Metafísica, sonhos e ficção: Kant e os espectros
Walter Menon

Introdução

O objetivo deste artigo não é o de retomar a discussão da importância do texto Os sonhos de um visionário explicados pelos sonhos da metafísica, de 1766, dentro do escopo da obra kantiana, alinhando-o à preparação, já crítica à metafísica dogmática, do futuro empreendimento apontado na dissertação de 1770 e desenvolvida no projeto das três críticas, ou pelo menos nas duas primeiras.1 Como se sabe, no texto já se encontram em germe o ceticismo, a importância da experiência empírica objetiva na sustentação da pretensão à universalidade de uma tese, e um certo procedimento dialético ao expor as contradições que impossibilitam toda proposição afirmativa e o aparato dogmático de uma razão desprovida de lastro empírico confrontado a um sistema produzido por um visionário.

A temática do sonho, o porquê Kant lança mão da comparação entre metafísica, visão dos espíritos e sonho, é o que nos interessa2, bem como a analogia entre o esquema de formação da imagem na alucinação, na visão dos espíritos e o esquema do dispositivo técnico de projeção de imagens da lanterna mágica que, por sua vez, é um desenvolvimento dos esquemas da perspectiva artificialis e da concepção físico-geométrica do fenômeno visual. Nossa hipótese é que a relação entre tal esquema e a fé moral na vida eterna, suas consequências teóricas e prático morais, expressas naquilo que Kant denomina ironicamente pneumatologia, ciência dos espíritos, seriam elementos de uma fictio heuristica: uma invenção teórica plausível, mas ficcional, cujo objetivo último seria o de demonstrar os perigos das crenças em espíritos, sempre patológicas, bem como o das fantasias criadas pela metafísica dogmática.

O texto de Kant, portanto, se vincularia a um gênero expositivo próprio ao contexto cultural de publicações dedicadas a combater as crenças em visionários, sances espíritas, e aparições espectrais. Embora muitas dessas obras tivessem o intuito de chamar a atenção para os absurdos e perigos de tais crenças, Kant evita atacar a crença na vida eterna. Assim, ao reforçar a importância moral das crenças na vida eterna, acaba por reforçar a hipótese dos espíritos, e estreitar ainda mais a relação entre metafísica e espectros. Por último, o esquema óptico utilizado por Kant para explicar os processos cognitivos envolvidos nas visões espirituais é o mesmo dos aparelhos de projeção de imagens que se encontram nos espetáculos de fantasmagoria. Estes, assim como a publicação em massa dos romances de fantasma, queremos crer, estariam no início do que poderíamos chamar de indústria cultural dos espectros que invade a segunda metade do século dezoito, se desenvolve massivamente no século seguinte e preludia, justamente por seu esquematismo, a indústria cultural como pensada por Adorno e Horkheimer.

I

Kant parte da questão que considera estar no centro do problema da existência de um mundo espiritual, um mundo dos espíritos, isto é, a questão mesma de se saber ao que se refere o termo “espírito” quando este é utilizado na descrição do referido mundo. O que é um espírito? Um ser que possui razão. Mas a resposta não é suficiente, à propriedade da razão devem-se agregar outras definidoras pois, como evidencia Kant, se um homem é um ser de razão, não podemos, porém, dizer que, ao vermos um homem, vemos um espírito, porquanto espíritos são diferentes de humanos no que concerne a sua natureza não material. No que concerne, por outro lado, a sua natureza racional, esta é a mesma que define o homem. Assim, ao seguirmos a conclusão proposta por Kant, que utilizará como ponto de partida da sua investigação a definição de espírito, há como que uma coincidência, em parte, entre espírito e homem que deriva, essencialmente, do caráter racional comum aos dois: “este ser, que no homem possui razão, é apenas uma parte do homem e esta parte, que o vivifica, é um espírito.”3

Embora afirme, ainda que de maneira ligeira, que o espírito é não somente a parte racional do homem, mas propriamente seu elemento vital, o que interessa a Kant na relação entre espírito e homem encontra-se sugerido na possível partilha da natureza humana em pessoa e sujeito, sendo o sujeito identificado com a razão, que é própria do espírito. Definida a natureza do espírito – racional, imaterial –, Kant enfrenta a segunda questão comum acerca dos fenômenos espirituais: sua independência do homem, ou seja, da pessoa, da manifestação corpórea. Ele passa, assim, a examinar a possibilidade da existência do espírito como entidade desligada do homem. Se a natureza racional humana se constitui necessariamente do elemento espiritual, o inverso não é verdade, o espírito não depende do humano, isto é, da ligação com o corpo. Ele se define por contraste à definição clássica de corpo, “[...] extenso, impenetrável e, como todo corpóreo, submetido à divisibilidade e às leis do choque”.4

Todo ser espiritual deve ser simples e dotado de razão, mas também penetrável, indivisível e não submetido às leis da causalidade mecânica. A partir das definições primeiras das propriedades dos espíritos por oposição às dos corpos, e ao conceber um experimento especulativo no qual espíritos são colocados em um espaço cúbico, Kant conclui a incompatibilidade entre quantificação – a propriedade de ocupar um lugar, isto é, de preencher um espaço – e a substância espiritual, o conceito de espírito – algo que não pode ser pesado, medido e cuja permanência, ou duração, não se mede tampouco –, o que implica em considerar, contra a experiência empírica, plausíveis, portanto, “[...] seres que não possuem em si a propriedade da impenetrabilidade e que nunca constituiriam um todo sólido [...]”.5

Embora se possa especular a respeito do comportamento da substância espiritual por contraste àquela material e que se possa, na esteira de uma concepção de espírito que faz apelo à substância pensante cartesiana, especular sobre sua plausibilidade, nada nos permite concluir daí a existência de tais seres, isso porque, se por um lado nada me impede de conceber uma substância racional pensante, simples, que não poderia ser dividida e distribuída em partes ligadas em um todo, não posso “[...] por certo sequer pensar in concreto uma atividade delas que não tenha uma analogia com minhas representações de experiência [...]”.6 A questão levantada por Kant aqui é a de que é impossível se representar, ao se levar em conta, mesmo que de maneira puramente racional e especulativa, uma tal substância espiritual sem se utilizar de analogias com os conceitos pelos quais “as coisas são dadas em meus sentidos”.

Pode-se cogitar a substância pensante como o contrário da substância extensa e, portanto, característica do mundo espiritual. Mas disso decorreria, necessariamente, uma “impensabilidade” do espírito, isto é, uma impossibilidade de sua representação.7 “Pode-se, pois, assumir a possibilidade de seres imateriais sem a preocupação de ser refutado, mas também sem a esperança de poder demonstrar essa possibilidade mediante fundamentos racionais.”8 A busca racional por construir um conceito de seres espirituais, mundos espirituais e assim por diante esbarra no limite da própria razão, que permite apenas conceber especulativamente a substância pensante. Nesse sentido, como aponta Kant, não se poderia pensar nenhuma forma, nenhuma figura espiritual: um ser extenso espiritual é uma contradição entre termos. “Os limites da extensão determinam a figura. Nelas não se poderia, portanto, pensar nenhuma figura. Essas são razões dificilmente compreensíveis da suposta possibilidade de seres imateriais no todo do mundo.” 9

Dado, portanto, que a impossibilidade de representar espíritos se impõe, mas, ao mesmo tempo, esta se constata pelos testemunhos dos que veem e escutam espíritos, isto é, estes se manifestam aos sentidos de algumas pessoas, resta a Kant, para contornar essa aparente contradição, afirmá-la apenas aparente e em parte produto da falta de um aprofundamento na especulação acerca da metafísica dos espíritos que exige um retorno ao ponto de partida, ou seja, à ligação entre homem e espírito. Isso porque é na conjunção do elemento corporal com o espiritual que uma explicação plausível para uma visão dos espíritos pode ser encontrada. Surge, portanto, um terceiro elemento: a alma humana. Assim, Kant se pergunta: “[...] onde é o lugar desta alma humana no mundo corporal? Eu responderia: aquele corpo cujas alterações são minhas alterações, este corpo é meu corpo, e seu lugar é ao mesmo tempo meu lugar.”10

O problema neste ponto é o da relação entre duas substâncias diferentes: se há possibilidade metafísica desse tipo de relação e, caso a resposta seja assertiva, como já aponta a premissa admitida anteriormente por Kant, cabe tentar definir, a partir das mesmas premissas, qual tipo de ligação, de comunicação, é possível entre a coisa pensante e a coisa extensa, ou melhor, entre o elemento espiritual e o corporal que compõem a pessoa.

Parece que um ser espiritual estaria presente intimamente na matéria a que está ligado e não agiria sobre aquelas forças dos elementos com as quais estes estão em relação recíproca, mas sobre o princípio interno de seu estado, pois cada uma das substâncias, até mesmo um elemento simples da matéria, deve ter alguma atividade interna como o fundamento da eficácia externa, mesmo que eu não saiba indicar no que ela consiste.11

É indiscutível nessa passagem a necessidade de um terceiro elemento, a alma, um elemento de ligação entre matéria e pensamento, entre corpo e espírito, que seria, basicamente, receptivo e organizacional. Sobre esse terceiro elemento age tanto o ser espiritual, quanto o ser material, e este os organiza em imagens em um sentido interior. Como lhe denomina Kant, esse é um “princípio interno”, cuja função receptiva encontra-se desenvolvida no iniciado, isto é, no visionário.

O iniciado já acostumou o entendimento grosseiro e preso aos sentidos externos a conceitos superiores e mais abstratos e agora pode ver figuras espirituais e destituídas de roupagem corporal naquele crepúsculo com o qual a luz fraca da metafísica torna visível o reino das sombras.12

A partir da ideia de uma disposição da alma do visionário, cuja sensibilidade permite perceber os espíritos, e sob a “luz” da metafísica que sustenta racionalmente a sua existência, Kant busca desenvolver uma teoria dessa força natural, cósmica, que compartilha a ordem mesma do ser com a matéria “que preenche o espaço sideral”, que possui solidez, extensão e figura, e cujas manifestações “[...] comportam uma definição física que é ao mesmo tempo uma definição matemática, as quais juntas chamam-se definição mecânica.”13 Essa outra força é o espírito, ou os seres espirituais, e estes, segundo Kant, são o próprio “fundamento da vida no universo” “[...] que por isso não são do tipo dos que aumentam como partes constitutivas o amontoado e a extensão da matéria sem vida, nem estão sujeitos a esta segundo as leis do contato e do choque, [...]”.14 Uma vez que os espíritos não estão sujeitos às leis que dão vida à matéria inerte e que são eles próprios o princípio inteligente desse movimento, podemos afirmar que eles têm atividade autônoma, isto é, não determinada por agentes externos a si próprios. As causas espirituais são submetidas, logo, a leis que Kant denominará “pneumatológicas”, por terem origem na atividade dos próprios espíritos, bem como “orgânicas”, por serem os seres corporais causas intermediárias dos efeitos espirituais, isto é, inteligentes e vitais, no mundo material.

Assim, conclui:

Uma vez que esses seres imateriais são princípios espontâneos, portanto substâncias e naturezas subsistentes por si, a primeira consequência a que se chega é a seguinte: que eles imediatamente unidos entre si talvez constituam um grande todo, que se pode chamar de mundo imaterial (mundus intelligibilis).15

Logo, a partir da relação da matéria com o princípio interno pode-se pensar a noção de pessoa, mas, ao mesmo tempo, não há nada que obrigue os espíritos, “essas inteligências criadas” por serem necessariamente ligadas à pessoa, a serem dependentes desta. “Algumas são ligadas à matéria em uma pessoa e outras não [...]”16, aquelas não ligadas a uma pessoa, à alma, são os espíritos, e estes ultrapassam os limites da definição do princípio inteligente localizado em um ser racional. Kant parece sugerir, neste ponto, a noção de sujeito como sendo o próprio princípio sensível, inteligente e vital (no sentido da organização e atividade da matéria orgânica) “[...] que em geral [pode] se encontrar em alguma parte da natureza, mesmo que isso não se revele por nenhuma característica externa do movimento arbitrário”.17

Por essa dupla natureza humana de pessoa e sujeito, pode-se entender a alma humana como “ligada a dois mundos” ao mesmo tempo. A possibilidade da alma humana “sentir”, ou “perceber” o mundo espiritual, tal qual percebe e sente o mundo externo, corporal, portanto, deriva de sua natureza corporal “numa unidade pessoal”, e de sua qualidade de “membro do mundo dos espíritos”, por sua natureza espiritual e nessa junção encontra-se sua qualidade de sujeito. Evidentemente, por ser alma e corpo, o sujeito se encontra em comunidade com os espíritos, e a clareza da percepção e da representação dessa mesma comunidade como uma comunidade de pessoas em um mundo de coisas discriminadas em figuras dependeria da “manifestação” dessas “naturezas espirituais” na maneira de uma intuição clara na consciência, isto é, como algo presente aos nossos sentidos em uma representação clara. Teríamos que admitir

[...] que a alma humana se encontra também nesta vida em uma comunidade indissolúvel com todas as naturezas imateriais do mundo dos espíritos, que ela tanto age sobre essas quanto recebe delas influências, das quais não tem, contudo, consciência como homem, enquanto tudo está bem.18

Essa pneumatologia, embora pareça dar conta das contradições inerentes à própria ideia de um mundo de seres não materiais inteligentes, não tem como ser inferida, ou mesmo não tem probabilidade alguma de ser confirmada pela observação, tendo em vista que sua natureza só pode ser experimentada, percebida, em uma confusão com os sentidos materiais. Em outros termos, nem os critérios empíricos, nem os racionais, são suficientes para comprovar a existência de seres espirituais. Dessa forma, resta a Kant se voltar para aqueles tipos de juízos compartilhados universalmente pelos seres de razão, ou seja, os juízos morais. É da unidade desse juízo que se pode inferir uma comunidade de seres de razão.

Um poder secreto nos coage a orientar nossa intenção ao mesmo tempo para o bem de outros ou de acordo com o arbítrio de estranhos, mesmo que isso o mais das vezes se dê a contragosto e se oponha fortemente à inclinação egoísta, e o ponto em que convergem as linhas diretrizes de nossos impulsos não se encontra, portanto, apenas em nós, mas existem ainda forças que nos movem no querer de outros fora de nós.19

O juízo moral compartilhado necessariamente pelos seres racionais nos remete à regra da vontade universal que deve reger tal comunidade, pois essa vontade, por ser necessariamente racional, não pode ser apenas autodeterminada, isto é, não pode ser nem mecânica, nem matemática. “Com isso vimo-nos dependentes nos mais recônditos motivos da regra da vontade universal e nasce daí no mundo de todas as naturezas pensantes uma unidade moral e uma constituição sistemática segundo leis puramente espirituais.”20 Em outras palavras, apenas as leis morais, por serem fruto da vontade livre autodeterminada, são, portanto, puramente espirituais, conforme a definição fornecida da natureza racional dos espíritos. É dessa natureza que deriva o valor de juízos e ações que, por vezes, são desvirtuados pelos limites das causas materiais. Se as razões e efeitos morais estão perdidos em termos de resultados no mundo material, isto é, no “estado corporal”, podemos concluir que as “verdadeiras intenções” e seus efeitos devem ser considerados no mundo dos espíritos, isto é, no mundo do puro exercício do livre-arbítrio. São princípios “frutíferos” no mundo imaterial, pois

[...] exercer ou também receber reciprocamente um efeito adequado à constituição moral do livre-arbítrio [...] estabelece a comunicação necessária entre vontade individual e universal como índice racional da unidade metafísica do mundo dos espíritos, embora sua manifestação se dê na forma de uma pluralidade de indivíduos.21

Todo o efeito dos juízos e atos morais da pessoa, devido à continuidade entre esse mundo e o mundo do além, se conservam depois que a alma se torna apenas espírito, “[...] todas as consequências da moralidade aqui exercida seriam encontradas lá nos efeitos que um ser que se encontra em comunidade indissolúvel com todo o mundo dos espíritos já causou ali antes, de acordo com leis pneumatológicas”.22 É segundo essas leis que os atos morais, realizados pelo sujeito e suas consequências, são regulados, e por essas leis a comunidade com os espíritos se evidencia na sua dupla natureza de espírito e pessoa.

Se dessa não se pode duvidar, ao se aceitar a premissa e a natureza do mundo espiritual, resta explicar sua manifestação, ou seja, sua representação. Tendo em vista que é na alma que se dá qualquer representação, a possibilidade de representar um espírito, dotá-lo de figura, de aparência, implica um retorno sobre si mesma, ou seja, de uma percepção de si. Ao se representar a alma a si mesma, esta se vê como espírito “através de uma intuição material”. Porém, tal só é possível na medida que se sabe em comunidade com os espíritos, seres nos quais reside a razão, a moral, e o princípio inteligente. Assim, essa representação é completamente distinta daquela outra “[...] em que sua consciência se representa a si mesma como um homem, através de uma imagem que tem sua origem na impressão de órgãos corporais, e que só é representada em relação a outras coisas materiais”.23

A conclusão é a de que a alma, ao se representar como espírito, é o mesmo sujeito no mundo material (como alma) e no espiritual (como espírito), porém, não é a mesma pessoa. Quando a alma se representa como consciência de si, é pessoa, pois intrinsecamente ligada a seu corpo do qual retira sua identidade. Na pessoa, portanto, o mundo dos espíritos, devido a sua constituição não material, não comporta uma representação “[...] e, por isso, não lembro enquanto homem aquilo que penso como espírito e, vice-versa, meu estado como um homem não entra na representação de mim mesmo como um espírito”.24 Qual seria, porém, a origem das experiências de aparições, visões do outro mundo e assim por diante, pressupondo sua credibilidade? Como ocorre a representação na pessoa, por meio do seu “sentido interno”, do mundo espiritual? A resposta, segundo Kant, está no material que a imaginação humana fornece aos espíritos, do qual se servem para representarem a si próprios discriminados, individualizados e não como a substância contínua da metafísica cartesiana.

[...] pois, embora eles não possam passar imediatamente para a consciência pessoal do homem, podem fazê-lo de tal modo que eles excitam, segundo a lei da associação dos conceitos, aquelas imagens aparentadas que despertam representações analógicas de nossos sentidos, as quais certamente não são os próprios conceitos espirituais, mas, sim, seus símbolos.25

Assim, a representação que o homem faz de si como espírito é a de sua alma dissociada do seu corpo; já aquela que faz dos espíritos, como, particularmente, no caso dos visionários, ocorre de maneira indireta, isto é, não há produção de conceito, de representação que seja idêntica ao representado, mas uma analogia, uma construção simbólica a partir do material da imaginação da pessoa. Observe-se que Kant não nega que a origem, a causa dessas imagens, desses símbolos, possa ser espiritual, apenas aponta a impossibilidade de diferenciá-los daqueles que são causados pela própria imaginação do visionário projetada para fora, como os objetos exteriores se apresentam aos nossos sentidos. Há uma mobilização do sentido interno para se produzir exatamente a mesma experiência da fantasia, isto é, dos produtos da imaginação pura, com a diferença de que tais imagens espirituais seriam, em relação às da fantasia puramente imaginativas, mais claras, mais nítidas.

Tais pessoas incomuns seriam acometidas em certos momentos da aparência de vários objetos como exteriores a elas, os quais seriam tidos como uma presença de naturezas espirituais em seus sentidos corporais, apesar de aqui se passar tão-somente uma ilusão da imaginação, mas de tal modo que a causa disso é um verdadeiro influxo espiritual, que não pode ser sentido imediatamente, mas apenas se revela à consciência por meio de imagens aparentadas da fantasia, as quais assumem a aparência das sensações.26

É evidente aqui a semelhança entre o fantasista e o visionário, que, de fato, pode ser entendida mais como uma identidade propriamente, tendo em vista que as causas das imagens produzidas não são diferenciáveis quanto às suas manifestações. Assim, apenas por meio da observação do produto quimérico da imaginação não se define sua origem: se é de fonte espiritual, supondo que esta exista, ou se é puro resultado da distorção patológica da imaginação e dos sentidos, isso “[...] porque representações estranhas segundo sua natureza e incompatíveis com as do estado corpóreo do homem afloram e introduzem na sensação externa imagens mal associadas [...]”.27 Vale insistir, quanto ao sujeito, independentemente de serem as imagens produzidas por este ou por uma causa espiritual as imagens surgem na forma da sensação externa das mesmas, isto é, como se fossem dadas nos sentidos corpóreos, “[...] pelo que são tramadas quimeras selvagens e caretas bizarras que iludem em longo séquito os sentidos enganados, mesmo que possam ter como fundamento um verdadeiro influxo espiritual”.28

II

Estabelecido o quadro de um exame rigoroso levado a cabo pela razão no intuito de descrever e explicar o processo de manifestação espiritual dentro do escopo de uma teoria metafísica dos espíritos, Kant passa ao que denomina Anticabala. O objetivo maior de seu texto se revela como aquele de, efetivamente, determinar o caráter puramente especulativo e opiniático que a crença na comunidade com os espíritos possui. Em outras palavras, tais crenças não se justificam objetivamente. Portanto, faz-se necessário uma vez mais retornar à relação entre a alma e o corpo.

Se, por um lado, a representação produzida pela influência espiritual na alma não se diferencia da representação produzida pelos sentidos no que diz respeito ao sujeito para o qual e no qual elas surgem, por outro, elas talvez possam ser compartilhadas por mais de uma pessoa, como bem demonstra os relatos das aparições espíritas. Porém, do fato de que possam tais experiências serem compartilhadas, não se pode concluir a sua objetividade. Isso porque os sujeitos são individualizados nas pessoas, e estas têm experiências próprias. Mesmo que muitas vezes possam coincidir os testemunhos de uma aparição e mais de uma pessoa ter a experiência da comunidade com espíritos, essas experiências não têm a objetividade e o rigor universal do conceito. São limitadas à experiência da representação que se produz na alma, na imaginação. Essa experiência pode ser vivida como produzida por um agente externo e dessa externalidade pode dar testemunho aquele que a experimentou, e mais de uma pessoa pode ter, ou ter tido uma experiência aproximadamente semelhante à descrita, no entanto, experiências que só podem ser compartilhadas por meio de testemunhos não possuem objetividade. Dessa maneira, Kant aproxima tais experiências àquelas vividas no sonho, isto é, àquelas que, ainda que em tudo se assemelhem às experiências sensíveis do mundo que compartilhamos na vigília, são privadas. O mundo da vigília seria, portanto, associado ao da experiência sob o crivo da razão, enquanto o do sonho àquele que deixa livre a alma para produzir seu próprio mundo, com suas próprias regras. No primeiro temos um mundo em comum; já no segundo, cada um tem seu próprio mundo. A semelhança entre “sonhos” de sujeitos diferentes, podemos acrescentar, é da ordem da coincidência e não de uma regularidade da natureza.

Kant constata que, de fato, tanto metafísicos dogmáticos quanto os sensitivos vivem em seus próprios mundos sonhados. É por essa razão que cada metafísico habita seu “castelo no ar dos tantos mundos de pensamento” com “exclusão dos outros”29 e, ainda que não haja uma identidade direta dos mundos metafísicos com aqueles percebidos pelos visionários – ou seja, uma identidade entre os sonhos da razão e os da sensação –, eles compartilham o mesmo caráter onírico, isto é, não estão submetidos às leis da natureza. A diferença entre os mundos metafísicos e os produzidos pela sensibilidade reside no grau, na intensidade da representação, no tipo de representação e na relação do sujeito com esta.

Os visionários distinguem-se, portanto, dos sonhadores acordados não só segundo o grau, mas inteiramente e segundo a espécie, pois aqueles reportam, no estado de vigília e muitas vezes em meio à maior vivacidade de outras sensações, certos objetos às posições externas das outras coisas que eles de fato percebem a sua volta, e a questão aqui é apenas como se dá que eles põem fora de si a ilusão de sua imaginação e precisamente em relação a seu corpo, do qual eles têm sensação também através dos sentidos externos.30

Nem a magnitude e a vivacidade, nem a clareza da representação podem ser a causa dessa “confusão” entre sonho e vigília, entre algo produzido na minha alma, por minha alma, e algo que é sentido, percebido por meus sentidos. Por que então algo que deveria ser representado como interior, contido na própria alma, se manifesta em um “lugar exterior”, como objetos que se dão à “sensação”31? A explicação, parece advir do próprio esquema (geométrico, fisiológico) subjacente às manifestações das representações do sujeito. De fato, o esquema óptico que Kant adapta também para a sensação sonora, sustenta, em suma, a igualdade geométrica do ponto de fuga, ou dispersão, com o ponto de vista, ou convergência. Como há identidade entre os dois, a impressão da imagem produzida pela sensação ocorre no mesmo “lugar” em que se produz a imagem produzida pela imaginação.

Aqui se torna bastante provável que nossa alma ponha em sua representação o objeto sentido ali onde convergem, quando prolongadas, as diversas linhas diretrizes da impressão, deixadas pelo objeto. Por isso se vê um ponto brilhante naquele lugar em que se cortam as linhas prolongadas do olho na direção da incidência dos raios luminosos. Este ponto, que se chama ponto ótico, é no efeito certamente o ponto de dispersão, mas na representação ele é o ponto de convergência das linhas diretrizes, de acordo com as quais a sensação é impressa (focus imaginarius). Assim se determina mesmo com um só olho o lugar de um objeto visível, como ocorre, entre outros casos, quando o espectro de um corpo é visto no ar por meio de um espelho côncavo precisamente lá onde se cortam, antes de incidir sobre o olho, os raios que emanam de um ponto do objeto.32

O aspecto importante acrescentado por Kant ao esquema óptico da perspectiva é o dispositivo técnico visual de projeção de imagens a partir da utilização de uma fonte de luz e de um espelho côncavo. Kant introduz esse dispositivo em sua explicação não como uma mera metáfora da projeção das imagens internas no mundo externo, mas como o próprio esquema comum entre imaginação, visão e o dispositivo técnico de captação e projeção de imagens. Porém, para que se compreenda como se produzem as imagens da imaginação, isto é, as imagens puramente internas, e como estas se confundem com as produzidas por agentes externos ao serem projetadas no mundo exterior, esse dispositivo especular deve ser acompanhado de uma explicação fisiológica.

Para aplicar isso às imagens da imaginação, seja-me permitido pressupor aquilo que Descartes assumiu e a maioria dos filósofos admitiu após ele, a saber, que todas as representações da imaginação são acompanhadas simultaneamente de certos movimentos do tecido nervoso ou espírito nervoso do cérebro, chamados de ideae materiales, isto é, talvez da comoção ou vibração do elemento sutil segregado pelos nervos, a qual é semelhante àquele movimento que poderia causar a impressão sensível de que ele é uma cópia. (Ibid., p. 181)

A diferença, então, é de ordem corporal, isto é, ligada aos limites corporais que definem a pessoa. O “movimento dos nervos” na fantasia é interno, enquanto na sensação esse mesmo movimento, de linhas que se cortam, ocorre fora do cérebro: o focus imaginarius é posto “fora de mim”. Dessa maneira, as sensações claras do estado de vigília e as fantasias não se confundem, mesmo quando ocorrem simultaneamente pois, através de um exame do sujeito sobre si, constata-se essa diferença de origem das imagens e sua natureza, podendo então se distinguir “as imaginações”, das “impressões dos sentidos”.33 A confusão surge quando essas linhas de foco, em um estado patológico, produzem imagens indistinguíveis quanto aos sentidos, não havendo possibilidade de se exercer o crivo do entendimento e, portanto, da razão na busca por separá-las, isto é, por identificá-las ao seu locus de origem. Na mente do fantasista a ilusão dos sentidos, assim como a percepção do mundo, precedem a todo entendimento e, dessa forma, podem se confundir de tal maneira que a sua “evidência imediata” é imune à razão e a toda “persuasão contrária a essa equivalência” (Ibid., p. 183). Ademais, o próprio entendimento, afirma Kant, teria uma tendência a aceitar a crença no mundo dos espíritos: “A balança do entendimento não é inteiramente imparcial, e um braço dela, que leva a inscrição: esperança do futuro, tem uma vantagem mecânica, que faz com que mesmo razões leves, que caem em seu prato, sobrepujem as especulações de maior peso no outro lado.”34

A principal causa, portanto, da credulidade nas histórias sobre espíritos, aparições, fenômenos mediúnicos e assim por diante, residiria não na plausibilidade desses relatos, mas no sentimento de esperança na continuidade de uma parte do homem, a alma transformada em espírito, após a morte do corpo. Sob o efeito desse sentimento, como afirma Kant, os juízos do entendimento não seriam confiáveis, pois, ao penderem para a aceitação da possibilidade da independência da coisa pensante, identificada à substância espiritual, com relação à matéria, tais juízos dariam vazão à especulação acerca da existência de uma comunidade espiritual, da qual todo tipo de aparições, fenômenos espirituais e assim por diante, seriam indícios. Vale ressaltar que a explicação sistemática, puramente racional da vida após a morte e que justifica a crença em muitos desses fenômenos – explicação do tipo proposta pelo esboço concebido por Kant na primeira parte dita “dogmática” –, nasce menos do interesse em se entender esses fenômenos de aparição, ou de provar sua verdade, do que da crença na possibilidade da existência do mundo imaterial, com seres imateriais dotados de razão e que não estão sujeitos à corrupção da matéria. A partir da necessidade dessa crença, é que se busca explicar, pela razão, os supostos fenômenos espirituais. Como coloca Kant:

Sim, isto parece ser também em geral a principal causa da credibilidade das histórias sobre espíritos, tão difundidas, e mesmo as primeiras ilusões acerca de supostas aparições de pessoas defuntas nasceram presumivelmente da esperança lisonjeira de que se continue de algum modo depois da morte, tendo então a ilusão enganado os sentidos em sombras noturnas e criado a partir de figuras ambíguas fantasmas adequados à opinião precedente, o que constituiu então para os filósofos finalmente ocasião para conceberem a ideia racional de espíritos e apresentá-la como doutrina.35

Porém, se de fato esse estado de coisas descrito por Kant não tem origem na parcialidade do entendimento quando se trata de julgar acerca da natureza espiritual (leia-se: intelectual, racional e vital) do homem e de sua independência da parte corporal, cabe ao filósofo, no entanto, não abandonar a força da especulação racional, por menos imparcial que seja, mas apontar seus limites e fixar assim os próprios limites do conhecimento. Dessa maneira, embora se possa afirmar e descrever os fenômenos (o termo não é de Kant) do mundo espiritual a partir de certas premissas, como faz Kant, não haveria, no entanto, como se conhecer algo da natureza espiritual tendo em vista que as “leis pneumatológicas” são apenas especulativas. Em outras palavras, uma teoria metafísica do mundo espiritual é um exemplo dos limites da própria metafísica. Seu sentido reside na capacidade de mais ou menos definir os limites da nossa compreensão: “[...] nos convence de que as diversas manifestações da vida na natureza e suas leis são tudo que nos é dado conhecer, mas que o princípio desta vida, isto é, a natureza espiritual, que não se conhece, mas apenas conjectura, nunca poderá ser pensado positivamente.”36

III

É tal qual um conto fantástico, uma ficção, que Kant reconhece seu esforço em criar, a partir de ideias fantásticas, “um texto de investigações filosóficas.” Como ele afirma: “Mas, como a filosofia que adiantamos era igualmente um conto do país das fadas da metafísica, não vejo nada de inconveniente em deixar aparecer a conexão entre um e outro.”37 Essa conexão se deve, em larga medida, à extrapolação dos limites das leis da natureza pela razão. Nesse sentido, a metafísica dogmática se aproxima da fantasmagoria do visionário. Porém, deste se afasta quando os limites da razão são respeitados, isto é, são entendidos exatamente como limites. No caso da ilusão “coerente” dos sentidos é muito mais difícil exercer um limite, quer dizer, estabelecer o seu caráter ilusório, porque, se podemos conhecer suficientemente os fundamentos da razão e, portanto, separá-los das tendências a uma curiosidade vazia compelida pela possibilidade de uma natureza imaterial do homem, quanto aos sentidos, diz Kant, “[...] aquela ilusão dos sentidos atinge o fundamento primeiro de todos os juízos, contra o qual, estando errado, pouco podem as regras da lógica!”38

Assim, sofre o visionário de uma patologia dos nervos que, devido a sua gravidade, intensidade e raiz (fisiológica), supera aquela que atinge a razão quando esta produz sistemas metafísicos. A saída parece vir da comparação entre juízos, ou seja, de um confronto entre os mesmos. Em um trecho que alude a essa atitude epistêmica, Kant afirma que: “O juízo daquele que refuta minhas razões é meu juízo, depois de tê-lo pesado contra o prato do amor-próprio e em seguida contra minhas supostas razões e encontrado nele uma maior consistência.”39 A saída proposta é a de alterar o eixo do entendimento. Este é necessariamente universal e, portanto, não pode ser exercido a partir da minha subjetividade, mas sim de uma razão a mim externa e que necessariamente compartilho com outros seres racionais. “Antes eu considerava o entendimento humano universal apenas do ponto de vista do meu entendimento: agora ponho-me no lugar de uma razão alheia e externa e observo meus juízos, junto com seus mais secretos motivos, do ponto de vista de outros.”40 Deve-se, portanto, sustentar seus juízos do ponto de vista de uma comunidade de razão; é desse ponto de vista externo à minha pessoa, a qualquer pessoa, que devo examinar meus juízos. Todavia, esse procedimento não encontra resposta positiva no que concerne à tarefa de separar as experiências sensíveis daquelas imaginárias, visto que a confusão entre produtos da imaginação e fenômenos podem ter origem em causas patológicas e mesmo não materiais. Logo, se não há objetividade nessas experiências, porque temos acesso às mesmas apenas indiretamente, por meio da patologia, se não podemos fazer das mesmas juízos de valor universal que as confirmem, não é menos verdade que não se pode fazer da sua não existência juízos válidos universalmente.

Esse limite da razão deixa um espaço à especulação do tipo realizado por Swedenborg, do qual Kant trata na segunda parte do seu texto, dita histórica. Nessa segunda parte, partindo da sua teoria metafísica dos espíritos deduzida na primeira parte, busca explicar as descrições do mundo espiritual e de suas experiências, fornecidas por Swedenborg em sua obra de oito volumes.41 A intenção não é tanto a de demonstrar a plausibilidade do sistema de Swedenborg, mas a de demonstrar que quando a razão se lança para fora dos limites da experiência objetiva pode explicar qualquer coisa de forma coerente, até mesmo uma fantasmagoria como a de Swedenborg, aparentando-a a qualquer outro sistema metafísico, embora para isso seja necessário buscar a coerência racional em meio a quimeras e monstros produzidos pela mente de Swedenborg.

Kant busca demonstrar, por conseguinte, que dada a natureza imaterial dos espíritos, a percepção dos espíritos, bem como a dos objetos espirituais, isto é, a percepção de corpos espirituais, longe de ser uma contradição, pode ter uma explicação metafísica. Embora não se possa afirmar a existência de um mundo espiritual, pode-se especular sobre ele, justificado não em cada uma das várias versões do mesmo, pois são em grande parte inconsistentes entre si, mas na constatação de que essas se repetem e o filósofo pode ser compelido “[...] a não ousar negar inteiramente toda a verdade nas histórias de espíritos, [...] e, embora, possam ser colocadas em dúvida individualmente, ainda assim não há razão para que, dado seu conjunto, delas não derive alguma credibilidade”.42

Dessa forma, Kant procede a uma explicação da possibilidade, ao aceitar algumas das descrições de Swedenborg, de seres espirituais serem representados, percebidos pela mente humana e mesmo pelos próprios espíritos. Esse é um problema que deve enfrentar uma vez que percepção e representação pressupõem propriedades próprias aos corpos e não aos seres imateriais. Como seria possível, portanto, a comunicação entre Swedenborg e os espíritos, já que estes não são dotados de corpos e de meio material? Nenhuma representação ou percepção dos mesmos seria possível, os sons, por exemplo, não seriam emitidos e não haveria um “meio espiritual” através do qual o “som espiritual” se propagaria. Além disso, os corpos espirituais não seriam vistos, pois não haveria um meio para se propagar a luz e esta, se houvesse, não seria por eles refletida. A resposta, como vimos mais acima, está no sentido interno de Swedenborg.

Embora a presença dos espíritos atinja apenas seu sentido interno, este suscita nele a aparência deles como fora dele e na verdade sob uma figura humana. A linguagem dos espíritos é uma comunicação imediata das ideias, mas ela sempre está ligada à aparência daquela linguagem que ele fala em geral e é representada como fora dele. Um espírito lê na memória de um outro espírito as representações que este tem nela com clareza. Assim os espíritos veem em Schwedenberg as representações que ele tem deste mundo, com uma intuição tão clara que eles mesmos se enganam com isso e frequentemente imaginam ver imediatamente as coisas, o que é, contudo, impossível, pois nenhum espírito puro tem a mínima sensação do mundo corporal; eles tampouco podem ter uma representação disso através do comércio com outras almas dos vivos, porque o âmago destas não está aberto, isto é, seu sentido interno só contém representações obscuras.43

Em relação ao seu pertencimento a uma sociedade de seres racionais liberados do corpo, Swedenborg estaria, mesmo como pessoa, em comunicação com o mundo espiritual; e muitas das ideias que os espíritos têm e compartilham, assim como aquelas que os humanos acreditam nascerem de suas almas, nada mais são que parte de um processo de comunicação e mútua influência permanente entre elementos espirituais e almas, o que implica consequências de ações nos dois mundos. Essa sociedade, por ser estabelecida naturalmente em mútua ação e reação entre seus indivíduos e os homens, determina que aquilo que é pensado pelos espíritos não tenha sua origem nos mesmos, nem tampouco todos os pensamentos e volições dos quais a alma humana se julga a sede e causa, sejam por esta produzidos. Frequentemente, explica Kant, para Swedenborg “[...] cada alma humana tem já nesta vida sua posição no mundo dos espíritos e pertence a uma certa sociedade, que sempre corresponde a seu estado interno em termos do verdadeiro e do bom, isto é, do entendimento e da vontade”.44 Nesse sentido, é o pertencimento a essa sociedade, a parte de moral e conhecimento que com ela compartilha, que lhe define a essência, seu sentido e estado interno. Isso porque um homem bom não pode pertencer a uma sociedade de espíritos maus, bem como estes não podem ter acesso à alma de um homem bom. Agora, se todas as partes do corpo são definidas nas suas relações entre si segundo leis materiais, “[...] na medida em que é mantido pelo espírito que nele vive, seus diversos membros e suas funções possuem um valor designativo para aquelas forças da alma de cuja efetivação eles têm sua forma, sua atividade e sua duração”.45 Assim como todas as coisas visíveis, aquelas dotadas de alma “[...] têm, como dito, um significado como coisas, o que é pouco, e um outro como sinais, o que é mais”.46 O que Kant aventa como hipótese, a partir dos relatos de Swendenborg e na tentativa de dar cabo dos processos e fenômenos de comunicação entre espíritos e almas humanas, é seu caráter simbólico imagético. Assim, espíritos são capazes de representarem-se uns aos outros sob aparência de figuras extensas, com corpos, e representarem mutuamente um mundo que em tudo significa, ou simboliza, aquele percebido materialmente “[...] apesar de causarem mesmo assim uma ilusão do sentido tão clara e duradoura que é idêntica à sensação efetiva de tais objetos”.47 Dessa forma, se por um lado é impossível que espíritos tenham corpos e percepção sensível, por outro, do fato de estarem em contato com as representações do sentido interno e imaginação do homem, podem criar esses mundos e corpos simbólicos com os quais interagem e por meio dos quais se representam a si mesmos e aos humanos.

O segredo desse processo foi descrito antes na primeira parte dogmática, em analogia ao esquema do dispositivo de projeção da lanterna mágica que, por sua vez, como observamos, é um desenvolvimento de um esquema óptico mais antigo e suficientemente fixado na literatura científica e filosófica há pelo menos dois séculos. Referimo-nos aqui ao esquema da perspectiva artificialis, que se baseia na identidade entre ponto de vista e ponto de fuga, perspectiva de um olho único e esquema piramidal com base quadrangular de projeção, amplamente descrito em textos e tratados de óptica e pintura, como por exemplo o Da pintura, de Leon Battista Alberti, de 1436. Não podemos esquecer a menção à Dióptrica, de Descartes, na qual se descreve a experiência com o olho de boi e a câmera escura, e de como, pressionando ou relaxando a lente ocular por onde entram os feixes de luz, a projeção da imagem – seu focus imaginarius, para recuperar o termo usado por Kant – varia na sua posição, mas no interior do homem. No caso da descrição de Kant, um passo além nesse esquema é dado: o focus imaginarius é projetado para o exterior, ou seja, a imagem formada no sentido interior, podemos dizer, é simplesmente percebida como formada fora do observador, no lugar onde naturalmente se formam imagens que impressionam nossos sentidos do exterior.

Ora, assim como no sonho, um mundo plausível é criado pela alma e nele vivemos experiências individuais, privadas, e, ao despertarmos, temos apenas a memória e a descrição para compartilhar; no mundo daqueles que projetam essas imagens para fora de si, que as veem externas a si, se vive uma espécie de sonho acordado, mas mesmo os que têm tal tipo de experiência podem diferenciar essas visões e experiências daquelas advindas das impressões produzidas pelo mundo externo, sobretudo quando a vigília se enfraquece no momento do sono e os sentidos começam a se fechar para o mundo exterior. Nesse momento vê-se a diferença entre os dois tipos de imagem, isto é, de representação: uma produzida no interior, que se torna mais viva, e outra das impressões advindas do exterior, que se enfraquecem. Assim, a depender do estado de vigília, prevalece, em termos de concretude, de tangibilidade, um tipo de imagem. No entanto, quanto aos visionários, os que veem espíritos, e aqueles que sofrem de uma irritação nervosa, de um desequilíbrio nervoso que afeta sua imaginação e sua percepção, eles não conseguem definir, ou diferenciar, os tipos de fenômenos visuais, ou mesmo auditivos, isto é, não são capazes de saber se são produzidos pela imaginação ou pelo mundo material exterior.

A consequência é que, como argumenta Kant, não é possível diferenciar (caso aceitemos os testemunhos das experiências espirituais dos sonhadores dos sentidos) visionários de loucos.48 Nos primeiros há uma abertura dos sentidos que permite ao visionário estar mais sensível às trocas com o mundo dos espíritos e viver entre dois mundos. Os espíritos se apropriam das imagens e memórias das almas e, ao mesmo tempo, transmitem, a partir desse material imaginário por eles apropriado, imagens de si mesmos às almas, aos outros homens e, portanto, também aos visionários, mas também entre si: os espíritos veem, ouvem e sentem os outros espíritos e o mundo espiritual, ou seja, experimentam o mundo espiritual como um mundo fenomênico também por meio de uma fantasia compartilhada. Não há, nesse sentido, nenhuma representação direta, tudo são símbolos, imagens utilizadas para passar significados.

Cabe aqui perguntar: se o espírito experimenta apenas símbolos, cujas fontes são as representações produzidas nas almas humanas, como diferenciar, portanto, imagens produzidas simplesmente pela incapacidade patológica de manter o focus imaginarius internamente daquelas formadas pela impressão de estímulos do mundo espiritual? A resposta é: não se pode. Por ser a experiência espiritual, em termos de sua manifestação, da mesma ordem daquela do doente mental, os supostos videntes de espíritos devem ser tratados como atingidos por doença dos nervos. As visões dos doentes dos nervos e dos videntes não se diferenciam em termos cognitivos, mas apenas em termos de possibilidade ontológica.

Evidentemente, essa diferença esbarra na impossibilidade de se afirmar a existência, ou não, do ser espiritual. Suas representações, portanto, restam puramente especulativas e mesmo ficcionais. Porém, uma ficção com função heurística, isto é, que demonstra os limites da razão que a produziu. A ficção heurística teria seu caráter pragmático e quase pedagógico ressaltado por apresentar a inconsistência da teoria metafísica construída pelo próprio Kant para explicar as fantasmagorias do visionário Swedenborg. Kant exemplifica com o caso Swedenborg uma má teoria dos espíritos, absurda, quimérica, e assim por diante, mas reconhece que a essência dessa teoria, a ideia de espírito, por ser conforme uma construção metafísica, compromete essa própria construção, pois uma fantasia e um raciocínio se equivaleriam quanto ao valor epistêmico. Em outros termos, o caráter pedagógico do texto de Kant reside na demonstração de que conhecer algo depende de fundamentar as possibilidades racionais na experiência empírica.49

O problema das experiências espirituais é que elas são confusas e sua legitimação se encontra apenas nos protocolos verbais que nascem da confrontação dos diversos testemunhos de diferentes pessoas. É possível extrair dessa confrontação um sentido definido de espírito e, posteriormente, aplicá-lo a diversos casos com o intuito de verificar quais se adequam ao sentido definido. Se não é possível demonstrar a realidade deste sentido, também não é possível dizer que é falso. Logo, porque os diversos relatos sobre espíritos são múltiplos e se repetem num reforço de confirmação mútua, eles implicam uma certa objetividade, embora esta não seja sempre apodítica e se dê de forma singular, isto é, de modo privado. O espírito é, portanto, uma hipótese, cujo valor é prático/moral, isto é, seu valor reside na ideia de uma comunidade moral superior e racional, transcendente, mas não transcendental, e, claramente, não a priori, mas necessária, dado o sentimento de esperança do qual nasce. A fictio heuristica consiste, portanto, em se admitir a universalidade dos valores morais, a partir da crença justificada pela fé moral na vida eterna, de uma comunidade de seres racionais dividida em espíritos e almas que, pela essência mesma de suas naturezas, não podem não compartilhar dos valores morais derivados da necessidade moral prática que se infere da existência dos espíritos, quer dizer, da vida no além. “Um dado moral de fato: o sentimento moral, pode validar a hipótese de trabalho.”50 Em outros termos, pode justificar a investigação e a hipótese metafísica dos espíritos.

Sentimentos morais são traduzidos em forte senso de justiça, de lei, em benevolência e assim por diante. São observáveis, embora não no mesmo sentido em que evidências factuais sensíveis o são; sentimentos morais são observáveis como necessários em seres de razão.51 O sentimento moral é, portanto, necessariamente universal e, em termos puramente heurísticos, se vê confirmado na comunhão com os espíritos. É essa comunhão que “explicaria”, embora apenas hipoteticamente, por exemplo, a exigência prática de distanciamento do egoísmo identificado ao individualismo, ou seja, explicaria a exigência de necessidade universal dos sentimentos morais, exigência justificada pelo sentimento de uma natureza humana moral universal que sobrevive à pessoa, que a transcende.

IV

Retrospectivamente, somado à evidência de uma grande quantidade de testemunhos de comunicação com os espíritos, Kant conclui que i) embora não haja objetividade em cada uma dessas experiências e muitas vezes haja até mesmo absurdos, no seu conjunto, encontramos dois elementos comuns e plausíveis: a crença na vida eterna e a necessidade moral dessa crença; ii) a crença na vida eterna, por sua vez, explicaria, a crença no espírito imaterial, uno, contínuo, indivisível e sua necessária razão prática pura, por ser o princípio racional e agente universal, e dele, portanto, emanar o livre-arbítrio e, finalmente, iii) é necessária a participação da alma, do sujeito, nessa comunidade racional e moral. A esses três pontos se associa o esquema do dispositivo visual projetivo proposto por Kant que estaria na origem do conjunto indiferenciado das manifestações, dos espíritos e das alucinações. Em suma, tal esquema seria estrutural no regime onírico que rege os estados do visionário e da enfermidade nervosa de maneira indiferenciada. As condições necessárias para a crença nos espíritos, embora Kant não as sustente, estão postas, e o esquema projetivo, mais do que ilustrar o funcionamento da fantasia, reflete em seu esquematismo as consequências da fé moral na vida eterna.

Se, de um lado, é certo que a conclusão filosófica quanto ao sistema de Swedenborg, e aos relatos de testemunhos de casos de aparições e fenômenos espirituais em geral, devem ser entendidos como produtos de doença mental ou charlatanice, de outro, reside na indeterminação ontológica da realidade espiritual, tal como apresentada na metafísica dogmática inventada por Kant, a impossibilidade da negação do mundo espiritual, bem como a impossibilidade da sua afirmação.

Alguns aspectos importantes da exposição da impossibilidade cognitiva e da indeterminação ontológica dos espíritos podem ser entendidos a partir do contexto intelectual e cultural em que o texto de Kant se insere. Dado ter sido, este, precedido de três anos de uma resposta à carta que lhe fora enviada pela jovem aristocrata de dezoito anos, Charlotte von Knobloch52, na qual ela indaga ao professor de filosofia o que pensa este acerca dos poderes espirituais de Swedenborg, não podemos descartar a possibilidade de que o motivo pelo qual Kant tenha se dedicado a ler a obra do visionário e produzido um texto com intuito de demonstrar tanto a fantasia que rege a metafísica dogmática, quanto aquela em que baseia as teorias sobre espíritos, seja, justamente, um motivo pedagógico. Em outros termos, Kant, ao esboçar uma teoria metafísica dos espíritos e por meio dela explicar os fenômenos descritos por Swedenborg, demonstra tanto os limites da razão, quanto a patologia do visionário. Mas também a importância de se manter a fé moral em uma vida eterna. Para tanto, não se priva de efeitos retóricos, pois estes reforçam os propósitos demonstrativos do texto de alertar o leitor para o perigo de superstições e sistemas obscuros, que proliferam até mesmo nas esferas mais educadas da sociedade.53

Embora o tipo de pessoa seduzida e influenciada por tais superstições seja identificado, em grande parte, na literatura médica e filosófica contemporânea de Kant, às mulheres, sobretudo as grávidas, aos jovens, aos melancólicos, aos ingênuos e primitivos, a própria classe dos doutos não está isenta de sua influência, tamanha sua disseminação, e o próprio Kant admite no texto ter sido tomado de curiosidade acerca dos espíritos, dados os relatos “confiáveis” sobre as proezas de Swedenborg serem bastante impressionantes, mas adverte que, como já vimos, toda curiosidade nesse sentido é, em última instância, movida pela crença na vida eterna e nesse sentido, distorce a própria razão. Portanto, o texto kantiano se insere no conjunto de publicações que à época busca identificar as causas e prevenir os efeitos do que será compreendida como uma verdadeira epidemia de superstição, cujos sintomas são as perturbações dos nervos. No entanto, à medida que Kant lança mão em seu texto de certos recursos estilísticos que se encontram comumente nas publicações não céticas acerca dos espíritos e das aparições, a ponto de referir-se diretamente ao público por meio de fórmulas retóricas, por vezes extravagantes54, acaba por produzir, à sua revelia, um efeito contrário ao esperado.

A título de exemplo, é notável o fato de o ensaio de Kant ter influenciado o teor metafísico dogmático55 presente em obras como a do ocultista e místico Karl von Eckartshausen (1752-1803), que foi publicada em três volumes, em 1790, sob o título Revelações sobre a magia a partir de experiências comprovadas das ciências filosóficas ocultas de raros segredos da natureza. Embora não haja uma referência explícita à obra de Kant de 1766, a distinção entre o espiritual e o material e a tipologia das manifestações espirituais de Eckartshausen se aproximam bastante daquelas descritas pelo filósofo de Königsberg. Para Eckartshausen existem três tipos de aparições de espíritos. O primeiro tipo é uma ilusão de óptica, produzida por um dispositivo técnico, portanto puramente artificial; o segundo tipo é produzido pela imaginação afetada por uma patologia dos nervos e projeta uma imagem produzida pelo sentido interno para o mundo exterior; o terceiro tipo de aparição é o verdadeiro, atinge o sentido interno e é projetado para os sentidos corporais, isto é, como uma imagem produzida por uma causa externa.56 Cabe insistir que Kant não sustenta essa última possibilidade como verdadeira, porém não afirma que seja possível negá-la com base numa experiência objetiva. O que gera estranheza nas definições de Eckartshausen é a ilusão produzida por uma lanterna mágica ou dispositivo semelhante ser considerada um tipo de aparição. Esse é o mesmo tipo de dispositivo a que se refere o esquema visual utilizado por Kant para exibir o funcionamento da ilusão produzida pela imaginação, bem como aquele da possível imagem produzida por influência espiritual. Como observa Andriopoulos:

Segundo Eckartshausen, o segundo tipo de aparição, o “falso”, surge como um produto puramente subjetivo da imaginação, ao passo que a aparição “verdadeira” é baseada numa influência espiritual objetiva. Mas os dois modelos são marcados por uma afinidade estrutural com a simulação de um espectro por meio de uma lanterna mágica, uma vez que pressupõem projetar uma imagem mental interna no mundo externo.57

Essa semelhança entre os tipos de aparição, baseada no fato de possuírem o mesmo esquema quanto à produção da imagem, ou da representação, tem por fundamento uma relação da tipologia apresentada na literatura cética, e mesmo naquela que defende a realidade dos espíritos, com a produção técnica, artificial das imagens espectrais. Em fins do século dezoito, as aparições espectrais tomaram a forma de espetáculos, algumas vezes com um público mais reservado, outras com uma plateia não iniciada. Por vezes as aparições por meio de dispositivos técnicos, estruturalmente semelhantes ao esquema óptico mencionado por Kant, se limitam a reforçar os efeitos de crença no fantástico, isto é, se prestam ao charlatanismo excitando a imaginação de um público já tendente à superstição. Todavia, esse não é sempre o caso, pois a fantasmagoria, como era denominado o tipo de espetáculo produzido pelos projetores fantascópios58, ultrapassa os nichos esotéricos para se espalhar pelos teatros, ou mesmo serem usados em demonstrações científicas de experimentos ópticos para um público curioso.59

Nesse sentido, o que é da ordem do sonho, isto é, de um mundo privado, singular, fechado ao mundo externo e sensível, segundo a tese kantiana, passa a ser compartilhado coletivamente. Como nas experiências místicas, ou nas alucinações coletivas das crônicas medievais, nas quais espectros e monstros surgem da escuridão para assombrar os crentes, no século das luzes, no coração da Europa civilizada, os fantasmas e assombrações retornam, por meio da técnica, nas fantasmagorias. Mas não somente, também a literatura é invadida por espectros, seja nos tratados esotéricos, nos panfletos, textos e palestras dos filósofos da natureza que combatem os revenants, seja na publicação cada vez mais crescente dos romances de fantasmas, na Alemanha, França e Inglaterra sobretudo, aquele tipo de literatura que desembocará no gênero do romance gótico e, posteriormente, em fins do século seguinte no horror.

Em fins do século dezoito, o mercado de livros populares de gênero: góticos, de aventura e assim por diante, cresce exponencialmente, mergulhando populações inteiras no sonho coletivo dos seus personagens. “Enquanto os romances em língua alemã lançados entre 1750 e 1760 totalizaram 73, o número equivalente da década de 1790 subiu para a espantosa soma de 1623 volumes.”60 Os espectros que habitam os romances góticos, bem como os espetáculos populares de aparições tornam-se portadores de patologias sociais ligadas à sensibilidade exacerbada de certos públicos compostos, eminentemente, por jovens e mulheres. Estes seriam os mais afetados pelos “furores de leitura” e “vícios em leitura”61, cuja sintomatologia se caracteriza por uma leitura rápida, constante, superficial e em quantidade. Como ilustra A arte de ler livros do kantiano Johann Adam Bergk, de 1799, “[...]os romances góticos destroem o senso de realidade do leitor.”62

[...] os romances de fantasmas mantêm nossas expectativas em suspenso; uma impossibilidade após outra torna-se real, uma estranha aparição segue-se a outra, e aquilo que os seres humanos não conseguem realizar é praticado por fantasmas; por conseguinte, consideramos que nada é impossível.63

Nove anos antes, um Kant já bastante ciente dos perigos que a literatura sobre espíritos produz, afirmava que o vício em leitura era o portador de uma doença e do “veneno miasmático que a produz”.64 Como cura, “Kant recomenda uma mudança nos currículos escolares.” A proposta era de reduzir a carga de leitura em disciplinas diferentes, optando pelo estudo e aprendizagem “rigorosa” de poucas obras fundamentais. O ponto aqui é canalizar o desejo de leitura para um propósito, um fim nobre, afastando o leitor do hábito da distração e do devaneio.65

É significativa a semelhança que teria a preocupação de Kant e seus contemporâneos com o surgimento em germe do que podemos identificar com o que Adorno e Horkheimer iriam definir como a barbárie da indústria cultural produzida nos Estados Unidos dos anos quarenta do século vinte. No cerne desta indústria encontra-se o esquematismo da produção cultural de massa como mimesis grotesca do esquematismo kantiano. Já é bem conhecida e analisada a comparação de Adorno e Horkheimer entre esquematismo kantiano e esquematismo da produção da indústria cultural. No entanto, cabe lembrar aqui a sua formulação: “A função que o esquematismo kantiano ainda atribuía ao sujeito, a saber, referir de antemão a multiplicidade sensível aos conceitos fundamentais, é tomada ao sujeito pela indústria.” E, mais adiante, concluem:

A arte sem sonho destinada ao povo realiza aquele idealismo sonhador que ia longe demais para o idealismo crítico. Tudo vem da consciência, em Malebranche e Berkeley da consciência de Deus; na arte para as massas, da consciência terrena das equipes de produção.66

Talvez, o “idealismo sonhador” de que falam Adorno e Horkheimer seja, em um certo sentido, muito próximo daquele analisado por Kant no texto sobre os Sonhos do visionário. Embora as referências apontadas pelos dois frankfurtianos, deste tipo de idealismo, sejam Malebranche e Berkeley, enquanto para Kant sejam Crusius e Wolf, o regime onírico é o mesmo. A fórmula de uma arte sem sonho que realiza o idealismo sonhador, isto é, o sonho da transcendência pelo consumo, pode ser encontrada, em germe, na arte do espetáculo fantasmagórico, bem como naquela dos romances populares de fantasmas. Se circunscrevermos o esquematismo ao esquema óptico da projeção do focus imaginarius no ensaio de 1766, veremos que o mesmo se associa perfeitamente ao modelo da projeção espectral do sonho coletivo, no qual os espectros da superstição banidos pelas luzes da razão retornam por meio dos dispositivos técnico-científicos e da literatura, ou seja, retornam por intermédio de dois pilares das luzes: o conhecimento tecno/científico e as letras.

V

Nisto que poderíamos entender como o prelúdio fantasmático da indústria cultural, confundindo-se com os processos do conhecimento e determinado pelas exigências da fé moral na vida eterna, o regime onírico reinventa a realidade a cada sonho reproduzido tecnicamente e se estabelece como forma de vida desejável, livre dos constrangimentos da razão. A realidade reinventada a cada sonho é sempre a repetição do regime onírico e a racionalidade reduz-se às regras do trabalho do sonho. Este regime onírico, longe de ser o da produtividade poética, pensada desde pelo menos o surrealismo e o movimento Dada, como força coletiva liberadora de toda experiência, tem por finalidade o constrangimento da repetição da economia libidinal neurótica. Não é por acaso que as técnicas surrealistas foram absorvidas na publicidade. Quando a balança da razão pende para onde pesa a esperança, o resultado é o retorno dos espectros, seja na forma da patologia das aparições, da lógica da reprodutibilidade da mercadoria, ou da técnica transformada em sonho. A ideia é que não há mortos, não há resto, ruínas, tudo é reatualizado, reaproveitado, seja literalmente, seja como versão ideal daquilo que já foi ou será, pouco importa a ordem temporal tendo em vista que é pura invenção. É nesse sentido que Mark Fisher pode afirmar que o realismo capitalista não necessita da propaganda, mas também sua própria estrutura informe, imponderável e omnipresente (esquematismo?) não se confundiria com a publicidade. O realismo capitalista seria esse regime de projeções e consumo de imagens que obedece ao trabalho do sonho. “[...] agora, o fato de o capitalismo ter colonizado até os sonhos da população é tão amplamente aceito que nem vale a pena comentar.”67

De fato, como os diagnósticos da epidemia de espectros do início da cultura de massa no século dezoito apontam, uma vez que sua alma é capturada pelas sensações e sentimentos produzidos nos romances góticos, por exemplo, você começará a ver fantasmas. Não que antes da indústria cultural, ou do realismo capitalista não houvesse a coabitação, a coexistência de espectros e humanos. O problema consiste, justamente, na operação de expulsar os espectros para as zonas escuras da loucura, da doença mental, da superstição. Os espectros são revenants. Eles retornam como o recalcado, na forma do desejo projetado como desejo do outro. A colonização capitalista dos sonhos não é apenas temática, derivada do repositório do imaginário coletivo, ela é estrutural, e, podemos dizer, é o fixar da fé moral na vida eterna, na forma do esquema cognitivo da fantasmagoria. A colonização capitalista dos sonhos reproduz e determina o esquema cognitivo da alma humana, projetando para fora dos sentidos suas imagens que são recuperadas pela nossa expectativa sensível de nos vermos representados naquilo que consumimos, naquilo que produzimos na forma de aparições. Imagens sempre externas, do outro fora de nós, mas um outro familiar, vivo e, no entanto, atemporal, desprovido de materialidade, mas presentificado, alheio, mas agente.

Os espectros, produtos do regime onírico, não se limitam a ser uma representação dos desejos projetados e nulificados em suas forças disruptivas pela publicidade e o consumo. Eles não são metáforas, ou alegorias desses desejos. Ao contrário, eles são as únicas manifestações dos desejos, como afirma Mike Fisher: “A descrição mais gótica do capital é também a mais precisa.”68 Para sustentar essa afirmação, Fischer recupera algumas das metáforas com as quais a partir do século dezenove tentou-se nomear o capital: vampiro insaciável, epidemia zumbi e assim por diante. Talvez a diferença do diagnóstico de Fisher surja exatamente ao identificar esses espectros com o produto do trabalho do sonho realizado pela “elite política” de [...] “obsequiosamente representar a nós mesmos nossos próprios desejos denegados, como se não tivessem nada a ver conosco.”69 A noção de realismo capitalista, portanto, parece ser mais propriamente a de uma “atmosfera abrangente” que, segundo Fisher, condiciona todas as formas de vida “[...] agindo como uma espécie de barreira invisível, bloqueando o pensamento e a ação.”70 Podemos traduzir essa atmosfera, seguindo a observação de Kant, como tendo raízes no desejo fantasmático da eternidade, a perpetuação de si expressa na fé moral na vida eterna que direciona nosso esquema cognitivo replicado no esquema técnico da indústria cultural. “A ideia de que o mundo que experimentamos é uma ilusão solipsista projetada no interior da nossa mente, mais consola do que perturba, uma vez que está de acordo com nossas fantasias infantis de onipotência.”71 Dessa maneira, não é uma classe política, ou uma elite que estaria por traz do realismo capitalista como o operador do fantascópio estava atrás do maquinário dos efeitos da fantasmagoria, ou o escritor por traz dos fantasmas e demônios góticos, mas antes seria a própria fantasmagoria a comandar o espetáculo em um presente contínuo.

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MORPURGO-TAGLIABUE, Guido. “Introduzione”. In: KANT, Immanuel. I sogni di un visionario spiegati coi sogni della metafisica. Tradução de Maria Venturini. Milão: Biblioteca Universale Rizzoli, 1995.

* Walter Menon é professor do Departamento de Filosofia da UFMG
* O presente texto é a versão ampliada do resultado da minha fala no evento da ABRE em 2021, publicado na revista Discurso. O mesmo tema foi apresentado no quadro do projeto KANTINSA (Kant in South America) na Universidade da Catania, Itália, em março de 2022.

1 Para entender o lugar que ocupa o texto sobre sonhos de um visionário dentro das obras de Kant e o contexto em que foi redigido, ver a introdução de Vinicius Berlendis de Figueiredo à publicação da edição brasileira dos Escritos pré-críticos de Kant (2005). Ver também o primeiro capítulo de ALLISON, 2015.
2 Nos afastamos da interpretação psicanalítica de Monique David-Ménard do ensaio de Kant levada a cabo em A loucura na razão pura. Kant leitor de Swedenborg (1996). No entanto, chamamos atenção para a análise realizada pela autora do texto de 1766, quando esta demonstra a importância das distinções e da tipologia, pensadas por Kant nesse texto, quanto às questões ligadas ao objeto, aos limites da razão e das antinomias na Crítica da razão pura. No que concerne aos objetivos do presente artigo, no entanto, vale a pena ressaltar, seguimos em alguns pontos a interpretação da autora, isto é, no que concerne à centralidade da ideia de loucura na formulação da crítica à razão especulativa.
3 KANT, 2005, p. 146.
4 KANT, 2005, p. 147.
5 KANT, 2005, p. 150.
6 KANT, 2005, p. 150.
7 KANT, 2005, p. 150.
8 KANT, 2005, p. 150.
9 KANT, 2005, p. 152.
10 KANT, 2005, p. 152.
11 KANT, 2005, p. 157.
12 KANT, 2005, p. 158.
13 KANT, 2005, p. 158.
14 KANT, 2005, p. 158.
15 KANT, 2005, p. 162.
16 KANT, 2005, p. 162.
17 KANT, 2005, p. 162.
18 KANT, 2005, p. 164.
19 KANT, 2005, p. 166.
20 KANT, 2005, p. 166.
21 KANT, 2005, p. 168
22 KANT, 2005, p. 169.
23 KANT, 2005, p. 170.
24 KANT, 2005, p. 170.
25 KANT, 2005, p. 172.
26 KANT, 2005, p. 173.
27 KANT, 2005, p. 173.
28 KANT, 2005, p. 174.
29 KANT, 2005, p. 178.
30 KANT, 2005, p. 178.
31 KANT, 2005, p. 179.
32 KANT, 2005, p. 179
33 KANT, 2005, p. 181.
34 KANT, 2005, p. 186.
35 KANT, 2005, p. 187.
36 KANT, 2005, p. 189.
37 KANT, 2005, p. 194.
38 KANT, 2005, p. 200.
39 KANT, 2005, p. 185.
40 KANT, 2005, p. 185-186.
41 Arcana coelestia, publicada em oito volumes, dois quais Kant teria lido os cinco primeiros que foram publicados em Londres entre 1747 e 1758, sendo os outros três publicados ainda em Londres em 1796. (Morpurgo-Tagliabue, 1995, p. 27). Fizemos a escolha por manter a grafia original do nome do visionário, embora no texto de Kant esta aparece como “Swedenberg”. Jorge Luis Borges, em uma conferência dedicada a Swedenborg – uma das cinco conferências proferidas na Universidad de Belgrano de Buenos Aires e publicada em 1979 – nos oferece uma síntese das descrições de Swedenborg do mundo dos espíritos. O filósofo naturalista e místico Emanuel Swedenborg (1688-1772) foi um estudioso, cosmopolita, que se estabeleceu na Inglaterra após seu doutorado em filosofia em Upsala, e teria realizado uma série de viagens pela Europa. Conheceu Halley e teve, provavelmente, contato com Newton. Realizou trabalhos em astronomia e física adotando a teoria mecanicista da natureza. Foi professor no Colégio Real de Minas, na Suécia, e foi membro da Academia de Ciência de Estocolmo, vindo a escrever inúmeros tratados de matemática, mineralogia e ciências aplicadas. No entanto, como conta Borges, “Em Londres um desconhecido que o havia seguido pela rua entrou em sua casa e lhe disse que era Jesus, que a Igreja estava decaindo – como a judaica, quando surgiu Jesus Cristo – e que ele tinha o dever de renovar a Igreja, criando uma terceira igreja, a de Jerusalém”. Continua Borges mais adiante: “Pois bem. Jesus lhe disse que o encarregava da missão de renovar a Igreja e que lhe seria permitido visitar o outro mundo, o mundo dos espíritos, com seus inumeráveis céus e infernos.” (Borges, 1987, p. 22-23). A partir de então, embora não tenha sido fator de renovação da igreja, Swedenborg dedicou sua vida a descrever esse mundo espiritual que lhe fora revelado pelo próprio Deus, o que levou Kant, em seu ensaio, a alcunhá-lo de arquifantasista.
42 KANT, 2005, p. 188.
43 KANT, 2005, p. 203.
44 KANT, 2005, p. 203.
45 KANT, 2005, p. 205.
46 KANT, 2005, p. 205.
47 KANT, 2005, p. 200.
48 “A investigação contida nos Sonhos apresenta o meio pelo qual busca-se conhecer os seres supra-sensíveis, porém, o próprio Kant salienta que tais seres são conhecidos por meio de inferências, ao contrário do que acontece com os objetos reais. Em outras palavras, para buscar aquilo que transcende seria necessária a utilização das estruturas espaço-temporais, que são utilizadas para intuir os objetos sensíveis. A utilização do espaço e tempo para abarcar os seres do universo supra-sensível e transportá-los para o campo sensível tornariam estes passíveis de conhecimento. Mas tal utilização arrasta o indivíduo à confusão daquilo que é real com o irreal, construindo quimeras e fantasias (como é o caso dos espíritos), pois o sujeito ao ‘intuir’ os seres extra-sensíveis através do espaço e do tempo não consegue mais distinguir o que pode ou não conhecer” (GIROTTI, 2009, p. 169).
49 MORPURGO-TAGLIABUE, 1995, p. 46.
50 MORPURGO-TAGLIABUE, 1995, p. 53.
51 MORPURGO-TAGLIABUE, 1995, p. 50.
52 “A cultura da mulher estava nas prerrogativas das famílias aristocráticas desde quando tomaram como modelo os costumes das cortes tanto da Prússia, quanto da França.” (MORPURGO-TAGLIABUE, 1995, p. 23). No entanto, não há de se estranhar que a correspondente de Kant, embora fosse parte dessa classe educada, pudesse nutrir algum interesse por videntes e fenômenos espirituais, tendo em vista a popularidade que os mesmos adquirem a partir da segunda metade do século dezoito. A publicação das Observações sobre o belo e o sublime, em 1764, rendeu a Kant uma certa notoriedade e popularidade. “Após o que, não é estranho que, ao circular as notícias sobre as virtudes visionárias do sueco Swedenborg, alguém deste público procurasse o concidadão Kant para dele obter um juízo acerca das tais virtudes.” (MORPURGO-TAGLIABUE, 1995, p. 16).
53 No entanto, como afirma Monique David-Ménard, “Dar um estatuto ao estilo, polêmico, dos Sonhos de um vidente de espíritos explicados por sonhos da metafísica é mostrar a convergência entre um tema tratado – perturbador parentesco entre ocultismo e metafísica –, em relação ao qual o escritor hesita, e um modo de escrita que distribui essa hesitação pelos diversos ‘outros’ a que a cena do livro se refere: os filósofos que serão seus censores, os leitores a serem protegidos dos perigos ligados ao tema abordado. Mas o ato mesmo de escrita permite ainda a Kant relacionar essa polêmica aparentemente externa à sua própria divisão; e é isso que manifestam suas inconsequências assumidas. O confronto com a loucura ainda produz efeitos sobre os raciocínios propriamente ditos.” (DAVID-MÉNARD, 1996, p. 93). Essa ambiguidade de que fala a autora, trará como uma de suas consequências a possibilidade do uso do texto kantiano no sentido oposto ao da defesa de um ceticismo com relação às teses espíritas.
54 “O gosto por aquilo que era o whimsical favorece em Kant o apreço pelo estilo espirituoso e mordente dos ensaístas ingleses. Traços vivazes, sarcásticos, não faltam tampouco nos escritos mais acadêmicos daqueles anos, escritos de lógica ou dialética. Os pensadores ingleses haviam adotado plenamente o que os doutos alemães denominavam a ‘maneira popular’, e se voltaram a um vasto público em revistas tais quais ‘Tatler’, ‘Spectator’, ‘London Journal’, ou o ‘Dublin Journal’, e mesmo Kant começou a colaborar ocasionalmente na revista cultural local de Koenigsberg. Aderiu, portanto, a esse estilo quase com um divertido empenho, por ser muito diverso do método expositivo escolástico, em duas obras daqueles anos singularíssimas em suas aparências mais literárias que filosóficas: o ensaio sobre o belo e o sublime e o ensaio sobre os Sonhos de um visionário.” (MORPURGO-TAGLIABUE, 1995, p. 11). O gosto pelo whimsical, fica claro na passagem em que Kant compara seu texto a um passeio pela coleção de um naturalista que só exibe ao público seus exemplares monstruosos, alertando as mulheres grávidas para o perigo da leitura do mesmo. (KANT, 2005, p. 208).
55 “A analogia paradoxal entre sonhos da razão e os sonhos da sensação desenvolve no discurso aquilo que o pensador da arquitetônica revela: uma filosofia dos espíritos leva quase ao mesmo tipo de hipótese e de representação quanto às relações entre mundo sensível e mundo inteligível que um filósofo alucinado do outro mundo.” (DAVID-MÉNARD, 1996, p. 97).
56 ANDRIOPOULOS, 2014, p. 40.
57 ANDRIOPOULOS, 2014, p. 40.
58 “Especialmente populares eram as fantasmagorias de Étienne-Gaspard Robertson, realizadas nas obscuras adegas subterrâneas de um antigo mosteiro de capuchinhos em Paris, acompanhadas pelos sons extraterrenos da harmônica de vidro de Benjamin Franklin.” (ANDRIOPOULOS, 2014, p. 35). Robertson (1763-1837), um misto de mágico e filósofo natural, de origem belga, assim como antes dele Paul Philidor (17??-1829), viajou pela Europa fazendo apresentações fantasmagóricas. Robertson usava um fantascópio, que nada mais era que uma lanterna mágica aperfeiçoada, com ‘placas de vidro móveis e montada sobre rodas’. O fantascópio, podia ampliar consideravelmente o alcance das projeções, causando efeitos impressionantes na plateia. A depender da distância entre a lanterna e o jogo de espelhos a projeção dos espectros em ‘nuvens’ de fumaça que preenchiam os espaços de adegas escuras, eram tomadas por verdadeiras aparições” (ANDRIOPOULOS, 2014, p. 36-37).
59 Notável, nesse sentido, é o caso das fantasmagorias de Pepper, em Londres, no século dezenove. John Henry Pepper (1821-1900), em 1862, adquire os direitos autorais da fantasmagoria do engenheiro Henry Dircks (1806-1873), “que no mesmo ano utiliza a invenção para a adaptação teatral de um conto de Charles Dickens O homem assombrado. A aparição do fantasma no conto, segundo Dickens, por ter um caráter alegórico, deveria ser representada no palco apenas pela escuridão. No entanto, com o uso do Pepper Ghost, como ficou conhecida a invenção de Dircks, o público pôde ver o fantasma em cena. O espetáculo foi apresentado no teatro do Royal Polytechnic Institution, na Regent Street, em Londres, sempre acompanhado de uma explicação técnica ao público sobre o funcionamento do Pepper Ghost. O objetivo era educar o público contra superstições e charlatães. Se, no entanto, a intenção era realmente alertar o público para a fraude da crença sobrenatural, já os resultados talvez não fossem como Pepper esperava. Pois, apesar, ou talvez por causa do sucesso da ilusão, seu público mostrou-se relutante em descartar suas crenças espiritualistas, e o meio que Pepper havia introduzido mostrou-se igualmente capaz de confirmar as crenças sobrenaturais do público. A ilusão de Pepper produziu fantasmas melhores e mais convincentes do que qualquer coisa que seu público pudesse esperar e, no processo, promoveu uma crença no espiritismo e no sobrenatural, [...]” (COVERLEY, 2020, p. 42). O ponto é saber qual a razão de as projeções fantasmagóricas, embora precedidas de uma explicação técnica de como eram produzidas, reforçarem as crenças do público nos espíritos. Aparentemente, a técnica e a ciência podiam “reproduzir” as aparições espectrais experimentadas nas séances, confirmando de “maneira objetiva”, científica as mesmas. Em outras palavras, se a prova da existência da vida eterna se encontra nas suas “manifestações”, ou seja, nas aparições, a causa “artificial” apenas reproduz “tecnicamente” a causa espiritual quanto ao efeito.
60 ANDRIOPOULOS, 2014, p. 104.
61 ANDRIOPOULOS, 2014, p. 104.
62 ANDRIOPOULOS, 2014, p. 106.
63 ANDRIOPOULOS, 2014, p. 106.
64 ANDRIOPOULOS, 2014, p. 105.
65 ANDRIOPOULOS, 2014, p. 105.
66 ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 117.
67 FISHER, 2020, p. 18.
68 FISHER, 2020, p. 28.
69 FISHER, 2020, p. 29.
70 FISHER, 2020, p. 33.
71 FISHER, 2020, p. 95.