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Implícita ou explicitamente, a filosofia contém sempre uma dimensão metafilosófica. No próprio ato de pensar, o pensamento pensa a si mesmo: já os antigos compreendiam a prática filosófica como atualização dessa potência autorreflexiva imanente ao pensamento. Filosofar é, entre outras coisas, investigar a natureza do filosofar – seu conceito, seus limites, seus métodos, suas condições. Não por acaso, O que é a filosofia é um título tão corriqueiro de obras filosóficas. Agamben, Deleuze e Guattari, Ortega y Gasset, Heidegger, Hildebrand, Sinclair: todos eles – para mencionar apenas alguns – escreveram o seu O que é a filosofia? Se aceitamos variações no título, a lista se estenderia enormemente.
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Por mais que essa investigação sobre sua própria natureza possa se dar de maneira disseminada na própria atividade filosófica, é natural que a especialização acabe por constituir um campo, uma tradição, uma disciplina específica que a tem por objeto. Ao que tudo indica, o termo “metafilosofia” foi cunhado em sentido disciplinar (como “filosofia da filosofia” ou “a investigação sobre a natureza da filosofia”1) por Morris Lazerowitz por volta de 1940. Desde então, pode-se dizer que a metafilosofia como disciplina vem se consolidando no cenário filosófico acadêmico. É igualmente natural que a incontornável dimensão metafilosófica da filosofia se estenda às suas próprias disciplinas – a lógica, a ética, a teoria do conhecimento – e constitua subdisciplinas de cunho metateórico: a metalógica, a metaética e a metaepistemologia.
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Todas essas disciplinas de caráter metateórico tendem a abstrair dos debates e controvérsias internos às respectivas disciplinas e investigar sua própria constituição e consistência como campo do saber. Embora se possa objetar que elas promovem um distanciamento em relação aos objetos propriamente ditos das disciplinas e, com isso, arriscam derivar em debates autorreferenciais estéreis, é inegável que elas promovem um adensamento da reflexão sobre o próprio campo. Não apenas as próprias disciplinas, mas virtualmente todos os saberes conexos se beneficiam de um tal adensamento.
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Como toda filosofia, a estética e a filosofia da arte também apresentam uma dimensão marcadamente metateórica. Com risco de incorrer em certo exagero, talvez seja possível afirmar que não houve um grande livro sobre a estética e a filosofia da arte desde Alexander Baumgarten – considerado o fundador da disciplina – que não tenha contido alguma reflexão de cunho metateórico. De Baumgarten a Noël Carroll, é parte incontornável da reflexão da estética e da filosofia da arte uma série de questões de natureza metateórica, como paradigmaticamente o debate sobre a definição de seu próprio objeto e sobre sua conformação arquitetônica como disciplina. É curioso, no entanto, que, salvo poucas publicações recentes em metaestética2, a incontornável reflexão metateórica da estética e da filosofia da arte não tenha constituído uma subdisciplina especializada. A que se deve esse fato?
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Para além de sua autorreflexividade, a própria natureza da estética e da filosofia da arte parece demandar uma investigação de natureza metateórica. A definição cambiante de seu próprio objeto privilegiado – a sensação? o gosto? o belo natural? o belo artístico? a arte em geral? a história da arte? –, que impõe à disciplina sua dupla face como estética e filosofia da arte; sua vocação transdisciplinar, que a coloca em interface com diversas outras disciplinas e campos do saber, como a história, a teoria, a crítica de arte, entre outras; sua própria inserção no mundo da arte, que confere especial historicidade e relatividade a seus limites – todos esses aspectos, em suma, parecem demandar que a estética e a filosofia da arte adensem a reflexão sobre sua própria natureza e razão de ser, sob risco de inconsistência de sua constituição como campo do saber. A inexistência da metaestética e da metafilosofia da arte como subdisciplinas consolidadas representa, portanto, um inexplicável déficit a ser sanado.
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Sintoma desse déficit se deixa ler de forma paradigmática em um eloquente verbete de um dicionário alemão de filosofia sobre o conceito da disciplina, a que Theodor W. Adorno faz referência em sua Teoria estética. O verbete, redigido por Ivo Frenzel em 1958, é instrutivo tanto para a afirmação da necessidade de subdisciplinas como a metaestética e a metafilosofia da arte quanto por oferecer ex negativo uma primeira enumeração de suas tarefas:
Talvez nenhuma outra disciplina filosófica se baseie em pressupostos tão incertos quanto a estética. Como um catavento, ela é lançada por cada sopro de vento filosófico, da cultura e de teoria das ciências; é conduzida ‘ora metafísica e ora empiricamente, ora normativa e ora descritiva, ora partindo do artista e ora do fruidor, vê hoje o centro do estético na arte, para o qual o belo natural deve ser interpretado apenas como estágio preliminar, e amanhã encontra no belo artístico apenas um belo natural de segunda mão’. Esse dilema da estética, descrito desse modo por Moritz Geiger, caracteriza a situação desde meados do século XIX. A razão para esse pluralismo de teorias estéticas sequer inteiramente realizadas é dupla: ele reside na dificuldade, ou mesmo na impossibilidade de princípio de decifrar a arte em geral por meio de um sistema de categorias filosóficas; por outro lado, na dependência tradicional de proposições estéticas de posições epistemológicas que são pressuposto daquelas. A problemática da epistemologia volta imediatamente na estética, pois como esta pode interpretar os seus objetos depende, por princípio, de qual conceito de objeto ela tem. Essa dependência tradicional, no entanto, é dada pela própria coisa e já está contida na terminologia.3
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São tarefas da metaestética e da metafilosofia da arte: discriminar a linha divisória e as interseções entre a estética e a filosofia da arte; investigar as condições necessárias e suficientes de emergência e do pleno exercício de ambas as disciplinas (sejam elas a existência de fatos básicos da sensibilidade humana, a existência de obras de arte, um determinado regime de verdade, uma conformação histórica específica do sistema das artes, uma certa relação com outros discursos sobre arte, entre outras condições possíveis); pesquisar a natureza e fornecer uma tipologia do estatuto das categorias da estética e da filosofia da arte como categorias empíricas, históricas, normativas, críticas, transcendentais, fenomenológicas, especulativas, híbridas ou de outra ordem; perquirir a origem histórica dessas categorias; refletir sobre o método da estética e da filosofia da arte; determinar a posição arquitetônica e a função da estética e da filosofia da arte no interior dos demais campos e disciplinas da filosofia; articular a estética e a filosofia da arte com outras disciplinas e práticas do mundo da arte, como a historiografia, a teoria, a crítica de arte, a curadoria, a pedagogia e a psicologia da arte, e assim por diante.
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Evidentemente, cada uma dessas tarefas admite uma série aberta e potencialmente ilimitada de abordagens. Por sua vez, cada abordagem distinta de cada uma dessas tarefas implica um modelo teórico diverso acerca do próprio conceito da estética e da filosofia da arte. Consequentemente, cada conceito da estética e da filosofia da arte redunda em diferentes articulações com seus objetos e com determinada conformação histórica do mundo da arte. Embora sejam disciplinas metafilosóficas, a relevância da metaestética e da metafilosofia da arte não se limita, portanto, ao âmbito estritamente metateórico. Elas apresentam potencial para impactar o campo dos próprios objetos com os quais elas estabelecem relações inevitavelmente mediatas.
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Um exemplo: Monroe C. Beardsley é considerado um dos fundadores de uma tradição para a qual a filosofia da arte deveria ser compreendida como uma metacrítica ou filosofia da crítica de arte. Em sua abordagem, as questões que emergem do exercício da crítica de arte em seu corpo a corpo com a produção artística concreta – o juízo de gosto, o valor das obras, os critérios da crítica, a importância e a constituição do cânone para a crítica, entre outros – correspondem a virtualmente todo o escopo de problemas relevantes da filosofia da arte. Daí se segue, para Beardsley, que a filosofia da arte nada mais seria do que uma reflexão de segunda ordem sobre a crítica: uma metacrítica da arte, justamente.4 Como se vê, toda essa reflexão empreendida por Beardsley é de natureza metafilosófica. Tem-se aí, a um só tempo, uma reflexão sobre as categorias da filosofia da arte a partir de sua proveniência no exercício crítico; a articulação da filosofia da arte com outras disciplinas do mundo da arte, em particular, claro, com a própria crítica; uma definição do conceito da filosofia da arte a partir dessa articulação. Com isso, a abordagem metafilosófica de Beardsley reposiciona a filosofia da arte também em sua relação com seu objeto – as obras de arte enquanto objeto da crítica.
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Outro exemplo: ao procurar romper com uma respeitável tradição que circunscreve a arte ao território da aparência e, com isso, esvazia dela toda pretensão à verdade em sentido forte, Alain Badiou – em afinidades eletivas com Martin Heidegger, nesse sentido – realiza uma operação metafilosófica radical ao romper com o próprio conceito tradicional da estética como disciplina. Inestética seria a disciplina devidamente equipada para abordar a arte não mais sob o seu tradicional regime da aparência, mas como um procedimento de verdade sui generis: “Por inestética entendo uma relação da filosofia com a arte que, colocando que a arte é, por si mesma, produtora de verdades, não pretende de maneira alguma torná-la, para a filosofia, um objeto seu. Contra a especulação estética, a inestética descreve os efeitos estritamente intrafilosóficos produzidos pela existência independente de algumas obras de arte”.5 Também por meio dessa operação metafilosófica altera-se a relação da filosofia da arte com as obras de arte: cabe à filosofia da arte compreendida como inestética dispor as obras em uma tal articulação com o pensamento que elas sejam acolhidas como veículos de verdades sui generis. Assim concede-se, aliás, uma inusual dignidade filosófica e ontológica à arte em sua relação com o pensamento.
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Discriminar as condições necessárias para o advento e o pleno exercício da filosofia é uma tarefa metafilosófica fundamental. Ela corresponde à ideia de que a filosofia só pode emergir e ser exercida em sua plena potência se um certo conjunto de condições prévias está dado. Essas condições podem ser empíricas, históricas, transcendentais ou ainda de outra ordem. Alain Badiou, por exemplo, postula que a filosofia só pode emergir e só pode ser plenamente desenvolvida quando a ciência, a política, a arte e o amor estão disponíveis como procedimentos genéricos de produção de verdades heterogêneas. A filosofia é o discurso que se volta a esses procedimentos de verdade e procura compossibilitá-los, isto é, torná-los simultaneamente possíveis em um só quadro conceitual coerente, a despeito (ou justamente em função) de sua heterogeneidade. Se uma dessas condições não está disponível ou se uma delas tende a tiranizar as demais e impor sobre elas seu regime de produção de verdade (como ocorre respectivamente com certas variantes do positivismo, do marxismo vulgar e do romantismo), aumenta o risco de minoração das capacidades intelectuais da filosofia, ou mesmo de seu desaparecimento como discurso autônomo. Como tais, essas condições são a um só tempo históricas e transcendentais6, pois emergem no espaço e no tempo e são também condições de possibilidade do pleno exercício da filosofia. Ainda que não subscrevamos os termos específicos da metafilosofia de Badiou, ela apresenta um modelo coerente de discurso metateórico acerca das condições da filosofia. Podemos interrogar a partir dele: quais são as condições elementares para o advento e o pleno exercício da estética e da filosofia da arte?
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Trabalhemos com a hipótese inicial de que dois fatos primordiais condicionam a emergência e o exercício da estética e da filosofia da arte, respectivamente. O primeiro deles é o fato de que a própria sensibilidade e a intelecção humanas (compreendidas em sentido amplo) possuam determinadas propriedades que as habilitam à fruição e à contemplação estética. O segundo fato é a própria existência da arte em geral. Embora sejam de natureza muita distinta, ambos os fatos podem ser considerados primordiais – como que Urfakte, portanto – para a emergência e o exercício da estética e da filosofia da arte, já que eles ao mesmo tempo constituem seus objetos elementares. Com isso, eles adquirem o estatuto de fatos transcendentais para a estética e a filosofia da arte. Bem entendido, como fatos eles são evidentemente contingentes: é perfeitamente concebível sem contradição um estado de coisas diverso em que eles não estivessem dados e, com eles, também as próprias disciplinas (e práticas em sentido amplo) que os têm como condição.7
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(Poder-se-ia objetar que a existência do belo em geral é também um fato primordial para a estética, assim como a existência de obras de arte em geral o é para a filosofia da arte. Parto do pressuposto – sustentado pela filosofia transcendental – de que a existência do belo é derivada de uma certa conformação do aparelho perceptivo-intelectual humano, e não um dado ontológico primordial. Correlativamente, também a existência de obras de arte é um dado secundário em relação à existência de arte em geral, não necessariamente instanciada em obras.)
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Que o aparato perceptivo-intelectual humano seja habilitado para a fruição e contemplação estética é um fato primordial para a estética que pode ser abordado ao menos sob os aspectos naturalista, histórico e/ou transcendental. Como dito, cada abordagem metaestética distinta desse fato implica estéticas distintas, que sedimentam o fato estético em princípios heterogêneos. Já a existência de arte em geral é um fato primordial para a filosofia da arte que convida particularmente à análise antropológica ou sócio-histórica.
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Em sua Teoria estética, Theodor W. Adorno se refere ao fato primordial da existência de arte em geral justamente como o fato da arte [das Faktum Kunst]8, cuja própria existência se tornara incerta: “Tornou-se uma autoevidência que nada do que diz respeito à arte ainda é autoevidente, seja em si mesma ou em sua relação com o todo, até mesmo seu direito de existência”.9 Para o filósofo, a perda de autoevidência da arte se deve a uma série complexa de fatores, não por último ao advento e à hegemonia da assim chamada “indústria cultural” na produção de objetos estéticos. Compreendida como uma tese histórica, também a doutrina hegeliana do fim da arte pode ser interpretada como uma tese sobre a dissolução histórica do Faktum Kunst (e, com ela, também do objeto privilegiado da filosofia da arte – e, no limite, dela própria).
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À primeira vista, os dois fatos primordiais elencados parecem estar articulados em uma relação de dependência do segundo em relação ao primeiro. Dessa perspectiva, não apenas a existência da arte em geral seria subordinada ao fato de que o aparato perceptivo-intelectual humano seria habilitado à fruição e contemplação estética, mas também a própria filosofia da arte seria subordinada à estética. Reside aí uma tese implícita sobre a ontologia da arte como incontornavelmente material e, como tal, também potencialmente estética – tese que, como se sabe, vem sendo colocada em questão desde o advento da arte conceitual. A despeito da resolução dessa querela sobre a esteticidade da arte, pode-se argumentar que a arte conceitual, ao menos em sua autocompreensão radical, tornou possível uma interpretação dos dois fatos primordiais mencionados como independentes – o que se estende, bem entendido, também à estética e à filosofia da arte. Do ponto de vista metateórico, portanto, seria concebível um cenário em que a estética, mas não a filosofia da arte chegasse a um estado de esgotamento.
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Tratamos de fatos primordiais que podem ser compreendidos como condições para a emergência e o exercício da estética e da filosofia da arte. Talvez possamos postular também certas condições históricas abrangentes para o advento das disciplinas. Pois embora evidentemente reflexões de cunho estético já estivessem disseminadas pela história da filosofia desde a Antiguidade, é inegável que sua consolidação como disciplina no século XVIII europeu não é um fato trivial. Como se sabe, pertence ao mesmo contexto histórico da consolidação da disciplina uma série de inovações que impactaram decisivamente o mundo da arte no Ocidente, desde a conformação do moderno sistema das artes até o advento dos primeiros museus modernos (como o British Museum e o Louvre), passando pela consolidação de disciplinas teóricas como a teoria da arte (com Laocoonte, de G. E. Lessing), a história da arte (com a obra de J. J. Winckelmann) e a crítica de arte (cuja primeira formulação do termo remonta à obra do pintor e teórico Jonathan Richardson). Não parece absurdo postular, nesse sentido, que essa constelação histórica não apenas tornou possível como também condicionou profundamente o advento, a consolidação e a formatação da estética e da filosofia da arte. Trata-se da progressiva consolidação de um conjunto articulado de práticas, instituições e saberes possivelmente inédito no Ocidente. A questão metafilosófica que se impõe a partir daí consiste em saber se e em que medida se trata de condições necessárias para a emergência das disciplinas e seu real impacto para a sua formatação.
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Talvez seja defensável a hipótese de que os fatos primordiais elencados acima possam figurar como condições mínimas para a emergência da estética e da filosofia da arte. Mas parece inegável que certa configuração do mundo da arte, ao se articular com essas disciplinas, pode aumentar seu campo de influência e relevância, potencializar suas capacidades de diálogo e interface com outros discursos e diversificar suas possibilidades de abordagem. Metafilosoficamente, trata-se aí de elementos não negligenciáveis para a consolidação e o exercício das disciplinas. Se não se trata de condições necessárias, talvez elas possam ser caracterizadas como condições suplementares ou suficientes para o seu desenvolvimento.
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Articular em nível metateórico a estética e a filosofia da arte com uma certa configuração do mundo da arte impacta ainda a historicidade dos seus objetos e, com ela, também das próprias disciplinas. Por exemplo: conceber a filosofia da arte como metacrítica de arte – como o faz Monroe C. Beardsley, conforme tratamos acima – parece tanto pressupor a consolidação da crítica de arte como disciplina quanto implicar numa certa relação arquitetônica entre ambas na qual a filosofia da arte se encontra em algum grau de dependência em relação à crítica. Em outros termos, é perfeitamente defensável a hipótese de que não se poderia conceber a filosofia da arte como metacrítica anteriormente à consolidação da crítica de arte como prática. Outro exemplo: se compreendermos que, com o fim da história da arte em sentido normativo e a correlativa abertura ontológica radical da obra de arte, é um certo gesto de tipo “curatorial” que passa a conferir estatuto artístico a objetos ordinários ou a ações efêmeras, então se pode dizer que a filosofia da arte também se verá em algum grau de dependência em relação à prática curatorial concreta. Evidencia-se aí a relatividade histórica e interdisciplinar da estética e da filosofia da arte em função do mundo da arte no qual elas se encontram.
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Não por último, articular a estética e a filosofia da arte com uma certa configuração do mundo da arte tem o potencial de determinar também outra questão metafilosófica central: o estatuto de suas categorias. Se essa articulação é posta positivamente, então boa parte das categorias da estética e da filosofia da arte serão derivadas das disciplinas históricas de determinado mundo da arte. Esse parece ser o caso paradigmaticamente de categorias do sistema das artes e das linguagens artísticas, dos gêneros, das formas e, claro, dos movimentos ou escolas artísticas (os “ismos”). Cabe à metafilosofia da arte explicitar a sua historicidade – e, com isso, também sua eventual derivação de certa historiografia concreta, com seus pressupostos históricos, teóricos e políticos – e discerni-las de categorias às quais eventualmente advenha outro estatuto, como é o caso das categorias transcendentais supramencionadas (relativas aos Urfakte). Assim, torna-se possível discriminar a eventual normatividade embutida nessas categorias históricas e sua própria relatividade – o que, por sua vez, volta a impactar a historiografia e a crítica de arte em sua prática concreta.
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Ao determinar essas categorias como derivadas de certa prática historiográfica e crítica concreta, não se pode concluir que elas se tornam menos relevantes ou mesmo secundárias para a estética e a filosofia da arte. Sendo derivadas de disciplinas históricas internas a certo mundo da arte, explicita-se seu caráter de material para a estética e a filosofia da arte. Com isso, a depender de como a estética e a filosofia da arte abordam essas categorias, altera-se qualitativamente seu conceito e função seja como disciplinas críticas, pedagógicas e/ou sistemáticas. Compreendidas como disciplinas críticas, a estética e a filosofia da arte voltam-se a essas categorias para testar sua consistência e para indagar sua pretensão normativa; como disciplinas pedagógicas, para esclarecer seu sentido como categorias em larga medida dadas na ou imiscuídas à prática; e, como disciplinas sistemáticas, para conferir-lhes uma unidade e articulação orgânica antes indisponível e necessária para aumentar o seu potencial explicativo.
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Além de articular a estética e a filosofia da arte com as demais práticas, instituições e disciplinas do mundo da arte, cabe à metaestética e à metafilosofia da arte também a tarefa de investigar sua posição no interior da arquitetônica filosófica. Em função de sua vinculação a objetos tidos como recalcitrantes ou mesmo antepostos à conceitualidade (como a sensação e a aparência), é fato notório que essas disciplinas ocuparam tradicionalmente uma posição subordinada na pirâmide de saberes da filosofia. Se ocasionalmente, em algumas raras exceções (como em certas variantes de romantismo), é verdade que elas ocuparam posição proeminente, essas exceções tendem apenas a confirmar a regra. É tarefa da metaestética e da metafilosofia da arte perscrutar (e eventualmente contestar) as origens, os fundamentos e os preconceitos filosóficos envolvidos nessa disposição secular. Com isso, pode-se conceber um cenário em que não apenas certas disciplinas tidas como nucleares para a filosofia (como a epistemologia e mesmo a metafísica), mas toda a arquitetônica filosófica seja internamente impactada.
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Um exemplo: por ter a sensibilidade humana como seu objeto privilegiado, sabemos que a estética pode ser concebida como uma disciplina de patente relevância para a teoria do conhecimento. Não por acaso, na história do termo consta sua utilização no interior da “Doutrina transcendental dos elementos” da Crítica da razão pura. Investigar sua articulação com os outros componentes da teoria de conhecimento, assim como a natureza e posição de seu contributo específico (e eventualmente não redutível à conceitualidade) para a constituição do saber é uma das tarefas da metaestética.
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(Não por último, na medida em que pode revelar, como postula a Dialética negativa de Theodor W. Adorno, uma ineliminável vinculação da conceitualidade a componentes infraconceituais, essa articulação é capaz de impactar o próprio sentido da produção de conceitualidade da filosofia: “O conceito não consegue defender de outro modo a causa daquilo que reprime, a da mimesis, senão na medida em que se apropria de algo dessa mimesis em seu próprio modo de comportamento, sem se perder nela. Dessa forma, o momento estético, ainda que por uma razão totalmente diversa do que em Schelling, não é acidental para a filosofia”.10)
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Outro exemplo: em articulação metafilosófica com a ética, a estética pode ter relevância para a compreensão de aspectos específicos da sensibilidade e da senciência humana em sua dimensão moral. Se se pode objetar que essa articulação alargaria em demasiado o escopo da disciplina, ao mesmo tempo se pode ajuizar que ela seria de importância para a determinação de suas fronteiras e interfaces.
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Mas talvez o potencial supremo da estética em articulação metafilosófica com a metafísica seja impactar um dos dualismos fundamentais da história da filosofia: o dualismo entre essência e aparência. Não apenas para determinar o estatuto da aparência em contraposição à essência, mas também para “salvar a aparência” em sua dignidade ontológica própria. O fato de que esse tópos se fez amplamente presente em certas correntes filosóficas do século XX revela a relevância e o potencial da metaestética para o discurso filosófico.
Referências bibliográficas
ADORNO, Theodor W. Ästhetische Theorie. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1970.
_____. Dialética negativa. Tradução de Marco Antonio Casanova. São Paulo: Zahar, 2009.
BADIOU, Alain. Pequeno manual de inestética. Tradução de Marina Appenzeller. São Paulo: Estação Liberdade, 2002.
BEARDSLEY, Monroe C. Aesthetics: Problems in Philosophy of Criticism. New York: Harcourt, Brace & World, 1958.
LAZEROWITZ, Morris. “A note on ‘metaphilosophy’”. Metaphilosophy, v. 1, n. 1 (1970), p. 91.
SCHELLEKENS, Elisabeth. “Three Debates in Meta-Aesthetics”. In: STOCK, Kathleen; THOMSON-JONES, Katherine (orgs.). New Waves in Aesthetics. New York: Palgrave Macmillan, 2008, p. 170-187.
STOCK, Kathleen; THOMSON-JONES, Katherine (orgs.). New Waves in Aesthetics. New York: Palgrave Macmillan, 2008.
TENGELYI, László. Welt und Unendlichkeit. Zum Problem phänomenologischer Metaphysik. Baden Baden: Verlag Karl Alber, 2014.