Alguns desdobramentos sobre os quatro regimes da imagem
Pedro Hussak

A publicação do dossiê Sonho, mercadoria, mundo: três hipóteses para pensar “A queda do céu” na revista eletrônica italiana La furia umana1 foi fruto de um trabalho de cooperação científica internacional que se dedicou a estudar a fundo o livro A queda do céu, escrito pelo xamã yanomami Davi Kopenawa e pelo antropólogo francês Bruce Albert. A rede de pesquisadores/as, que ganhou o título em espanhol Cosmoestéticas del sur, conta com as pesquisadoras argentinas Paula Fleisner (Universidad de Buenos Aires/Conicet), Noelia Billi (Universidad de Buenos Aires/Conicet), Guadalupe Lucero (Universidad Nacional de las Artes), Gabriela Milone (Universidad Nacional de Córdoba/Conicet), da pesquisadora portuguesa Salomé Coelho e da professora Carla Milani Damião (Universidade Federal de Goiás).

O artigo que publiquei no dossiê, “Quatro regimes da imagem: ilusória, encarnada, dialética e xamânica”, foi a expressão de uma posição deliberadamente arriscada, dado que uma das tentações primordiais para os filósofos que se propõem a ler A queda do céu consiste precisamente em fazer comparações e paralelos com conceitos e noções da filosofia ocidental, projetando muitas vezes concepções previamente estabelecidas e deixando de ouvir o que Kopenawa tem a nos dizer.

Esclareço, contudo, que optei por correr esse risco não para tentar encontrar semelhanças entre a noção de imagem que Kopenawa expõe ali com noções da filosofia ocidental, mas, ao contrário, para, colocando as noções lado a lado, estabelecer uma distância entre elas.

Como pesquisador na área de estética, interessei-me particularmente pelo tema da imagem – central em A queda do céu porque guarda uma relação com a própria atividade xamânica – palavra em português que traduz aquilo que em língua yanomami é dito com a palavra utupë. A revelação de uma concepção que me era até então totalmente desconhecida, levou-me a montar mentalmente um esquema, em que integrei utupë a outras três concepções ocidentais em um trabalho de classificação que chamei de regimes da imagem: a imagem ilusória, a imagem encarnada, a imagem dialética e a imagem xamânica.

No entanto, embora aquilo que tenha disparado a elaboração desses regimes tenha sido o contato com o tema da imagem xamânica, não vai de minha parte nenhuma intenção de estabelecer uma hierarquia entre as noções trabalhadas aqui, mas apenas um esforço de classificação, partindo da premissa de que ao demarcar quatro noções, é possível estabelecer oposições, e assim lançar uma luz que ajude na compreensão do sentido de cada uma delas.

O termo “regime” remete evidentemente aos regimes de identificação das artes em que o filósofo Jacques Rancière argumenta, em Partilha do sensível, que a obra de arte sempre aparece em três tecidos sensíveis que constituem um a priori que determina os seus modos de visibilização: o regime estético, o regime representativo e o regime ético.2 Aproximaria minha proposta, todavia, a qualquer outro esforço de classificação e agenciamento de conceitos em estética, como, por exemplo, o texto de Rodrigo Duarte “Modos de presença nas manifestações estéticas contemporâneas”3 ­­– que é o ponto de partida para outro grupo de pesquisa vinculado à Universidade Federal de Minas Gerais do qual também participo –, no qual o autor examina quatro modos de presentificação das artes na contemporaneidade: a apresentação, a representação, a irrepresentação e a sobre-representação; ou então em Les formes du visible, em que o antropólogo Phillipe Descola discorre sobre quatro formas da imagem ligadas ao que ele chama de quatro ontologias: o animismo, o naturalismo, o totemismo e o analogismo.

Contudo, a fim de demarcar minha abordagem, esclareço que não busco pensar as condições de possibilidade pelas quais as imagens podem ser visualizadas, nem entender os modos pelos quais elas se presentificam e nem consignar uma ontologia da imagem. De modo mais modesto, busco apenas esclarecer quatro tipos de imagens por meio do estabelecimento de contraposições entre eles.

No entanto, cabe notar que esses tipos não são estanques, mas fluidos, de modo que uma mesma imagem pode participar de mais de um regime dependendo do contexto no qual ela se encontra em função de seus usos sociais. Com isso, busco escapar de qualquer interpretação unívoca da imagem dado que, nessa concepção, uma imagem pertence a um regime em função de sua circulação social, dos seus agenciamentos, da forma como ela é trabalhada e dos regimes de emoção que ela suscita.

Assim como em Rancière, os regimes aqui discutidos não são a expressão de “épocas” históricas, mas convivem anacronicamente. No entanto, diferente da caracterização do pensador francês, aqui há um esforço de identificação de cada regime com uma área específica do conhecimento humano: a imagem ilusória está ligada à filosofia, a imagem encarnada à religião, a imagem dialética à sociologia da arte e a imagem xamânica à antropologia ou contra-antropologia.

Além disso, trata-se de pensar cada regime a partir de determinados polos de tensão que vão se apresentar de diferentes maneiras em cada um deles no que se refere à relação entre o visível e o invisível; à relação da imagem com o texto e à relação da imagem com a verdade.

Neste texto, que apresentei aos colegas do GT de estética da ANPOF no seu XI encontro, organizado pelos professores Rosa Gabriella Gonçalves e Pedro Franceschini da UFBA – a quem agradeço a acolhida na cidade de Salvador de 13 a 15 de junho de 2022 –, gostaria de retomar as questões trabalhadas no texto publicado no supracitado dossiê, desdobrando alguns aspectos pouco desenvolvidos e tentando responder a algumas críticas e observações levantadas por interlocutores.

De início, a propósito da imagem ilusória, deve-se considerar que ela está ancorada na questão do simulacro em Platão, exposta no famoso “mito da caverna” que abre o livro VII d’A República em que as imagens são apresentadas como sombras que constituem uma enganação com relação à verdade. Na narrativa contada pelo filósofo, na parede de uma caverna são projetadas sombras a partir de objetos que passam em frente a uma fogueira que, por sua vez, não pode ser vista por prisioneiros que estão dentro da caverna porque há um grilhão em seu pescoço impedindo que eles girem a cabeça para trás. A circunstância de que os prisioneiros tomam as sombras por verdades é abalada quando um deles é solto e ao ver a fogueira que projeta os objetos, pode contemplar as sobras como sombras e compreender o mecanismo que cria a ilusão. Em seguida, depois de um árduo caminho para sair da caverna – a metáfora para o uso do pensamento dialético –, após ter os olhos ofuscados, ele contempla o sol, a metáfora que Platão usa para a verdade. Ao retornar à caverna, contudo, com o intuito de libertar os demais prisioneiros, aquele que se libertou, assim como Sócrates, é ridicularizado e morto.

Platão estabelece uma contraposição entre a dimensão sensível e visível das sombras/imagens e a realidade invisível das Ideias: enquanto a primeira torna-se um instrumento nas mãos de sofistas, poetas e impostores de modo geral, que utilizam as imagens para a manipulação demagógica da cidadania a fim de retirar alguma vantagem em termos de busca de poder político; a segunda expressa a verdade que, por sua vez, só pode ser alcançada graças à ascese filosófica. Desse modo, a dialética – ou seja, o texto filosófico – deve ser usada para desvendar as ilusões contidas na imagem para recolocar a pólis na direção correta da razão.

No século XX, diante do incremento das técnicas de reprodução da imagem, como a fotografia, o cinema e a televisão, filósofos como Guy Debord e Jean Baudrillard revivem a posição platônica, ao aproximar o problema da imagem do conceito marxista de alienação. A imagem na contemporaneidade cumpriria, assim, uma função ideológica de controle social, de modo que o capitalismo, ao criar uma confusão entre o real e o virtual, acabaria por separar o sujeito de sua práxis política.

A caracterização que fiz da imagem ilusória a partir de Platão foi alvo de questionamentos devido ao fato de que as questões no filósofo grego são sempre mais complicadas do que parecem à primeira vista. A objeção principal se refere ao fato de que ele não poderia ser “contra” a imagem, dado que o próprio início do livro VII é uma imagem. Em vez da dialética, trata-se de usar um elemento visual para explicitar a libertação do plano das opiniões e da conquista do pensamento filosófico. No entanto, se nesse texto, e em outros diálogos como Fedro e Político, em vez da dialética, ele usa imagens para expor seu pensamento, isso se deve ao fato de que elas estão “controladas” pela racionalidade filosófica, o que implica em um endereçamento a um público iniciado nesse pensamento. Trata-se de usar um recurso visual mais “à mão”, evitando longas discussões conceituais.

De maneira geral, é possível dizer que Platão repreende o uso público da imagem, por acreditar na falta de capacidade de discernimento do que seria o seu caráter ilusório, o que afastaria a cidadania da verdade alcançada pela racionalidade. Por isso, em seus diálogos, a contemplação do Belo sempre ocorre privadamente: O banquete é ambientado em uma festa na casa de Agatão e Fedro é um diálogo de Sócrates com o sofista que dá o nome ao texto fora dos limites de Atenas, portanto bem longe da Ágora onde Sócrates disputava temas da política e do conhecimento.

Essas ponderações são uma tentativa de resposta a questionamentos vindos de alguns interlocutores, em particular Imaculada Kangussu e Carla Damião, de que minha abordagem seria demasiadamente crítica com relação ao que seria o caráter deletério que Platão imporia à imagem. É nesse sentido que se deve relativizar o juízo extremamente negativo que o filósofo lança em relação às imagens.

Contudo, devo esclarecer que minha abordagem contempla os perigos do uso do simulacro na esfera pública denunciado por Platão mesmo hoje em dia, quando vemos uma indústria de produção de informações falsas veiculadas justamente por meio de imagens, as chamadas fake news, que se valem de um mecanismo muito simples, a saber, a tendência a tomar por verdadeira uma imagem com uma legenda, sem se questionar que ela poderia ser simplesmente uma montagem, de modo que o apelo platônico a desconfiar das imagens continua valendo ainda hoje.

A única ressalva, entretanto, que eu faria com relação à concepção platônica seria a tendência a reduzir a imagem apenas à sua dimensão ilusória. A imagem pode ser a expressão de várias outras possibilidades, inclusive emancipatórias. Desse modo, alinho-me à pensadora francesa Marie José-Mondzain, que vai propor a ideia de que o debate (que se mantém até hoje) levantado por Platão, de uma oposição entre a verdade alcançada pela razão e a ilusão das imagens, é um tanto enviesado e limitador.

Segundo a autora, em seu livro Imagem, ícone, economia: fontes bizantinas do imaginário contemporâneo, a resposta para entender o devir da imagem no ocidente não deveria ser buscada, como de costume, na Atenas do século V a.C., mas em escritos de autores pouco conhecidos, como Nicéforo, no contexto do Cristianismo em Bizâncio nos séculos VIII e IX d.C., quando ocorreram as crises do iconoclasmo, o banimento à veneração do ícones feita pelo Imperador Constantino V.

As análises de Mondzain foram a inspiração para a formulação do segundo regime da imagem, a imagem encarnada. Em resumo, ela mostra que a crise do iconoclasmo acontece em função de uma disputa de poder: a circulação dos ícones, representações de Cristo produzidos pelos monges, entrava em contradição com a imagem do Imperador, cunhada, por exemplo, em moedas, como a única a circular na sociedade para expressar o poder imperial.

Se na esfera ocidental, depois que o catolicismo se tornou a religião oficial do Império Romano, o uso de imagens pela Igreja não foi colocado em questão, na parte oriental, por outro lado, levantou-se um problema, que foi o centro dos debates no segundo Concílio de Niceia em 787 – o último a ser aceito tanto pela Igreja romana quanto pela ortodoxa –, relacionado à adequação de uma visão monoteísta com o uso de imagens. O fato de que é uma impossibilidade lógica que uma forma finita represente o Deus monoteísta leva o judaísmo e o islamismo a optarem por formas abstratas, recusando o culto aos “ídolos” das religiões pagãs. O episódio bíblico em que Moisés ao descer do Monte Sinai com os dez mandamentos se revolta ao se deparar com a adoração ao Bezerro de Ouro é a expressão dessa recusa e da força do texto em relação à imagem na religião judaica.

Mondzain mostra que a solução encontrada por Nicéforo para defender o caráter imagético do cristianismo consistiu em vincular o destino da imagem ao próprio destino de uma religião que, além dos princípios do monoteísmo, também possui uma dimensão humana e histórica. A imagem, dessa maneira, seria a expressão do próprio Cristianismo, cujo sentido primordial reside na ideia de que o verbo se fez carne. Assim, a imagem é encarnação4, uma figuração visível que remete a uma verdade invisível. Em outras palavras, trata-se de aceitar o caráter sensível da imagem, desde que ele aponte para uma dimensão suprassensível.

Assim, em vez de um simulacro, uma cópia malfeita de um modelo verdadeiro, como é o caso em Platão, a imagem aqui mantém com a verdade invisível uma relação indicial, o que leva Nicéforo a fazer uma distinção entre o ícone, que consiste em uma redução à dimensão visível, e a imagem, aquilo que conjuga a dimensão visível e a dimensão invisível.

A estratégia de Mondzain é trazer essa possibilidade de que a dimensão invisível possa animar uma leitura emancipatória da imagem em um contexto secular: a imagem contém em si um texto invisível que deve ser extraído hermeneuticamente, de modo que o espectador não seria passivamente enganado, mas, ao contrário, teria um papel ativo na medida em que seria estimulado em sua imaginação, a faculdade pela qual é possível lidar com o invisível.

Outros autores franceses contemporâneos, notadamente Jacques Rancière e Georges Didi-Huberman, vão articular essa dimensão do visível e invisível, desenvolvendo o conceito de sintoma, o qual se refere ao fato de que a imagem não pode ser reduzida à sua dimensão visível, porque ela agencia um conjunto de funções que articula o visível e o invisível, o dito e o não-dito. Em poucas palavras, o sintoma consiste na constatação de que dizer algo significa ao mesmo tempo calar sobre outra coisa e que mostrar algo significa ao mesmo tempo esconder outra coisa, de modo que sempre é possível se perguntar pelo por que uma imagem decidir mostrar uma coisa e não outra. A esse respeito, Rancière em seu livro Figuras da história, argumenta que a primeira imagem do cinema feita pelos irmãos Lumière na sua fábrica na cidade francesa de Lyon, a saída dos operários da fábrica, ao mesmo tempo que mostra o momento de lazer que se anuncia na abertura dos portões da fábrica, esconde justamente a dureza e a servidão do trabalho dentro dela.5

Um questionamento que surgiu a propósito da imagem encarnada pode ser enunciado como o exato inverso da crítica que fiz com relação ao simulacro platônico: Mondzain não tenderia a hipostasiar o caráter emancipatório da imagem? Em outro texto, As imagens podem matar?, ela retoma suas reflexões – com o intuito de pensar as imagens do ataque de 11 de setembro em Nova Iorque – para fazer um salto histórico com relação ao concílio de Niceia, a fim de analisar outro concílio, o de Trento, realizado entre 1545 e 1563, que mais uma vez enfocava o tema da imagem.

No intuito de lançar as bases de uma reação à Reforma – que retoma uma posição iconoclasta, defendendo o acesso ao âmbito do invisível pela leitura direta do texto bíblico –, o concílio deliberou pela autorização da confecção de imagens de santos que foram amplamente usadas como um elemento ideológico de evangelização, portanto de tentativa de dominação cultural, dos povos originários da América Latina. Desse modo, poder-se-ia perguntar: a imagem não possui uma relação com o poder e a dominação? A estratégia de Mondzain para responder essa pergunta consiste em fazer uma diferença entre a “encarnação” e a “incorporação”, segundo a qual a segunda expressaria uma repressão à dimensão invisível, reduzindo a imagem à visualidade, portanto, a uma dimensão unívoca, cuja finalidade seria uma instrumentalização para exercer o poder.6 Diferente da imagem encarnada, cuja relação com o invisível abre várias possibilidades de interpretação, a imagem incorporada – o uso propagandístico da imagem com o objetivo de exercer o poder – reduz a imagem a um caráter unívoco. Nesse sentido, o apontamento de Rodrigo Duarte de que as imagens religiosas na America Latina ao mesmo tempo que foram um agente ideológico de evangelização, também geraram preciosidades artísticas, como o prova a cidade mineira de Ouro Preto, é a expressão do caráter ambíguo das imagens: o seu sentido só pode ser dado em função do seu uso social.

Interessante notar que essa distinção permite um diagnóstico que coloca em xeque certo senso comum sobre o papel das imagens na contemporaneidade. Para Mondzain, o fato de as técnicas de reprodução da imagem terem amplificado a circulação das imagens não significa que vivemos em uma “era” dominada pela esfera das imagens, pois as imagens sempre desempenharam um papel central nas culturas de um modo geral, independente do suporte que a sustenta. Além disso, se se deve falar em um excesso na contemporaneidade, esse excesso não é de imagens, mas de visualidade, ou seja, clichês que reprimem a dimensão invisível da imagem. Essa posição tende a tirar o caráter quase que exclusivamente negativo que Debord e Baudrillard, na esteira de Platão, dão ao problema da imagem, defendendo a dimensão emancipatória da imagem e jogando o problema do poder e da dominação para o campo da mera visualidade.

Outra abordagem que defende, opondo-se à tradição do simulacro, a dimensão emancipatória da imagem é a imagem dialética. Cunhado por Walter Benjamin, esse termo aponta para uma dimensão na qual a imagem vai provocar o espectador para que este reflita criticamente sobre as relações de dominação existentes na sociedade em que ele se encontra, afirmando-se como um veículo antialienante que atua para auxiliar no processo de conscientização e de engajamento político.

A teoria e a prática da imagem dialética foram colocadas em marcha na Rússia revolucionária dos anos 1920, em particular por Serguei Einsenstein, que formulou uma teoria da montagem, inspirando-se nos ideogramas japoneses que têm como conformação a junção de dois desenhos que formam um terceiro sentido, diferente daquele que cada um possui isoladamente. O cineasta russo acrescentou a esse procedimento uma concepção dialética vinda do marxismo, ao contrapor, no processo de montagem de seus filmes, duas imagens que possuíssem elementos opostos, gerando uma tensão. No mesmo contexto das vanguardas do início do século XX, movimentos como o dadaísmo e o surrealismo propunham uma operação artística que ficou conhecida como colagem, que consistia basicamente em cortar fotografias, por exemplo, de jornais e revistas, e colá-las novamente em outra configuração, propondo novas associações para recompor uma imagem a partir dos fragmentos inicialmente recortados e colocados em tensão.

Em ambos os casos, trata-se de colocar lado a lado elementos contraditórios com o intuito de gerar um estranhamento do espectador para retirá-lo da passividade, ajudando a provocar uma reflexão crítica sobre as próprias contradições da realidade, como o que tentou fazer Glauber Rocha em O Dragão da maldade contra o santo guerreiro, ao expressar as contradições entre o “arcaico” e o “moderno” que dominavam os debates no Brasil nos anos 1960, com a imagem da figura mítica de Antonio das mortes, caminhando pela estrada com o símbolo da petrolífera Shell atrás dele.

A imagem dialética ergue uma pretensão de verdade que, no entanto, não provém do elemento invisível, como no caso da imagem encarnada, mas, no quadro de uma compreensão filosófica materialista, de uma realidade histórica e social que, por sua vez, é o que fornece o texto subjacente para a reflexão crítica por parte do espectador.

Como vimos, no ocidente, o problema da imagem expressa tensões que estão ligadas ao par ilusão e verdade, que, por sua vez, tem como consequência um debate acerca da capacidade emancipatória ou alienante da imagem. Partir desse polo de tensões, certamente não ajudaria em nada na compreensão da imagem xamânica que, em poucas palavras, consiste em um processo de transmissão: o xamã é um diplomata, alguém que, graças à ingestão de substâncias alucinógenas – no caso dos xamãs yanomamis, a yãkoana –, transita entre a natureza e a sobre-natureza, entre o mundo humano e o não-humano.

O processo de transmissão no qual o xamã relata para a comunidade o que viu e ouviu pode ser feito oralmente ou pela produção de desenhos que não são representações, mas transposições da experiência xâmanica. Nesse sentido, é possível dizer, com Phillipe Descola que se trata de uma operação que consiste em tornar visível o invisível.7 Nesse caso, contudo, diferente da imagem encarnada, a invisibilidade atinge apenas os brancos e os não-xamãs, pois para os xamãs a experiência com a yãkoana é completamente imagética, mesmo tangível.

A imagem-utupë, que domina grande parte da narrativa desenvolvida por Kopenawa em A queda do céu, significa que todos os seres possuem uma “imagem interior” que corresponde à sua forma arcaica no momento de sua criação mítica. É ela que os xamãs “fazem descer” juntamente com os espíritos da floresta, os xapiri, e que fornecem não apenas uma experiência estética na sua apresentação, como também um conhecimento que deve ser compartilhado com a comunidade.

Como foi dito, esse compartilhamento pode ser oral, mas também por meio do desenho, por exemplo, na pintura corporal que, utilizando pigmentos feitos a partir do jenipapo e do urucum, constituem um tipo de escrita que não se reduz à escrita linear dos brancos que Kopenawa caracteriza como “desenho de palavras”. Essa restituição da escrita à sua dimensão de desenho, seja nas “peles do corpo”, seja nas “peles de imagem”, as folhas onde os brancos escrevem, permite que Kopenawa inverta o privilégio que os brancos dão à escrita em relação ao modo de transmissão oral:

Os brancos se dizem inteligentes. Não o somos menos. Nossos pensamentos se expandem em todas as direções e nossas palavras são antigas e muitas. Elas vêm de nossos antepassados. Porém, não precisamos, como os brancos, de peles de imagens para impedi-las de fugir da nossa mente. Não temos de desenhá-las, como eles fazem as suas. Nem por isso elas vão desaparecer, pois ficam gravadas dentro de nós. Por isso, nossa memória é longa e forte. O mesmo ocorre com as palavras dos espíritos xapiri, que também são muito antigas.8

Kopenawa faz uma defesa da memória, argumentando que os yanomamis são capazes de manter as palavras que vêm dos antepassados, sem precisar, como os brancos, de “peles imagens” para fixar as palavras e evitar que elas fujam da mente. Por outro lado, a própria decisão de escrever A queda do céu, junto com o antropólogo francês Bruce Albert, aparece como uma inflexão com relação a essa posição sobre a escrita de modo que ele passa a considerá-la como uma aliada com um objetivo político no sentido de tentar alcançar um público mais amplo – o livro é endereçado aos brancos – a fim de angariar aliados para a causa indígena e para a defesa da floresta amazônica.

A concepção xamânica da imagem tem um uso – que chamei de profano – no campo da arte contemporânea. A esse respeito, é possível citar a obra de Joseph Beuys que teve contato com o xamanismo quando foi alvejado na Crimeia enquanto pilotava um avião da força aérea alemã durante a segunda guerra e foi resgatado e cuidado pelos habitantes da região.

Recentemente, a 34ª. Bienal de São Paulo, que recebeu o título de Faz escuro mas eu canto, viu a emergência da assim chamada Arte indígena contemporânea, em que artistas como Jaider Esbell e Daiara Tukano usam o mesmo princípio xamânico de produzir imagens a partir da relação com rituais com a Ayahuasca.

Assim como A queda do céu se endereça aos brancos, Jaider Esbell e Daiara Tukano adotaram a postura de expor seus trabalhos em espaços no circuito da arte contemporânea, disputando as esferas de legitimação das obras arte no campo institucional. Com isso, trata-se de admitir um valor político para as imagens no sentido de alcançar visibilidade para as questões indígenas no Brasil e mostrar um tipo de produção que é praticamente desconhecida no país. Desse modo, estamos vendo uma ampliação das possibilidades artísticas e da emergência da voz indígena, antes invisibilizada ou pelo menos mediada por brancos, o que sem dúvida constitui uma revolução na linguagem da arte contemporânea acontecendo nesse momento em nosso país.

Referências bibliográficas

BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas volume 1, magia, técnica, arte e política. Tradução de Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1985.

BAUDRILLARD, Jean. Simulacres et simulations. Paris: Gallilé, 1981.

_______. Écran total. Paris: Gallilé, 2001.

DEBORD, Guy. Sociedade do espetáculo. Tradução de Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro: Contraponto, 2009.

DESCOLA, Phillipe. Les formes du visible. Paris: Seuil, 2021. 

DUARTE, Rodrigo. “Modos de presença nas manifestações estéticas contemporâneas”. In: HERMANN, Nadja; RAJOBAC, Raimundo (orgs.). A questão do estético. Porto Alegre: EDIPUCRS, p. 117-132.

KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce. A queda do céu: palavras de um xamã yanomami, Tradução de Beatriz Perrone-Moisés. São Paulo: Companhia das letras, 2015.

MONDZAIN, Marie-José. Imagem, ícone, economia: fontes bizantinas do imaginário contemporâneo. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Contraponto, 2013.

________. L’image peut-elle tuer?. Paris: Bayard, 2015.

PLATÃO. A República. 6ª. ed. Tradução de Maria Helena da Rocha Pereira. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1990.

RANCIÈRE, Jacques. Partilha do sensível. 2. ed. Tradução de Monica da Costa Netto. São Paulo: 34, 2009.

_______. Figures de l’histoire. Paris: PUF, 2019.

* Pedro Hussak é professor do Departamento de Filosofia da UFRRJ
1 Disponível em: <www.lafuriaumana.it>.
2 RANCIÈRE, 2009, p. 27-44
3 DUARTE, 2020.
4MONDZAIN, 2013, p. 92
5 RANCIÉRE, 2019, p. 33.
6 MONDZAIN, 2015, p. 71.
7 Descola faz essa afirmação em entrevista à philosophie magazine, publicada em 16 de agosto de 2021. Disponível em: <https://www.philomag.com/articles/philippe-descola-rendre-visibles-des-choses-invisibles>. Acesso em 30/01/2022.
8 KOPENAWA; ALBERT, 2015, p. 75