para subvertê-las?”1
Uma tentativa de responder essa pergunta foi feita por Lia Vainer Schucman, no livro Entre o encardido, o branco e o branquíssimo: branquitude, hierarquia e poder na cidade de São Paulo. Para isso, Schucman analisa as fronteiras internas e externas que sustentam as categorias de branco e não-branco. Dois de seus principais argumentos são: existe “lugar de branco”, isto é, a fronteira entre brancos e não-brancos é espacial e demarca regiões, lugares e instituições que têm ligação com as ideias de riqueza, civilização e progresso; e, devido a um pressuposto de “superioridade racial”, há uma supervalorização da concepção estética e subjetiva da branquitude. Esse segundo argumento tem influência direta do racismo científico do fim do século XIX e do início do século XX, que tem suas premissas ancoradas nos chamados racismo cultural e institucional, os quais retiram o foco das clássicas diferenças biológicas e hierarquizam os saberes, as artes e, consequentemente, as pessoas. Isso porque eles são mais duráveis e flexíveis, além de mais difíceis de desconstruir que o discurso biologizante. Logo, os padrões de diferenciação social entre brancos e não-brancos estão diretamente associados ao lugar e ao modo como a vida pública e privada se estruturam, visto que esse modelo mantém a suposta superioridade moral, estética, ética e intelectual da branquitude.
Sendo assim, as concepções de “lugar de branco” e de racismo cultural e institucional estão diretamente ligadas ao caráter absoluto dos pressupostos estéticos da história da arte, tanto no sentido popular de aparência, quanto em seu sentido filosófico. O que Schucman faz é explicitar suas consequências na ocupação do espaço social, institucional e cultural da sociedade brasileira. Na conclusão de seu livro, ela aponta a necessidade de estabelecer uma fissura entre a brancura do corpo e o poder da branquitude. Ela diz:
E me parece que para esta fissura ser feita há a necessidade de se pensar a ideia de estética não como pensada no senso comum, definitivamente ligada ao ideal de beleza ocidental, mas sim, pensá-la de forma ampla, como arte da vida, como produção e transformação da existência, o estético como possibilidade de se ligar ao outro: “o fato de experimentar emoções, sentimentos, paixões comuns nos mais diversos domínios da vida social” (Maffesoli, 2005, p. 288) [...] A dimensão estética, assim pode ocupar uma posição privilegiada para se pensar a luta antirracista e é esse referencial que é explorado para propor uma lógica de identificação que ponha em cena o sujeito a partir da relação estética com o outro (Maffesoli, 2005).2
O que Lia Vainer Schucman sugere é um deslocamento de posição da hegemonia cultural da branquitude para que uma crítica a essa categoria possa ser efetivada, ou seja, para que o lugar de invisibilidade deixe de ser ocupado. A proposta de Schucman requer um esforço coletivo de deslocamento de posição por quem faz parte dessa branquitude. Logo, analisar a história da arte a partir do “lugar de branco” e do racismo cultural e institucional se configura como um deslocamento dessa posição. Isso porque a história da arte pode ser entendida como uma espécie de epítome das ideias de riqueza, progresso e civilização já mencionadas como ideias associadas à branquitude.
O crítico de arte e pesquisador Clarival do Prado Valladares, inicia um texto publicado em 1968, com um resumo desse cenário: “Explica-se a modesta presença de artistas brasileiros negros na atual produção das chamadas artes plásticas, desde que estas se tornaram um atributo de prestígio do estrato social de nível econômico mais elevado [...]”3, visto que sua presença é vasta e majoritária na produção artística colonial, anterior à chegada no país da Missão Francesa e da abertura da Academia Imperial de Belas Artes, em 1826. Valladares continua seu argumento, afirmando que “[a] sociedade brasileira, embora mestiça, considera-se branca quanto aos padrões, gostos, hábitos e atitudes culturais assumidas, identificando-se com o cosmopolitismo dominante que muitos confundem com universalidade”.4 Essa compreensão equivocada da ideia de universalidade estética e artística acabou por transformar a história da arte brasileira em uma espécie de apêndice da versão euro-estadunidense, ou seja, a história da arte como lugar de branco é uma construção da branquitude, a qual contraditoriamente, relega a contribuição dessa mesma branquitude à periferia da história.
A discussão em torno das categorias da história da arte ou, como eu gosto de chamar, a questão dos adjetivos que acompanham a palavra arte no processo de pluralização de sua história, já foi amplamente enfrentada por pesquisadoras/es de diversas origens que estudam minorias. O clássico artigo da antropóloga estadunidense Sally Price, denominado, “A arte dos povos sem história”, questiona as premissas da disciplina ao explorar o adjetivo primitivo, o qual, como mostra Valladares, foi transformado na categoria passível de comportar a produção da população negra após a transformação da arte em atividade social privilegiada.
A chamada “arte primitiva” é extremamente resistente às tradicionais categorias e periodizações da arte Ocidental, logo, sua classificação como pré-histórica parece a mais lógica. Afinal, se ela não cabe nas categorias e periodizações ela deve ser pensada como uma arte que se enquadra em um momento anterior ao estabelecimento desses critérios. Ou seja, por meio da organização da história da hegemonia cultural do Ocidente, o lugar da construção da riqueza, da civilização e do progresso é delimitado quase que exclusivamente como “lugar de branco”, mesmo que essa ideia não esteja explicitada com os mesmos adjetivos que são utilizados para a demarcação do “lugar dos outros”.
Isso porque grande parte da estrutura que constitui a história da arte tem base em uma suposta invisibilidade racial da branquitude, devido ao hábito de partir de um lugar de fala ou de escrita que é transparente. Transparente porque o sujeito que escreve, geralmente, não se identifica como parte das categorias das quais fala, ou seja, ele não se identifica com nenhum dos adjetivos que atribui no processo de hierarquização da produção cultural. Logo, essa transparência é derivada do lugar de poder que esse sujeito ocupa. Gayatri Spivak, em seu célebre texto “Pode o subalterno falar?” trata de forma minuciosa dos artifícios utilizados na construção do discurso do intelectual que adota uma atitude transparente, que assume o lugar de fala de sujeitos sem ser nenhum deles e sem se colocar como parte integrante do discurso. Então, o sujeito que ocupa o lugar de poder da construção do discurso não trata a si mesmo como um ser humano recortado pelas mesmas categorias tratadas e questionadas por aqueles dos quais fala.
Para justificar sua crítica ao adjetivo primitivo, Price analisa uma série de livros de história da arte utilizados como referência para o ensino introdutório da disciplina nas universidades estadunidenses. É importante ressaltar que muitos deles são utilizados, também, no Brasil. Ela chega à conclusão de que o aparecimento da produção dos povos ditos primitivos “[...] nas histórias da arte ocidental nada reflete, senão uma espécie de imperialismo cultural”.5 Assim, apesar da realidade dessas sociedades ser diferente, filósofos e historiadores descrevem esses povos como:
[...] produtores sem rosto de arte, que não são capazes de apreciar, valorizar, comentar nem documentar seu trabalho, exceto através de grunhidos e meneios de ombros e seu mundo como um mundo que não tem história, nem estética, nem erudição, nem perícia, nem humor, nem ironia.6
Tratar de uma categoria considerada limítrofe, como faz Sally Price, ajuda a construir o cenário de um mecanismo de exclusão que funciona a partir de um recorte de raça. Seus mecanismos são bem mais sutis quando as categorias em questão não se referem a povos que parecem habitar um mundo “diferente”, mas circunscrevem artistas que compartilham a mesma dinâmica social que a nossa.
A expressão imperialismo cultural pode ser traduzida para os termos utilizados por Schucman como hegemonia cultural da branquitude euro-estadunidense, sendo que essa hegemonia é aplicada e replicada mundo afora pelas várias populações brancas colonizadas que se entendem como continuadoras da dinâmica hierárquica de construção da história do opressor. Frantz Fanon, no capítulo “Sobre a cultura nacional” do livro Os condenados da terra, explica o fenômeno:
Em face dessa situação, a reação do colonizado não é unívoca. Enquanto as massas mantêm intactas as tradições mais heterogêneas para a situação colonial, enquanto o estilo artesanal se solidifica num formalismo cada vez mais estereotipado, o intelectual lança-se freneticamente na aquisição furiosa da cultura do ocupante, tendo o cuidado de caracterizar pejorativamente sua cultura nacional, ou encastela-se na enumeração circunstanciada, metódica, passional e rapidamente estéril dessa cultura.7
O trecho de Fanon associado à análise de Schucman permite afirmar que enquanto as massas, isto é, as populações não brancas mantêm tradições heterogêneas, o intelectual, isto é, a branquitude, se esforça para manter vivo e ativo o sistema de categorização e hierarquização do opressor, com quem se identifica. Isso aparece, como mostra Sally Price, na transformação das produções de povos não-ocidentais em produções fora da história, conservadoras, sepultadas na tradição8, as quais são, geralmente, denominadas no Brasil de folclore, arte indígena e arte popular. Afinal, como disse Joel Rufino dos Santos: “[...] cultura é o que os cultos dizem ser cultura, não passando tudo o mais de folclore”.9
Ao negarmos historicidade a essas populações, transformamo-las em totalidades paradas no tempo, ou seja, em passado. E é exatamente essa condição de coisa do passado que faz morrer uma tradição. Afinal, tradições são vivas, estão em constante mudança, em quase nada se assemelham à ideia de atemporalidade e ao fixismo a elas atribuído. Ou seja, a história da arte brasileira, ao compartimentalizar a produção artística da população negra no segmento arte primitiva, contribui de forma direta com a aparente ausência de contribuição do negro para as artes plásticas, visto que praticamente condiciona artistas a produzirem obras que caibam nesse segmento para que possam almejar sua inserção no sistema das artes.
Isso é o que Kleber Amâncio aborda no artigo “A história da arte branco-brasileira e os limites da humanidade negra”. O autor questiona o silenciamento sistêmico-epistemológico característico do modus operandi da história da arte, a qual pressupõe a universalidade e inquestionabilidade de suas premissas, sendo que seus agentes, na sua maioria, pertencem a uma mesma raça, gênero, classe e geografia.10 Logo, o modelo de construção da história da arte brasileira, em linhas gerais, reproduz o que diz Fanon sobre o intelectual colonizado. Ao reproduzir as metodologias e lógicas de construção de narrativas eurocentradas, a história da arte brasileira falha em reconhecer valor “universal” em produções que têm raiz fora da matriz cultural euro-estadunidense. Algo que acontece com parte substancial da produção de artistas não-brancos, transformando a nossa história da arte em uma ferramenta de normatização da branquitude. Isso faz com que grande parte do sistema das artes brasileiro seja composto de tradicionais “lugares de branco”, os quais desempenham um papel muito importante na manutenção do racismo cultural e institucional que caracterizam as ações da branquitude no Brasil.
Além desse processo de não identificação de parte da produção que tem matriz fora do Ocidente e de sua consequente folclorização, a produção artística da população negra passou a ser alocada apenas no período da escravidão, perfazendo uma outra maneira de transformação dessa população em passado, premissa fundamental das estratégias de branqueamento transformadas em política do estado brasileiro durante o século XX. Emanoel Araújo, comenta o cenário das pesquisas sobre a presença do negro na história brasileira até 1988:
Essas pesquisas, todavia, têm praticamente se limitado à escravidão propriamente dita e à herança negra encontrada no sincretismo religioso, na música, na literatura e nos costumes. As artes plásticas sempre foram relegadas a um plano secundário, limitando-se praticamente a trabalhos isolados e incompletos.11
O comentário de Araújo é parte da primeira empreitada conhecida de identificação e catalogação da contribuição da população negra para as artes brasileiras, exibida na célebre exposição “A mão afro-brasileira” de 1988. Primeira exposição a considerar a arte chamada “erudita” produzida pelo negro brasileiro, ou seja, a estabelecer a dissociação entre a população de cor e as matrizes africanas, ou primitivas, da produção artística, a qual estava em vigor desde as pesquisas do eugenista Nina Rodrigues, que foi, ironicamente, o primeiro autor a tratar do tema no Brasil e o criador da categoria arte negra. Esse cenário mostra a efetividade da categorização hierarquizada para a subalternidade e invisibilidade da produção em questão.
Portanto, respondendo à pergunta de Vron Ware que inicia esse texto, é seguro afirmar que a história da arte corresponde às “forças históricas e contemporâneas [que] sustentam as formações particulares da branquitude no Brasil”.12 Quebrar o pacto de invisibilidade dos artistas não-brancos obriga a redefinir o que compreendemos como Brasil, ao colocar em xeque sua adesão irrestrita a um ponto de vista sociocultural branco. Até porque, como mostra Hélio Menezes, no texto “Exposições e críticas de arte afro-brasileira: um conceito em disputa”, a associação entre uma produção artística que reflita a cultura afro-diaspórica e a cor da pele do artista não é evidente, não é possível, pela análise da obra de arte, afirmar qual cor de pele seu autor possui. No entanto, apesar da diversidade e da qualidade da produção artística da população negra, a cor de pele continua atuando como um critério camuflado de inserção nos principais espaços do sistema das artes. Logo, Menezes conclui seu texto afirmando que “[n]uma sociedade estruturalmente racista como a brasileira, seguir ignorando ou relegando a segundo plano a produção de artistas afro-brasileiros [...] significa seguir ignorando a própria complexidade da história da arte feita no país”.13 Portanto, essa situação requer um deslocamento da hegemonia cultural da branquitude rumo a uma revisão antirracista, para que seja possível uma mudança real nos modelos e estratégias de constituição das pesquisas e instituições artísticas. Deslocamento que é indispensável para que o sistema da arte deixe de ser apenas “lugar de branco”.
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