Arte após o fim da natureza
Virginia Figueiredo

Para as minhas queridas amigas Simone e Flávia

Não são apenas as ciências naturais, e a cultura de massa que delas se alimenta, que estão registrando a deriva do mundo. Até mesmo a metafísica, notoriamente a mais etérea das especialidades filosóficas, começa a repercutir a inquietação generalizada.
Débora Danowski e Eduardo Viveiros de Castro1

Breve notícia biográfica sobre o artista2

Eduardo Kac nasceu no Rio de Janeiro em 1962. No começo dos anos 1980, criou uma série de performances de conteúdo político e de humor em espaços públicos como a Cinelândia e a Praia de Ipanema, no Rio de Janeiro, e nas escadarias da Biblioteca Mário de Andrade, em São Paulo. Em 1983, inventou a holopoesia, uma nova linguagem poética, linguagem verbal/visual que explora as flutuações formais, semânticas e perceptuais da palavra/imagem no espaço-tempo holográfico. A partir de 1986, Kac propôs e desenvolveu a arte da telepresença, baseada no deslocamento dos processos cognitivos e sensoriais do participante para o corpo de um telerrobô, que se encontra em outro espaço geograficamente remoto. Em 1997, o artista cunhou o termo “Bio Art”, iniciando o desenvolvimento dessa nova forma de arte com obras como seu coelho transgênico GFP Bunny (2000) e, entre outras, a História natural do enigma (2009), que lhe valeu o prêmio Golden Nica (na categoria “Arte híbrida”), prêmio de maior prestígio no campo dos media arts. Em fevereiro de 2016, Kac realiza um projeto ainda mais ousado, que consistiu na primeira performance artística efetuada no espaço sideral: o Inner Telescope. O Telescópio interior foi concebido no estúdio de Eduardo Kac, em Chicago, para flutuar no espaço, sem gravidade, e foi produzido pelo astronauta francês Thomas Pesquet, em órbita, a 400 km da Terra, a bordo de uma Estação Espacial, durante a missão Proxima, coordenada pelo Observatoire de l´Espace, laboratório cultural da Agência Espacial Francesa.

Desde 1989, Eduardo Kac está radicado nos EUA e, além de artista, crítico de arte, é professor do Departamento de Arte e Tecnologia no Art Institute of Chicago.

Apresentação da obra de arte

Antes de apresentar propriamente a obra de arte GFP Bunny, cuja sigla significa “Green Fluorescent Protein Bunny” (ou traduzindo: Coelhinho da proteína verde fosforescente), vou descrever, com a preciosa ajuda de Simone Osthoff3, um pouco do contexto da bioarte, no qual a obra se insere. Conforme nos relata a autora, o GFP Bunny, “a obra de arte transgênica mais famosa e controversa de Eduardo Kac [,] é a segunda [dentro] da sua Trilogia da criação, que começa com Genesis em 1999 [...] e é seguida pelo Oitavo dia em 2001”.4 Não terei tempo para me dedicar à Trilogia inteira. Vou abordar rapidamente a obra de 1999 e deixar de lado a de 2001. Genesis foi apresentada, pela primeira vez, em Linz na Áustria.5 Kac inventou um gene sintético de artista, obviamente inexistente na natureza. Esse gene foi criado por meio da tradução de um trecho em inglês do Velho Testamento para código Morse e depois do código Morse para DNA, de acordo com um código desenvolvido por Kac especialmente para essa obra (os traços do código Morse representavam a timina; os pontos, a citosina; o espaço entre as palavras, a adenina; e o espaço entre as letras, a guanina – assim, eram obtidos os quatro constituintes fundamentais do ácido desoxirribonucleico ou DNA, cujas combinações formam o alfabeto ou código genético). A sentença bíblica diz: “Deixe que o homem domine sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu e sobre todos os seres vivos que se movem na terra” (Gênese: 1, 28). O gene foi introduzido em bactérias, aplicadas, por sua vez, em placas de Petri. Na galeria de arte, as placas foram postas sobre uma caixa de luz ultravioleta, controlada por participantes remotos na rede. Ao acionar a luz UV, os espectadores virtuais causavam uma mutação do código genético e, assim, mudavam o texto contido no corpo das bactérias. Após a exposição, o gene foi lido de volta para o inglês, e o texto mutante publicado on-line na seção em inglês do site de Kac.

Numa resenha publicada na Leonardo Digital Reviews6, em outubro de 2001, por ocasião da instalação de Genesis na Galeria Julia Friedman, em Chicago, Osthoff descreveu Kac como um dos artistas “pioneiros a usar a biotecnologia como meio de fazer arte”, ao retirar essa técnica “do território exclusivo de laboratórios de ciências ou da ficção científica”. Ela exaltou a obra pelo seu “processo de tradução, codificação, mutação, e recuperação de informações inscritas na própria vida.” Retomando as palavras do artista, destacou um dos possíveis efeitos da obra, que seria o de revelar certa equivalência entre nossos processos biológicos e essas máquinas digitais que são os computadores: “Genesis explora a noção de que os processos biológicos são agora graváveis e programáveis, bem como [são] capazes de armazenar e processar dados de maneiras não muito diferentes dos computadores digitais”. Osthoff aponta ainda para as inúmeras e também inéditas questões que a obra desperta na “longa história da arte e da ciência, ao mesmo tempo que apresenta novos desafios para a crítica de arte”, chamando a nossa atenção para o fato de que “os processos moleculares se desenrolam em tempo real numa placa de Petri, exposta na galeria de arte”, transformando radicalmente “as formas tradicionais de representação e apresentação – verbal e visual” apelando para “formas não semióticas de comunicação.”

Em fevereiro de 2000, foi criado, num laboratório em Jouy-en-Josas, perto de Paris, na França, por meio de uma alteração genética com o DNA de águas-vivas, uma coelha albina híbrida, chamada “Alba”. Normalmente ela mantinha a cor branca, mas, sob uma determinada luz azul, brilhava com tom verde fosforescente. Alba foi criada com o uso de engenharia genética e nunca foi apresentada ao público, uma vez que as regras ético-científicas que regiam o laboratório não permitiram sua “liberação” à natureza. Alba não poderia ter a vida “normal” (ou “natural”) das coelhinhas que nascem, vivem, se reproduzem e morrem na natureza. Apesar de ter sido criada em um laboratório, deixemos claro: esse novo ser, criado artificialmente, é em tudo igual ao coelho “natural”, capaz de pular, comer cenouras como qualquer um da sua espécie, com a única estranheza de brilhar no escuro “como uma lanterna”.

É preciso ainda destacar no que consistiu propriamente a produção da obra de arte GFP Bunny. De modo muito semelhante a Marcel Duchamp (falarei sobre isso à frente), a produção artística de Kac consistiu em uma ideia, uma representação da razão, como diria o rigoroso Kant, uma ideia da imaginação, diríamos nós, menos rigorosamente, ou ainda, uma espécie de conceito (o qual Kant chamaria também de “representação de fim”7) que precede a “execução”, como, aliás, ocorre em quase todo processo da criação de uma obra de arte. Não há dúvida de que se trata de uma ideia ou conceito inteligente, astuto, irreverente e irônico, que poderia ser descrito como um deslocamento (nada insignificante nem irrelevante, aliás) para o âmbito da arte, e também para a esfera doméstica e familiar8, de uma “experiência” que já vinha sendo realizada há mais tempo e de modo exclusivo no mundo científico da biologia, como advertiu Osthoff. Aliás, a obra de Eduardo Kac deu ampla notoriedade, no mundo das artes, ao procedimento de engenharia genética, que consistia nessa produção de animais fosforescentes, mas não só isso, pois tenho a impressão de que, a partir do mundo das artes, ela (Quem? A obra? A informação científica? Ou ambas?) expandiu-se e alcançou todos os mundos. No ambiente da ciência, o método tinha, entre outras, uma justificativa “humana” ou “ética”, uma vez que, com isso, poupou-se a vida das cobaias nos laboratórios, diminuindo ou mesmo evitando, em alguns casos, o uso do bisturi, como era, antes, inevitável nas biópsias e nas inúmeras operações invasivas a que a ciência submetia os corpos de suas vítimas. Não foram poucos os “Frankensteins modernos”9 que, como a coelhinha Alba, foram “criados” nos laboratórios.10 Na época, início dos anos 2000, tive notícia de alguns, como o macaco Andi, galos, peixes, os três porquinhos taiwaneses e até uma mosca!11

Mais uma vez, segundo Osthoff, o artista encarava a sua obra GFP Bunny como um projeto de três fases: a primeira consistia na criação de um novo ser vivo; a segunda seria a sua exposição numa galeria; e a terceira consistiria na sua integração na família do artista que vivia em Chicago.

No entanto, depois que o laboratório francês se recusou a liberar o coelhinho, como tinha sido previamente combinado, criou-se uma controvérsia na internet [worldwide media], e Kac utilizou o frenesi dos media como material de uma nova fase do GFP Bunny, como exemplificado nas fotografias, desenhos e outros trabalhos na sua exposição ‘Rabbit Remix’ (setembro de 2004, na galeria de arte Laura Marsiaj no Rio de Janeiro).12

Preâmbulo ou Nota metodológica

Pedindo a paciência do(a) leitor(a) e especialmente do(a) comentador(a) deste texto, adio mais uma vez a discussão sobre a polêmica obra de Eduardo Kac, o GFP Bunny, que já tem 22 anos, pois necessito fazer uma espécie de explicação ou acerto de contas metodológico, a fim de tentar responder à interpelação crítica de vários(as) autores(as) na contemporaneidade, acerca dos pares de conceitos presentes de modo sintomático e escandaloso no abstract que enviei inicialmente à Comissão organizadora deste evento!13 Estão entre os(as) interlocutores(as) que gostaria de convidar para esta conversa Débora Danowski, Eduardo Viveiros de Castro e Bruno Latour, mas também tenho a obrigação de lembrar, apesar da provável repulsa delas e deles a essa (de certo modo, infame) companhia: Heidegger! Quem, há muito tempo, no seu constante e incansável questionamento da Metafísica, provavelmente, por motivos bem distintos dos da crítica daqueles(as) outros(as) autores(as)14, já denunciava esse “amontoado opressivo de antíteses”.15 Este ensaio que consistirá, como já mencionei, numa tentativa de crítica ou filosofia da arte vai recorrer de maneira excessiva, quiçá, abusiva ou até extrema (no sentido da extrema-unção, a última oportunidade de aparição antes da morte e do fim), ao par conceitual arte e natureza. Devo confessar, infelizmente, a minha imensa dificuldade de pensar fora desses pares! Gostaria sinceramente de poder fazê-lo e espero que as novas gerações se preparem para dar esse salto urgente para fora da tradição ocidental da Filosofia, em direção a outras fontes de inspiração, e cumpram, afinal, a tarefa de uma “filosofia do porvir”.16 Que essas novas gerações possam acolher o desafio de Eduardo Viveiros de Castro, que consiste em tentar uma “operação de ‘transversalização’ entre a antropologia e a filosofia”, uma “aliança demoníaca”, como o próprio antropólogo a designou, lembrando-se das palavras de Deleuze & Guattari e visando à “entrada em um estado (um platô de intensidade) de descolonização permanente do pensamento.”17

Se me reconheço ainda refém das eternas muletas metodológicas (os pares conceituais), imaginem se conseguiria alcançar aquele nível de exigência máxima de um pensamento que já é um modo de existência e que questiona-critica-demole-desconstrói e, sobretudo, descoloniza “nosso” conceito capital/ocidental de “natureza”? A minha “ocidentalidade” me permitirá fazer a experiência de outra “natureza” que não seja aquela abstrata e “separada” de mim? O GFP Bunny nos fornecerá uma pista para alcançar outro conceito de natureza? Até que ponto a obra de arte de Kac já ultrapassou o conceito ocidental e metafísico de natureza?18 Porque é certo que muita coisa está em questão nesse conceito de “natureza” (que dirá no par)! O líder indígena Ailton Krenak chegou a vincular o conceito “ocidental” de natureza ao capitalismo (isso mesmo!), como citarei a seguir! Irrompe aqui muita necessidade de estudo e investigação! Não sei se terei fôlego suficiente! Referindo-se ao par Natureza/Cultura, Bruno Latour propõe-nos tratá-las como “irmãos siameses, que se abraçariam ou se golpeariam até sangrar sem deixar de pertencer ao mesmo tronco”19, ou como “categorias marcadas”20, ou ainda, utilizar uma “convenção tipográfica Natureza/Cultura”.21 Assim, os dois nomes sempre juntos e inseparáveis.

Seremos capazes de experimentar a “natureza”, como parece que os povos da floresta a experimentam? Vou convidar Ailton Krenak para tornar ainda mais complexo o nosso diálogo e perguntar se seria possível estabelecer uma conversa entre o coelho de Kac e o jaguar (ou a onça, ou o macaco, ou o queixada22) dos Krenak ou dos Yanomami. Não é por acaso que as vozes indígenas vêm sendo atualmente e, cada vez mais, finalmente, convocadas a participar de fóruns, conferências, seminários acadêmicos.23 Até a velha Metafísica como caracterizada por Danowski e Viveiros de Castro, essa “mais etérea das especialidades filosóficas”, anda inquieta, sai do seu palácio de cristal, caindo aos pedaços, e se apressa em ouvir com atenção e seriedade aqueles verdadeiros xamãs, capazes de “nos” ver de fora, da perspectiva do “Outro”, fazendo aquilo que Viveiros de Castro, junto com outros e outras, chamaram de “antropologia invertida”.24 Devolvendo-nos uma imagem não muito favorável de “nós mesmos”, habitantes do “mundo dos brancos”, da “civilização da mercadoria”, dos fiéis da “religião capitalista”25, da qual até muito pouco tempo nos orgulhávamos! Nós nos orgulhávamos?!

Para Krenak, a “nossa” (ocidental) noção de natureza é uma mera “abstração” que “os povos originários aceitam apenas como uma possibilidade de diálogo”, numa atitude de generosidade, elegância e diplomacia26, como só eles sabem ter, porque, Krenak continua,

a natureza é uma invenção ocidental, uma invenção muito oportuna ao capitalismo. O capitalismo precisa dessa epistemologia, o capitalismo precisa de uma narrativa que institui a cultura, a natureza, os direitos humanos, essa centralidade do humano diante de tudo. Marcadamente nos últimos 200 anos, este tipo de mantra, afirmando a prioridade e o centralismo do humano nos aproximou rapidamente do Antropoceno.27 É lógico, como toda religião, num determinado momento, ela dá metástase.28

Está difícil defender a vigência desse par conceitual, sobretudo se o confrontamos com o pensamento dos povos originários que sequer concedem um lugar (a não ser por um esforço “político e diplomático”, como acabamos de ver, quer dizer, quando estão em conversa, em negociação, em operação de “tradução”, com os ocidentais) a um conceito, como o “nosso”, de “natureza”. Mas também não está fácil encarar a condenação de obsolescência que fez Eduardo Viveiros de Castro, encerrando a Antropologia (mas, com muito mais razão, essa irmã mais velha, primogênita, que é a Filosofia, com idade bem mais avançada do que a da Antropologia, que é uma ciência humana recente, irmã caçula, recém-nascida) no que ele designou de “prisão epistemológica”, “desde as trevas dos séculos XVIII e XIX”.29 Assumindo uma posição que tem a aparência de estar na contracorrente desses(as), com os(as) quais, gostaria, na verdade, de aliar-me (Ailton Krenak, Déborah Danowski, Eduardo Viveiros de Castro, Bruno Latour), colocar-me do mesmo “lado da barricada”, volto ao nome de Heidegger (desculpem-me a insistência)! Mas também aproveito o ensejo para perguntar, invocando Deleuze & Guattari, autores que são explicitamente “aliados” do antropólogo e da filósofa, por que deveria abrir mão dos conceitos filosóficos que a tradição ocidental colocou à nossa disposição? Não foram D. & G. que sempre defenderam que “nós” instrumentalizássemos conceitos filosóficos e os tomássemos como “caixa de ferramentas”? Eventualmente, torcendo-lhes um pouco o sentido? O antropólogo e a filósofa (Não é ironia! É profunda a amizade, a admiração e o respeito que sinto por ambos!) não usam também tantos conceitos, como o “povo que falta” (o mais notável), daqueles autores, D. & G.? Mas esses autores, D. & G., não são filósofos também europeus, “brancos”, “homens”, “ocidentais” etc.? Não estão, eles também, em diálogo com essa extensíssima tradição que é, ousaria dizer, antropocêntrica? Eu diria até mais: eurocêntrica? Pergunto-lhes, se não nasce na intolerância e no preconceito a atitude de quase “proibir” (“uma disposição anti-kantiana e anti-humanista”30) determinadas referências, autores, conceitos etc., impossibilitando assim qualquer sincera conversa? Por que Leibniz (“o santo padroeiro do perspectivismo ocidental”31) é, digamos, “admitido” no debate, e Kant, tão “perspectivista” (ou mais, segundo algumas opiniões) quanto Leibniz, não? Pergunto maliciosamente: será porque Deleuze o incluiu no seu paideuma? Kant é barrado porque Deleuze, apesar de usar/abusar da terminologia kantiana (mesmo “pervertendo-a” tanto quanto pôde, como apontou com precisão David Lapoujade, mas ao mesmo tempo, ecoando-a, ressoando-a) o designou, muitas vezes, como “inimigo”? Mas afirmo, sem hesitação, que os conceitos kantianos estão presentes na caixa de ferramentas de Deleuze.

Não quero desconhecer e, muito menos, apagar as diferenças. Mas insisto que, por exemplo, a recusa heideggeriana da tradução latina (natura) da palavra grega physis, por mais estranho que pareça, visava a um objetivo semelhante ao que suponho ser o de Danoswki et al., isto é, resgatar, recuperar uma potência ou capacidade de pensar o problema, a questão que estava em jogo! Heidegger também estava interessado em fazer do pensamento uma experiência, talvez, até num sentido próximo (sei que repugna ao(à) leitor(a) a proximidade, mas é preciso afastar o cheiro retrô de mofo que frequentemente a filosofia de Heidegger provoca, a fim de nos apropriarmos de sua não pequena artilharia conceitual)32 daquele que Viveiros de Castro reivindica, isto é, no sentido de alterar “o quadro do que é pensar”, modificar “o quadro das ideias”. A defesa heideggeriana das palavras gregas não é um capricho conservador e caduco, embora seja isso também. De qualquer modo, no meu ponto de vista, ela contém um esforço em favor do pensamento, desse “experimento”, que não deveríamos jogar no lixo, junto com toda a tradição filosófica ocidental, em nome do pensamento dos povos originários, ao qual, aliás, não temos propriamente... acesso! Ou temos? Certamente, é obrigatório baixar a guarda, destituir-nos das velhas e conhecidas arrogâncias, da “centralidade dos humanos”33, e prepararmo-nos para pensar junto, ao lado, com eles, no mesmo sentido em que, de novo, Viveiros de Castro, num momento menos “radical”, digamos, talvez porque oral, falou numa entrevista.34 Dificilmente seremos (refiro-me ao “nós” ocidentais que, somos, existimos dentro das bibliotecas, das salas de aulas, das universidades, dos congressos e das revistas “científicas”, queiramos ou não) capazes de fazer o experimento de pensamento dos Krenak ou dos Yanomami! Isso é óbvio! Seria até desrespeitoso com eles/elas, não é mesmo? Em contrapartida, a urgência da crise ecológica e planetária não exigirá uma “frente ampla”? Não será um luxo (mais um) dispensarmos os instrumentos e os aparatos conceituais que nos são fornecidos pela velha Metafísica ocidental? Ainda que deslocados, revisados, e até “pervertidos”, mas inegavelmente úteis, na guerra iminente que teremos de enfrentar?

Lamentando e pedindo desculpas por retornar a temas já tão conhecidos de vocês e recorrer aos velhos e amaldiçoados pares conceituais, uma vez que as minhas referências para “pensar o problema” continuam voltando a Kant, em cuja filosofia o recurso ao “dualismo” das oposições é irrecorrível. Confessando, de antemão, minha incapacidade de pensar sem o apoio dessa (como chamá-la?) “dialética” (mesmo que sem solução, sem Aufhebung), alternância ou até “paradoxo” entre os opostos; declarando a minha impossibilidade de pular numa “linha de fuga” e escapar do “amontoado de antíteses”, recolho-me à modesta posição de pensar e refletir sobre uma obra de arte a partir de uma lógica ainda fundada na analogia e na representação, dispositivos repudiados por autores como Deleuze e Guattari, mas inevitáveis, quando se trata de Kant, com quem, talvez, não se dê um passo sem apelar para ambos os recursos.35 Sem saber o que seria pensar fora das “dicotomias infernais da modernidade”36, como parece ser a exigência de pensadores radicais como Heidegger, Viveiros de Castro, Deleuze & Guattari e Ailton Krenak; sem condições de levar às últimas consequências, a sugestão de Bruno Latour, de me desvencilhar da ideia de “natureza”37, suspendo, ou melhor, adio a discussão contida nessa quilométrica “Nota metodológica”, que cresceu muito mais do que seria desejável, para retornar, finalmente, à obra de Eduardo Kac, que prometi analisar.

GFP Bunny de Kac e a história da arte ocidental

Tentando ser mais esquemática, em primeiro lugar, pretendo dialogar com um ensaio do próprio artista em comemoração aos vinte anos de sua obra, a coelhinha Alba: “GFP Bunny at 20”– antecipando as suas “afinidades” com outras obras de arte contemporâneas e também consideradas paradigmáticas, pelo menos por dois autores “filósofos”, com quem desejo dialogar: a Fontaine de Marcel Duchamp (Thierry de Duve) e as Brillo Boxes de Andy Warhol (Arthur Danto). Em seguida, confrontarei a obra de Kac com alguns dos quatro critérios da teoria kantiana do gênio, sobretudo os que dizem respeito à originalidade e à apresentação das ideias estéticas. Por último, pretendo trazer para a discussão o par natureza e arte, que serve como um potente fio condutor das principais questões da Crítica da faculdade de julgar, mas também pressinto que ele ainda seja válido para uma leitura da obra de Eduardo Kac. Para resumir a minha ambiciosa empreitada, gostaria de pôr a obra de Kac em diálogo com esse amplo espectro de autores(as): de Kant a Krenak, passando por Danowski, Viveiros de Castro, De Duve etc.

Recomeço, então, citando duas breves passagens do ensaio de Eduardo Kac: a primeira passagem está logo no início, no abstract; e a segunda, no final, precisamente na última frase do ensaio. Vamos a elas! Cito-as:

Minha obra de arte GFP Bunny foi considerada polêmica na virada do milênio. Nos vinte anos que se seguiram, foi apropriada pela cultura pop, transformada e incorporada em romances, televisão, jogos e filmes. Este ensaio revisita este fenômeno único e lança luz sobre o coelho que abalou o mundo.38

E, na última linha:

Em 2002, o crítico de arte e curador Judicaël Lavrador escreveu um artigo para a revista parisiense Beaux Arts, no qual declarou: ‘O coelho fosforescente de Eduardo Kac é para a bioarte o que Marilyn Monroe foi para a pop art: um ícone’ (Lavrador 2002). Desde então, Alba passou a fazer parte do inconsciente coletivo, com clones fabulatórios tomando seu lugar nas mentes de leitores e espectadores jovens demais para terem experimentado o impacto do GFP Bunny na época. Como resultado, Alba evoluiu efetivamente de um ícone para um arquétipo.39

São dois momentos óbvios de inabitual vaidade e presunção que afetam, a meu ver, muito negativamente a recepção de suas obras e criam uma barreira subjetiva em torno da obra que os(as) espectadores(as) (que tiveram acesso aos textos e foram também “leitores(as)” dos textos de crítica do autor) precisam atravessar, rompendo-a, em certa medida, para alcançar o “objeto”. Embora tenha sempre me posicionado a favor da imaginação e do gênio contra o entendimento e o gosto, hoje, excepcionalmente, seguirei a recomendação do velho Kant, no famoso parágrafo 50 da Crítica da faculdade de julgar.40 Nem que seja somente para defender os princípios da delicadeza, da elegância e da modéstia (numa palavra: do bom gosto... Será ainda possível defender um conceito como esse... De “gosto”?), falarei contra a arrogância e a soberba41, certamente más conselheiras de todo e qualquer artista, aliás, de todo e qualquer ser humano, e, assim, começarei por cortar um pouco as asas deste ainda candidato a ser um “gênio kantiano”! Se não é tudo isso, dando uma colher de chá ao nosso artista, parece-me que é, no mínimo, ingênuo e um pouco tolo (caso ele esteja acreditando seriamente nas suas próprias palavras), situar a si mesmo (ou a sua obra) na posição de um “abalo do mundo”. Apesar de não estar de acordo com a empáfia da autoavaliação do artista, não duvido que as obras de Eduardo Kac já ocupem um lugar inegável na História da Arte (ocidental).42

Voltando a comentar a última linha do texto, é ainda do mesmo modo imodesto e arrogante que ele fala da mudança de “ícone” para “arquétipo”. O que é um arquétipo? Fui consultar o dicionário – desculpem-me por usar um instrumento de “pesquisa” tão simplório, o Houaiss:

Arquétipo é:

1. modelo ou padrão passível de ser reproduzido em simulacros ou objetos semelhantes; 2. ideia que serve de base para a classificação dos objetos sensíveis; 3. Derivação: por extensão de sentido: qualquer modelo, tipo, paradigma; 4. Rubrica: filosofia: modelo ou exemplar originário, de natureza transcendente, que funciona como essência e princípio explicativo para todos os objetos da realidade material. 4.1Rubrica: filosofia. Platão (427 a.C.-348 a.C.): cada uma das formas ideais reproduzidas nos objetos imperfeitos do mundo sensível. 4.2 Derivação: por extensão de sentido. Rubrica: filosofia. No neoplatonismo, cada uma das ideias preexistentes na mente de Deus, a partir das quais o universo foi constituído. 5. (1572) Derivação: por extensão de sentido. Rubrica: teologia. o criador de todos os seres e coisas; Deus. [...] 6. Derivação: por extensão de sentido: modelo ao qual se atribuem perfeição ou sublimidade. 7. Rubrica: filologia: versão original (existente ou reconstituída) de um texto, do qual foram feitas cópias subsequentes; texto de que todas as cópias derivam, mediata ou imediatamente. 8. Rubrica: psicologia. Para C. G. Jung (1875-1961), conteúdo imagístico e simbólico do inconsciente coletivo, compartilhado por toda a humanidade, evidenciável nos mitos e lendas de um povo ou no imaginário individual, esp. em sonhos, delírios, manifestações artísticas etc.; imagem primordial (grifos meus).43

De fato, como “arquétipo” o GFP Bunny de Eduardo Kac alcança o patamar mais alto que seria possível para uma “obra humana”, uma espécie de hybris da técnica!44 Pois se vocês tiverem lido com cuidado a citação acima, terão observado que, na rubrica “Teologia”, “arquétipo” é o “criador de todos os seres e coisas”, numa simples palavra: “Deus”! Com exceção desse sentido teológico (“Deus”), quando o arquétipo adquire uma consistência real e material, em todas as outras rubricas as palavras que servem para definir “arquétipo” no dicionário – “modelos”, “tipos”, “paradigmas” – parecem convergir para uma noção abstrata de “ideia”, como, por exemplo, as “formas ideais” platônicas. Também foi nesse sentido, de uma “mera ideia”, que Schiller compreendeu a noção de “Ur-plant” (planta arquetípica), que seu amigo, o poeta Goethe, outro exemplo de imodéstia, formulara: “essa planta original”, Schiller descreveu, nada mais é do que “uma mera ideia”!45 Portanto, uma forma vazia? Pura? Estará Kac reivindicando ser a “essência” de sua obra uma “mera ideia”? Terá consciência das “consequências” de sua própria interpretação? Não há dúvida de que se pode tentar aproximar essa intenção/interpretação do artista àquilo que Kant chamou de “modelo exemplar”, no âmbito da terceira Crítica. Ali, ao distinguir (no duplo sentido: de diferenciar e de tornar mais elevadas) as obras de imaginação do gênio daquelas reduzidas à imitação, ele afirmou serem os produtos do gênio “modelos, isto é, exemplares; e que [...] mesmo não tendo surgido [...] da imitação, têm de servir a outros como tal, como padrão de medida ou regra do julgamento”?46 Esse papel de modelo e exemplo, aliás, era um dos critérios por meio dos quais Kant definia o “gênio”. Se o GFP Bunny se comprovar como um “padrão de medida” para a posteridade, então, Kac terá ganhado um ponto (dos quatro) na sua “candidatura” a gênio, segundo Kant!

Continuemos a examinar o GFP Bunny a partir dos outros critérios que definem o gênio para Kant, o primeiro deles na CFJ é o da originalidade. Não poderemos seguir à risca o texto da CFJ, pois ali a propriedade original do talento que caracteriza o gênio é totalmente distinta da capacidade de produzir conceitos; na verdade, o gênio é incapaz de fornecer qualquer regra.47 “Regra” é atributo específico do conceito. E a criação do Coelhinho fosforescente, como é uma produção da ciência, segue regras restritas, determinadas, aliás, minuciosas, e que devem se repetir a cada vez que quisermos “produzir” um coelhinho verde. Se aplicarmos simples e rigorosamente o critério kantiano, sem questionar a legitimidade dele, teremos de concluir que o GFP Bunny não é um produto do gênio, uma vez que sua “origem” não seria propriamente “artística”, mas sim próxima da produção em série da ciência, a partir da repetição das regras adequadas! Já o talento do gênio para Kant é algo não “controlado”, digamos, pelo agente, é uma “doação”, um “favor”, uma “proteção” da natureza.48 Talvez Kant estivesse um pouco obcecado pela distinção entre arte e ciência, sobre a qual estava fundado um de seus “problemas” naquela época, o qual consistia em diferenciar dois modos de encarar a natureza, aos quais correspondiam, por sua vez, dois tipos irredutíveis de juízos: 1) os determinantes, relacionados ao conhecimento (teórico-científico) da natureza49, juízos que pretendem apoderar-se (o conhecimento é sempre uma forma de poder, como nos lembra Foucault) das leis internas dos objetos naturais; e os juízos reflexionantes, relativos à estética e à teleologia. Nesse último caso, a natureza é pensada como “técnica”, isto é, como se fosse “arte” (a estética reflete tão somente sobre as formas dos objetos da natureza) ou como “organismo” (biologia). Concluindo este parágrafo sobre a originalidade, se quisermos realmente atribuir àquelas obras – Fontaine, Brillo Boxes e GFP Bunny – essa qualidade, virtude ou distinção, a “originalidade” terá somente o sentido do senso comum, quero dizer, o sentido que está no dicionário, de uma “mera palavra”50, e não o de um “conceito filosófico”, como está nas páginas da CFJ.

Gostaria ainda de tentar “justificar” porque reservei o assento do GFP Bunny ao lado de obras de arte contemporâneas (no sentido da “História da Arte”, bem entendido) como a Fontaine de Duchamp e as Brillo Boxes de Wahrol. A meu ver, em todos esses casos, temos uma dificuldade muito semelhante em designar precisamente no que essas obras consistem, qual é o seu verdadeiro “conteúdo”: Uma intervenção? Um gesto? Uma ideia? Voltamos, portanto, ao problema da “ideia”, sob outra perspectiva, menos laudatória e edificante (como era a do “arquétipo”)? Como acabamos de ver com relação ao GFP Bunny – mas não é difícil estender às duas obras “irmãs afins” –, é quase impossível identificar, em qualquer uma delas, aquele trabalho específico ou produção técnica, “artística”, propriamente falando, muito menos o talento natural51, o qual era costume exigir (antes e durante muito tempo depois do “trevoso” século XVIII) dos chamados “gênios”! Ousaria dizer que as principais características das obras que catapultaram esses três artistas (Kac, Warhol e Duchamp) ao ápice da fama e do sucesso, e que foram determinantes para torná-los artistas paradigmáticos, e suas obras “cataclísmicas”, segundo a definição exagerada, exageradíssima e politizada, politizadíssima de Arthur Danto52, reduzem-se à inteligência, à crítica irreverente e à ironia! Características essas compartilhadas por muitos(as) artistas contemporâneos(as), é verdade, desde a famigerada Fontaine de Duchamp, que foi a precursora, a primeira a derrubar o pedestal sobre o qual as obras de arte costumavam ser contempladas (e amadas, talvez?). Portanto, tentarei examinar por meio da característica (ou afinidade) que elegi ser a mais importante dessas três intituladas “obras de arte” – título já referendado, legitimado e consolidado pelas mais importantes instituições ocidentais de arte –, a de que elas talvez não sejam mais do que uma ideia.

Mas, pergunto logo em seguida, lembrando o meu recalcitrante horizonte kantiano: aquela “ideia” será uma “ideia estética”, conceito que Kant definiu como uma das faculdades próprias e essenciais do gênio? Como “uma representação da imaginação que dá muito a pensar”?53 Como uma representação carregada de “espírito” [Geist]? Esse espírito que é um “princípio animador [...] que coloca as forças da mente em movimento”?54 Se não há dúvida de que aquelas obras citadas nos tenham dado e ainda nos deem muito a pensar e que elas tenham colocado e venham ainda a colocar no futuro as “forças das nossas mentes em movimento”, há, no entanto, uma restrição na teoria kantiana do gênio, que talvez não nos permita identificar plenamente a ideia que sustenta cada uma delas como uma “ideia estética”; pois, segundo a rigorosa terminologia kantiana, a “ideia estética” não pode ser “um pensamento determinado”, não pode ser, portanto, “um conceito55, ela excede o conceito. Contraposta por Kant à ideia da razão56, podemos concluir que a ideia estética é uma intuição (muito próxima do sublime, aliás) à qual todo conceito é insuficiente. Ora, nos três casos, temos um “conceito” perfeitamente “adequado” (e, no caso da Fonte, até um objeto previamente fabricado) cujas regras são dadas, aliás, não pela natureza, mas sim pela indústria de louças brancas, e no caso de GFP Bunny, regras dadas pelo laboratório de biologia! Contrariando assim, outros critérios descritos por Kant na definição do “seu” gênio: 1) que ele “não pode descrever ou indicar cientificamente como cria o seu produto, a não ser dizendo que lhe dá a regra enquanto natureza”.57 2) Culminando com o quarto e último critério, que chega a excluir a ciência dessa “proteção” ou “favor”58 que a natureza concede ao gênio artístico: “que a natureza, através do gênio, não dá a regra à ciência, mas sim à arte”.59 Temos de recusar ao GFP Bunny o título de “arte do gênio kantiano (bem entendido)”.

Saindo da esfera estritamente kantiana, mas mantendo-a por perto, junto com Thierry de Duve, que nos propôs substituir a noção de belo, nos juízos reflexionantes da terceira Crítica, pela noção de “arte”60, não podemos negar que uma das principais contribuições dos três artistas – Kac, Wahrol e Duchamp – para a História da Arte foi justamente a de terem ampliado, de modo considerável e definitivo, o conceito de arte. Este é um crédito que não se deve recusar a eles. Daqueles gestos (“ideias”) irreverentes de intervenção decorreram certamente os efeitos muito positivos de ampliação e abertura das fronteiras que separavam a arte do mundo da vida. Essas três obras participaram (foram parte responsável) do estabelecimento das inéditas condições de produção da arte contemporânea. No seu movimento de ruptura contra o status quo, elas ajudaram a derrubar barreiras que costumavam separar o artista do público. Com elas, diluiu-se, praticamente apagou-se a rígida distinção entre o(a) artista (esfera ativa do fazer/criar/produzir) e o(a) espectador(a) (esfera passiva do sentir/contemplar)61, o que não deixa de ser um aspecto muito favorável do atual ambiente da arte contemporânea: desmistificador, inclusive, da “ideologia” do gênio! Fortalecendo-se um ambiente no qual não é mais possível estabelecer qualquer limite quanto à forma ou à matéria, quanto ao suporte do objeto ou ao seu lugar de fabricação que, há muito tempo, deixou de ser o ateliê do artista. O GFP Bunny foi produzido num laboratório científico de biologia e engenharia genética, enquanto a Fontaine, que trazia até seu número de produção, foi comprada numa loja de ferragens.62 Nesse quesito, nosso artista, Eduardo Kac, não para de inovar e progredir: sua última obra de arte, o Inner Telescope, foi realizada, como mencionei anteriormente, no espaço sideral! Realmente, o ateliê do artista foi longe, derrubou fronteiras inimagináveis! Isso sem falar nas alardeadas consequências da reprodutibilidade técnica, condições essas hoje ainda aumentadas exponencialmente com a internet63, dentre as quais se destaca a possibilidade de ampliação democrática do público da arte que ainda está, hoje, infelizmente, longe de efetivada.

Conclusão

A meu ver, as complicadas operações científicas que estão envolvidas na produção, de fato, de grande parte das obras de arte de Eduardo Kac interessam pouco ou, ousaria dizer, quase nada ao(à) espectador(a). Ou interessam tanto quanto o modo como Johannes Vermeer produzia, no século XVII, sua tinta azul utilizando uma pedra semipreciosa caríssima, o lápis-lazúli. O que, talvez, o tenha levado à mais completa bancarrota material e financeira. Queremos ver o quadro da Leiteira e admirar o incrível brilho de seu avental azul que explode no sutil contraste com o fio de leite branco que escorre do bule! O prazer estético ainda existe, ainda que se reconheça certa caducidade ou obsolescência do “sentimento do belo” com relação à arte contemporânea. Mas, até nisso, seria capaz de defender Kant. Em todo caso, com relação à natureza, mesmo vilipendiada e maltratada por nós, ingratos seres humanos que somos, ela continua, apesar disso, a nos propiciar um inegável sentimento de prazer, entregando-nos gratuitamente intensas experiências de beleza! Os exemplos são tantos e tão óbvios que deixo a imaginação do(a) leitor(a) livre para associar! Voltando às “operações científicas” das obras de E. Kac, elas suscitam, sem dúvida, uma curiosidade, uma vontade de conhecer a “lógica interna”, de como funciona o “objeto exposto”. Em geral, a informação científica conta-nos sobre os processos internos, invisíveis, na maioria dos casos, não aparentes. Quero insistir na característica específica da “experiência estética”, que presta mais atenção aos efeitos sensíveis, aparentes ou externos, dos quais dependem os nossos processos de associação. A nossa imaginação depende desses estímulos superficiais e sensíveis, eu diria. São eles que fornecem os caminhos para a nossa imaginação. Diante de um belo ipê amarelo, não preciso saber como funciona a fotossíntese (que interessa ao biólogo ou ao botânico) para me deliciar com a exuberância das cores, com a majestosa imponência de uma árvore secular. Se se quiser, minha atitude diante da bela natureza se aproxima à do “respeito” que Kant reserva à lei moral. Trazendo o olhar para a arte de Kac, na exposição de uma de suas obras de telepresença, como Uirapuru64, interessa-nos menos saber como está se dando a interação virtual entre os(as) espectadores(as) remotos(as) e o peixe colorido suspenso no espaço da galeria do que propriamente ver, estar perto, ter a “experiência” sensível, tátil do próprio peixe (aparentemente de plástico?) colorido voando dentro do espaço da galeria.

No caso do GFP Bunny, nem chegamos a ter a experiência do “objeto”, da própria obra, o que não deixa de ser frustrante! Mas o não aparecimento da coelhinha Alba revela muito sobre como evoluiu a obra de E. Kac - na direção do não objeto, da quase imaterialidade, da rarefação, da abstração, afinal, acrescento: conceitual. O Telescópio interior estará ainda vagando pelo espaço sideral? Não nego que é uma linda imagem (será a fotografia o único “objeto” material acessível da obra?), se abstrairmos a visão dos aparatos técnicos em primeiro plano e nos fixarmos no azul do firmamento no segundo plano, com aquela letra M (de “Moi”) perfurada (Eu-cindido?) por, aparentemente, uma cartolina branca enrolada, lembrando o jeito das crianças de antigamente ao brincar de ver a Lua!

Aliás, o fato de a coelhinha Alba nunca ter vindo material e sensivelmente (como me referir a isso?) a público aproxima-a, mais uma vez, da Fonte de Duchamp, cujo imbróglio provisório e inicial foi muito semelhante. Quando parecia não haver mais nada de novo a ser contado sobre a Fonte, leio em Aesthetics at Large, que, durante quase 50 anos, a famosa Fontaine ficou invisível! Desde abril de 1917, quando se candidatou a participar da versão novaiorquiana equivalente à dos Salões Parisienses Independentes, uma exposição promovida pela Sociedade de Artistas Independentes, e foi recusada pelo júri, até 1963, quando foi feita a primeira grande retrospectiva das obras de Marcel Duchamp no Museu de Arte (hoje Norton Simon) em Pasadena, EUA, sua existência poderia ser facilmente posta em dúvida. Durante esses 46 anos, sua única “prova de vida” foi uma foto de Alfred Stieglitz, como nos relata De Duve.65

Chegou a hora de retomar as perguntas que fiz na “Nota metodológica”: fornecerá o GFP Bunny uma pista para alcançar outro conceito de natureza? Até que ponto a obra de arte de Kac já ultrapassou o conceito ocidental e metafísico de natureza? Além disso, será que GFP Bunny é capaz de dar uma resposta à grave afirmação de Krenak, que vinculou o “nosso” conceito de natureza ao capitalismo, ao dizer que “a natureza é uma invenção ocidental, uma invenção muito oportuna ao capitalismo. O capitalismo precisa dessa epistemologia, o capitalismo precisa de uma narrativa que institui a cultura, a natureza, os direitos humanos, essa centralidade do humano diante de tudo”?

Não resta a menor dúvida de que a obra de Eduardo Kac acolhe perfeitamente esse tipo de questão. Não somente o GFP Bunny, mas talvez toda a obra de Kac impõe-nos uma reflexão sobre as relações entre a arte, a natureza, a ciência, sobretudo, a tecnologia. Essas relações são tão profundas que talvez tenham determinado a saída definitiva do artista do Brasil e sua mudança para os EUA! Como mencionei antes, Kac mora em Chicago desde 1989. E isso não é um acaso. Como indicou Paulo Herkenhoff, num belo e elogioso “Prefácio” ao livro do artista, Luz & letra, “talvez [Kac] não pudesse ser um artista no Brasil em razão de suas necessidades ligadas às tecnologias de ponta”.66

Herkenhoff é um apologista da obra de Kac, especialmente do GFP Bunny. Para ele, o Coelhinho “não pode ser reduzido à mera operação transgênica”. Na sua opinião, Kac “não mudou o coelho. Inventou um. Inventou-o de um ponto zero biológico. Sua tarefa, em outros termos, foi tornar realidade o ser imaginado”.67 “Melhor”, Herkenhoff conclui, exaltando ao máximo o nosso artista, “pensar Kac como um inventor de naturezas68, “um poeta das novas tecnologias69, e de uma “natureza pós-humana”!70 Perguntemos a esse importante crítico de artes: se Kac é mesmo “o inventor de uma natureza pós-humana”, o GFP Bunny já teria ultrapassado, superado o conceito ocidental e metafísico de natureza? Sobretudo no sentido para o qual Krenak apontava, quero dizer, para a ideia de uma outra natureza livre da “centralidade humana”? Ou até mesmo ao encontro do desejo de um não conceito (já não haveria sequer conceito) dos povos indígenas?

Apesar de respeitar a elogiosa apreciação de Herkenhoff, e concordar com ele, de que a obra inteira de Kac é muito polêmica e, por isso, nos dá muito o que pensar, como já defendi um pouco antes; o que significa, contemporaneamente, que a obra inteira de Kac está legitimamente qualificada como “obra de arte”71, no sentido forte do termo, uma vez que aquilo que caracterizava o sublime kantiano tornou-se inegavelmente um critério suficiente para distinguir o mundo da vida do mundo da arte, e, portanto, não nego que essa obra (como um todo) seja merecedora dos elogios de Herkenhoff. No entanto, assumindo um ponto de vista mais crítico aos avanços e progressos dessa “tecnologia de ponta”, da qual dependem não só o GFP Bunny, mas também o Inner Telescope, a Edunia etc., enfim, a obra (como um todo) de Kac, pergunto se essa não é justamente um exemplo de técnica que foi incapaz de depor o ser humano do seu lugar central, de mestre e senhor de toda a natureza. Insinuaria até mais uma pergunta: se essas “tecnologias de ponta”, das quais a obra de Kac faz intenso uso, não seriam as mesmas que levaram às últimas consequências o “projeto ocidental” (devemos acrescentar o sentido “capitalista” da fala de Krenak?) de dominação da natureza?

Inspirada agora por outros(as) autores(as), obrigo-me a ouvir palavras menos seduzidas pelo otimismo da técnica e da ciência. Proponho a vocês a oposição que está no livro Há mundo por vir?, de Déborah Danowski e Eduardo Viveiros, que nos advertem sobre os riscos das nossas “escolhas técnicas” e que se perguntam: “a presente catástrofe ambiental e a ameaça que ela representa para todos os humanos” não seria a “consequência de um sem-número de [equivocadas] ‘escolhas técnicas’?”72

Ali, a filósofa e o antropólogo contrapõem duas imagens de mundo. Desculpem-me pelas longas citações:

A Terra moderna da ciência galilaica, uma esfera celeste entre outras, vagando em um universo isotrópico e infinito, em conformidade com as leis eternas da matemática, de um lado; e [de outro/ vaf] a Gaia de Lovelock e Margulis, região local excepcional dentro do universo, um apax cósmico criado pela agência geomórfica da vida, cuja contribuição físico-química para a constituição de um sistema longe do equilíbrio foi e é determinante para a manutenção da vida ela própria.

A Terra-Gaia se separa assim da Terra-Corpo celeste, a sublunar volta a se distinguir do supralunar, a ideia de ‘mundo’ recupera um sentido radicalmente fechado, o que significa também imanente: terrestre, local, próximo, secular, não unificado.73

A essas duas imagens de mundo correspondem dois tipos de ciência ou perspectivas: big science x slow science.

De um lado, “o cosmocentrismo dos realistas especulativos, ‘desterritorializadores’ firmemente reterritorializados, na big science – o saber físico-matemático e o dispositivo tecno-econômico de acesso ao longínquo”; e de outro, o

geocentrismo da filosofia continental, no caso de Latour representado por sua paixão pelas “ciências menores”, as ciências terranas, no duplo sentido de ciências “terra-a-terra”, saberes do próximo (o solo, o clima, a ecologia, a cidade), e de ciências seculares, saberes que engajam a natureza como o correlato interno, múltiplo, animado, controverso e perpetuamente in fieri da atividade concreta dos cientistas – esta escolha ou esta decisão [...] ganha aqui toda a sua significação política. Uma significação que Isabelle Stengers, aliás, saberá explicitar talvez ainda mais radicalmente que Latour, com sua noção de “slow science”. Pois a única coisa que é preciso acelerar, em vista da proximidade crescente da “barbárie por vir”, é precisamente o processo de desaceleração das ciências e da civilização que, em mais de um sentido, vive às custas delas (Stengers 2009, 2013b).74

No outro artigo que escrevi sobre o GFP Bunny75, concedi a Kac o benefício da dúvida, perguntando se deveríamos apresentá-lo como “um advogado em defesa da natureza, ao propor adotar Alba, o coelhinho verde, como um animal de estimação, parte de sua família; ou, ao contrário, como um promotor a serviço da técnica de expropriação e dominação da natureza”. De lá para cá, o mundo piorou! As “escolhas da técnica” pelos ocidentais só fizeram agravar a catástrofe climática (chuvas torrenciais, secas devastadoras, epidemias etc.) que vem se tornando (ou já se tornou?), a cada dia, mais evidente, mais dramática e aterrorizante. Analisando a trajetória da obra (como um todo) de Eduardo Kac, constatamos que ele caminhou progressivamente na direção de uma aliança com esse “saber físico-matemático e do dispositivo tecno-econômico de acesso ao longínquo”, ao qual Danowski e Viveiros de Castro chamaram de big science. O Inner Telescope é uma prova eloquente dessa evolução. Não seria legítimo cobrar dessa obra (de novo, como um todo) alguma atitude crítica com relação a essa big science? A sua dependência dela não a tornou “comprometida” demais com o “programa moderno-capitalista” (assumindo as consequências político-econômicas) de dominação da natureza? A aparência delas é mais de um deslumbramento e fascínio pelas tecnologias das quais dependem do que de um comportamento propriamente crítico ou questionador. Não concordo com Herkenhoff que o GFP Bunny tenha surgido “do cientificismo extremo para se revelar um diagrama político do significado do conhecimento do genoma”.76 Teria sido interessante se ele tivesse feito essa passagem do “cientificismo extremo” à política da slow science, como a definida por Isabelle Stengers, das “ciências terranas”, “menores”, visando a uma desaceleração, em defesa de uma “tecnologia de frenagem, uma des-economia liberta da alucinação do crescimento contínuo”.77 Não se trata evidentemente de fazer um discurso contra a ciência tout court, mas de uma crítica necessária àquela ciência da “mestria prometeica”78, e a arte bem que poderia/deveria ser o lugar privilegiado dessa atitude crítica, do pé no freio contra a tendência à hybris da técnica.

Talvez tenha chegado o momento de responder à outra questão que me perseguiu durante todo o tempo em que escrevia este texto, sobre a legitimidade de recorrer aos pares tão antigos da Metafísica, no nosso caso: natureza x arte e natureza x técnica. Creio poder agora afirmar sem erro que a coelhinha Alba pertence àquela mesma “segunda natureza”79, da qual já falavam Kant e Goethe, no século XVIII, de modo ainda crédulo, confiante – e, por que não dizer, orgulhoso e otimista –, que servia para designar não só os produtos da técnica como as criações do gênio. Mas, no “nosso” século XXI, o sinal resoluto e inequívoco a favor da técnica virou, e autores(as) como Débora Danowski, Isabelle Stengers, Bruno Latour e Viveiros de Castro, embora continuem a falar de “segunda natureza”, agora se referem a ela de modo tão depreciativo quanto irônico e negativo. Diante da imensa crise ambiental que nos (“todo mundo” indiscriminadamente) abala, Danowski e Viveiros de Castro escrevem com uma ferina ironia, agora “que a ‘primeira Natureza’ (cf. Latour, 2012) voltou-se traiçoeiramente contra a bela progressão autopropelida da ‘segunda’, e que a temporalidade da crise ecológica entrou em ressonância catastrófica com a temporalidade da crise econômica”, liberando as “forças destrutivas desencadeadas pela interação física entre o ‘sistema capitalista’ e o ‘sistema Terra’”.80 No meu modo de interpretar, o Coelhinho da proteína verde talvez seja menos uma “conversão em poética” da “‘natureza pós-humana’”81 do que o anúncio ingênuo e algo irrefletido da “barbárie que está por vir” (ou que já está , aqui?), de uma distópica e assustadora “pós-natureza”.82

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* Virginia Figueiredo é professora do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da UFMG
* Algumas reflexões presentes aqui retomam (em alguns casos, simplesmente, repetem) partes de um texto intitulado “Kant after Kac”, que já se encontra publicado no sítio do artista (https://www.ekac.org/kant.after.kac.html).
** Este trabalho é um dos resultados do Projeto de Pesquisa (KANTINSA – Kant in South America), desenvolvido junto com as professoras Patrícia Kauark-Leite e Giorgia Cecchinato (Departamento de Filosofia da UFMG), financiado no Brasil pela FAPEMIG e, no Exterior, pela Comissão Europeia Marie-Sklodowska Curie.
1 DANOWSKI; VIVEIROS DE CASTRO, 2014, p. 13.
2 Cf. nota * acima, retomo alguns parágrafos de FIGUEIREDO, 2007. As informações sobre a biografia de Eduardo Kac foram colhidas no sítio do artista: http://www.ekac.org, consultado em vários momentos: 2006; 13 maio 2011; 6 mar. 2022).
3 Simone Osthoff é professora na Escola de Artes Visuais da Pennsylvania State University e autora do livro The Transformation of the Archive in Contemporary Art: from Repository of Documents to Art Medium (2009), assim como de inúmeros ensaios e resenhas com foco nas práticas de arte de mídia e nas questões historiográficas. Além disso, acompanha de perto a obra in progress de Eduardo Kac, há mais de vinte anos, e sobre ela já escreveu vários e importantes artigos.
4 OSTHOFF, 2017.
5 Atualmente, Genesis faz parte da Coleção do Instituto Valenciano de Arte Moderna (IVAM), Valencia, Espanha. Cf. http://ekac.org/transgenicindex.html (consultado em: 28 mar. 2022).
6 OSTHOFF, 2001.
7 KANT, 2016, p. 116Crítica da faculdade de julgar, a partir daqui designada pelas letras CFJ.
8 Entre outros destinos de Alba, Eduardo Kac pretendia adotar a coelhinha como um animal de estimação, i.e., trazê-la para o convívio familiar. Não terei tempo, infelizmente, de examinar mais essa questão trazida à baila pela obra de arte de Kac.
9 Como se referiu a esses animais esverdeados Juliana Tiraboschi (2006). Aproveito mais uma vez para agradecer à Tânia Alves, minha aluna, naquela época (2006), que me enviou a reportagem citada.
10 Para uma importante atualização do problema “política dos animais”, cf. FAUSTO, 2020.
11 Caderno “Ciência” dos jornais Estado de Minas e O Globo. Nas edições do dia 13 de janeiro de 2006, foi amplamente noticiada a vitória dos pesquisadores taiwaneses que criaram três porquinhos, por meio dos mesmos métodos utilizados para a criação da coelhinha Alba, i.e., a “mistura do material genético deles com o de águas-vivas”. Na claridade, diziam as reportagens, os animais têm focinho, os dentes e as patas verdes, enquanto a pele tem apenas um tom esverdeado. Mas no escuro, submetidos a uma luz azul, eles brilham como uma lanterna. “A ideia é utilizar os porcos fosforescentes para estudar o combate a doenças humanas. Como o material dos porcos é verde, ele pode ser visto sem necessidade de realizar biópsias e operações invasivas”. Sobre a mosca, cf. TIRABOSCHI 2006.
12 OSTHOFF, 2006, p. 12. É preciso deixar claro que o GFP Bunny jamais apareceu (condição que, até pouco tempo, era exigida – ainda deveria ser? – como necessária para toda e qualquer obra de arte) no sentido forte do termo, i.e., o de ser um aparecimento ou ente-no-mundo. Alba nunca foi apresentada a qualquer plateia, nem exposta em qualquer museu ou galeria de arte. Nunca ninguém a viu!
13 Reproduzo então o antigo resumo, que foi alterado: “Ao longo da história da Estética ou da Filosofia da Arte, desenvolveram-se e aperfeiçoaram-se vários pares conceituais, como modos de abordar e apreender obras de arte. Dentre esses modos mais tradicionais e recorrentes, talvez o mais antigo e famoso seja o grego hylé/morphé (matéria e forma). Na contemporaneidade filosófica, é frequente o uso da oposição arte x sociedade, estimulado sobretudo pelos Filósofos da Escola de Frankfurt; ou ainda o par arte e vida, defendido de maneira determinante por Nietzsche, e depois, pelos Surrealistas. Mais recentemente, com o avanço das tecnologias digitais e sua capacidade de criar realidades virtuais ou paralelas, ganhou força o par arte x realidade, cujo viés político é acentuado; além disso, boa parte da crítica do filósofo da arte estadunidense, Arthur Danto, está dirigida por esse par conceitual. Sem pretender excluir as demais, intuo que a reflexão mais prolífera para análise e interpretação da obra de Eduardo Kac, o GFP Bunny, será aquela que ressaltar a relação entre arte e natureza. Esse par de conceitos dominou todo o pensamento sobre a arte durante o século XVIII, com razão chamado de o ‘Século Estético’. Kant é possivelmente o filósofo que melhor resumiu sua época, por isso, não é um acaso, que essa dupla conceitual, arte e natureza, constitua uma das mais poderosas chaves de leitura de sua Estética.” Propus, então, pôr o artista e o filósofo num diálogo, mediado pelo par conceitual arte x natureza, reconhecendo, evidentemente, que a obra de Eduardo Kac poderia ser visada através de muitas outras perspectivas, como, por exemplo, pelo sugestivo par arte x técnica ou arte x ciência...
14 É provável que, para Danowski, Viveiros de Castro e Latour (só para citar alguns), a crítica aos pares conceituais pretenda somente demonstrar a ineficiência dos conceitos da tradição da Antropologia, e não se dirija, portanto, a qualquer tentativa de “superação” da Metafísica, como era certamente a questão para Heidegger. Para aqueles(as) autores(as), talvez, o que se pretenda seja até, ao contrário, uma legitimação ou reconhecimento do pensamento dos povos originários, justamente como uma espécie de “Metafisica”; ou, talvez, estejam em defesa da possibilidade de “Outras Metafísicas”, diferentes da “Ocidental”, como evidencia o título do importante livro de Viveiros de Castro, Metafísicas Canibais (2018). Trata-se de rever (será legítimo aplicar aqui o termo derridiano/heideggeriano de “desconstrução”?) a Metafísica Ocidental, mas sob outra perspectiva inteiramente diferente da de Heidegger (bem entendido).
15 HEIDEGGER, s/d, p. 4: “Os Romanos traduziram physis por natura: natura, de nasci, nascer, ter sua origem (entsammen), em grego gen; natura: o que é o lugar de uma origem.” Em seguida: “O nome ‘Natureza’ passou a ser desde então a palavra fundamental que nomeia as relações do homem ocidental histórico com o ente, que ele não é e que ele mesmo é. Isso se evidencia pelo amontoado opressivo de antíteses que reinam desde então: natureza e graça (sobrenatureza), natureza e arte, natureza e história, natureza e espírito” (grifos meus).
16 VIVEIROS DE CASTRO, 2018, p. 31. Já sinto alguns sinais desses pensamentos que estão por vir, criando novos conceitos, “transversalizando” (cf. Viveiros de Castro) ou ainda, “forçando as fronteiras do nosso conhecimento” (cf. expressão recente de Rodrigo Duarte, numa banca de qualificação de tese de sua orientanda, Ana Rita Nicoliello, sobre a dança, o corpo e o pensamento de G. Deleuze). Estou, aliás, inteiramente de acordo com os termos por meio dos quais Duarte avaliou a pesquisa de Ana Rita.
17 VIVEIROS DE CASTRO, 2018, p. 94, grifos meus.
18 Tentarei justificar, na conclusão deste texto, a vigência do uso do par, quase obsoleto (dou a mão à palmatória), de conceitos, arte e natureza, para abordar a obra de bioarte de Eduardo Kac. Por outro lado, se aposentarmos esses conceitos, por quais outros os substituiremos? Não serão sempre “conceitos”, i.e., abstratos, genéricos? Não sofrerão das mesmas debilidades ou incapacidades: de captar, abranger, compreender ou “incluir” (verbo que adquiriu um sentido positivo político-extra) singularidades e, que diremos, corpos?
19 LATOUR, 2020, p. 35.
20 LATOUR, 2020, p. 35-36. Para explicar a ideia de “categorias marcadas”, Latour exemplifica com outro (mais um!) par homem/mulher. Ele escreve: “antes da revolução feminista, se utilizava a palavra ‘homem’ para falar de todo mundo de maneira indiferenciada e bastante preguiçosa [...]. Na linguagem dos antropólogos [...] o termo ‘homem’ é uma categoria não marcada: não levanta nenhum problema e não atrai nenhuma atenção. É quando se diz ‘mulher’ que a atenção é atraída para um traço específico, a saber, justamente o seu sexo; e é esse traço que torna, de fato, a categoria marcada e, portanto, destacada da categoria não marcada que lhe serve de pano de fundo”.
21 LATOUR, 2020, p. 35-36. Se entendi bem, no par tradicional, a Natureza apareceria como categoria não marcada, “pano de fundo” para a Cultura, categoria marcada. Ao propor trazer sempre juntos os dois termos, a tentativa de Latour é marcar as duas categorias, os dois “irmãos siameses”, uma vez que não dispomos de um termo correspondente ao “humano” (para o par homem/mulher), “a fim de obter os mesmos efeitos de correção da atenção” (LATOUR, 2020, p. 36).
22 Cf. DANOWSKI; VIVEIROS DE CASTRO, 2014, p. 95. O queixada (espécie de porco-do-mato) é “[uma] das caças mais apreciadas pelos índios amazônicos”.
23 Danowski e Viveiros de Castro (2014, p. 126-127) atribuem essa inédita consideração (em alguns casos, admiração) pelas vozes indígenas, da parte do mundo ocidental e, sobretudo, da filosofia acadêmica, à iminência da catástrofe ambiental: “A voz desses povos começa a ser ouvida em pelo menos alguns setores das sociedades privilegiadas do ‘Norte global’, aqueles que já se deram conta de que, desta vez, as coisas podem acabar mal para todo mundo, em toda parte, de um modo ou de outro”.
24 DANOWSKI; VIVEIROS DE CASTRO, 2014, p. 87.
25 KOPENAWA apud KRENAK, 2021. Transcrevo aqui trechos da conferência ministrada no contexto da Cátedra CALAS – IEAT. Quero chamar a atenção para esse novo modo de “citação” que, pelo menos no meu caso, está se tornando cada dia mais frequente e que consiste na transcrição da fala desse grande e inegável pensador-poeta-antropólogo! Creio poder designar essa “operação” de tradução (como chamá-la?). De qualquer modo, não é indiferente transferir para um texto com pretensões acadêmicas – isto é, essencialmente escrito, cheio de referências, notas e pés de página – o pensamento-filosofia transmitido oralmente, minha modesta tentativa de “transversalização”.
26 Essa ideia de uma “diplomacia” indígena é amplamente desenvolvida no livro de Danowski e Viveiros de Castro (2014). Para os(as) autores(as), “é preciso reconhecer que estamos numa guerra” (p. 117). Para resumir, sem muito rigor e, também, sem condições de explicitar melhor aqui o que está contido em cada conceito-personagem utilizado pelo(a) autor(a), acrescento: numa guerra entre “Terranos e Modernos”. Nesse “novo” Encontro (ou Desencontro?), o papel da diplomacia não poderia ser maior, sobretudo, se se compara o quanto não foram nada “diplomáticos” os colonizadores que chegaram por aqui, nas Américas, há mais de 500 anos!
27 Cf. Danowski e Viveiros de Castro (2014, p. 15): “Antropoceno [é uma] designação proposta por Paul Crutzen e Eugene Stoermer para o que eles entendem ser a nova época geológica que se seguiu ao Holoceno, a qual teria se iniciado com a Revolução Industrial e se intensificado após a Segunda Grande Guerra”. Um pouco adiante, na p. 16, os autores continuam: “O Antropoceno [...] é uma época no sentido geológico do termo, mas ele aponta para o fim da ‘epocalidade’ enquanto tal, no que concerne à espécie. Embora tenha começado conosco, muito provavelmente terminará sem nós: o Antropoceno só deverá dar lugar a uma outra época geológica muito depois de termos desaparecido da face da Terra. Nosso presente é o Antropoceno; este é o nosso tempo. Mas este tempo presente vai se revelando um presente sem porvir, um presente passivo, portador de um karma geofísico que está inteiramente fora do nosso alcance anular – o que torna tanto mais urgente e imperativa a tarefa de sua mitigação: ‘A revolução já aconteceu... os eventos com que temos de lidar não estão no futuro, mas em grande parte no passado [...] o que quer que façamos, a ameaça permanecerá conosco por séculos, ou milênios’ (Latour, B. Facing Gaia: six lectures on the political theology of nature, being the Gifford Lectures on Natural Religion)” (grifos originais).
28 KRENAK, 2021.
29 VIVEIROS DE CASTRO, 2018, p. 114-115. Trago aqui a passagem inteira na qual Viveiros de Castro altera cum grano salis a identificação tradicional do século XVIII, como o “Século das Luzes”, para as “trevas etc.”, a fim de esclarecer o contexto, em que o autor comenta a “teoria das multiplicidades”, que se encontra no segundo volume de Mil platôs, de Gilles Deleuze e Félix Guattari. O antropólogo escreve: “A multiplicidade deleuziana é o constructo que melhor parece descrever não só as novas práticas de conhecimento antropológico como os fenômenos de que elas se ocupam. Seu efeito é, antes de mais nada, liberador. Ele consiste em fazer passar uma linha de fuga por entre os dois dualismos que formam como as paredes da prisão epistemológica onde a antropologia se acha encerrada (para a própria proteção, bem entendido) desde as trevas dos séculos XVIII e XIX: Natureza e Cultura, de um lado, Indivíduo e Sociedade, do outro, os ‘quadros mentais últimos’ da disciplina, aqueles que, como se costuma dizer, não podemos considerar como falsos, pois é por meio deles que distinguimos o verdadeiro do falso. Mas não podemos realmente? Esses quadros mudam, e com eles, as possibilidades de pensamento; muda a ideia do que é pensar, e do que é pensável; muda a ideia de quadro junto com o quadro das ideias” (grifos meus).
30 DANOWSKI; VIVEIROS DE CASTRO, 2014, p. 46. Ousaria corrigir: uma pré-disposição. Eu teria de me preparar muito ainda para uma longa e necessária discussão do capítulo “O fora sem pensamento ou a morte de Outrem”, no qual, a meu ver, se concentra mais o debate “filosófico” entre as várias correntes que estão dando vazão à verdadeira “angústia metafísica” (p. 44 – concordo plenamente com este diagnóstico, inclusive com a bipolaridade, característica da nossa triste época – sobretudo da juventude – dividida entre “a exuberância maníaca e a depressão melancólica” – p. 45) que atingiu a humanidade, e talvez, em último lugar, mas, em particular, os(as) filósofos(as). Gostaria muito de discutir com ambos o livro como um todo, mas, especialmente, alguns pontos nesse capítulo que me pareceram equivocados sobre a filosofia kantiana. Só para dar um exemplo, eu jamais atribuiria a Kant a “origem oficial da concepção moderna do Homem [...] como poder constituinte, legislador autônomo e soberano da natureza” (p. 43). Para a História da Filosofia, a sentença, “O Homem é o mestre soberano de toda a natureza” é de René Descartes, o verdadeiro criador da subjetividade moderna! No seu famoso Discurso do método, publicado em 1637, Descartes defendeu a dominação humana da natureza pelo “progresso da ciência e da técnica”. Enquanto, se tomarmos a filosofia crítica kantiana como um todo, quero dizer, incluindo nela a parte estética e teleológica, surgirá um conceito de natureza bem diferente daquele da epistemologia, que está na Crítica da razão pura! A natureza bela ou sublime não é, de forma alguma, uma natureza subjugada ou dominada pela técnica humana! Ao contrário, é uma natureza que emerge na sua desenvolta, potente e incontrolável (para o bem e para o mal humanos) “liberdade”! Não seria possível discutir aqui essa imensa questão! Apesar de não precisarmos acompanhar Heidegger até o ponto de pensar na Crítica da razão pura como uma ontologia, não podemos ignorar a famosa “Disputa de Davos entre Ernst Cassirer e Martin Heidegger” (2017), na qual encontramos a importante observação do filósofo de Todtnauberg sobre o conceito de natureza em Kant, pelo menos, ampliando-o – i.e., levando-o para além do “objeto de conhecimento” e, justamente, para além da “epistemologia”: “Para Kant, natureza nunca significa: objeto da ciência natural matemática; mas, antes, o Ente da natureza é o Ente no sentido de estar à mão [Vorhandenen]. O que Kant realmente queria nos dar com a Doutrina dos Princípios não é uma doutrina estrutural categorial do objeto da ciência natural matemática. O que ele queria era uma teoria do Ente em geral. Kant procura uma teoria do Ser em geral, sem supor objetos que fossem dados, sem supor uma determinada região do Ente (nem a psicológica, nem a física). Ele procura uma ontologia geral, a qual se encontra antes de uma ontologia da natureza enquanto objeto da ciência natural e antes de uma ontologia da natureza enquanto objeto da psicologia. O que eu quero indicar é que a Analítica não é apenas uma ontologia da natureza enquanto objeto da ciência natural, mas, antes, uma ontologia geral, uma metaphysica generalis criticamente fundada. Kant, ele mesmo, diz: a problemática dos Prolegômenos, na qual ele ilustra como a ciência natural é possível, e assim por diante, não é o motivo central” (CASSIRER; HEIDEGGER, 2017, p. 164-165, grifos meus).
31 DANOWSKI; VIVEIROS DE CASTRO, 2014, p. 96.
32 Há uma estranha “afinidade” do pensamento heideggeriano com a “abjeção”. Esse pensamento não teme o abjeto, nem jamais pretendeu alcançar qualquer “pureza” (há um mal conhecido texto de Heidegger sobre a “pobreza”). Para ele, a Filosofia nunca ocupou o lugar do “sagrado” intocável, que só, talvez, a poesia (sobretudo, a de Hölderlin) tenha ocupado. Além disso, sempre reconheceu a terrível proximidade entre o mal e o pensar, talvez por isso tenha acabado por sucumbir, quando se encontrou com a “História”, com H maiúsculo!
33 É claro que Heidegger não estava pensando nos indígenas e, menos ainda, em suas cosmovisões. É desprezível e lamentável reconhecer que ele só pensava nos alemães e nos gregos. Por outro lado, sem querer bancar a advogada dos Modernos (cf. DANOWSKI; VIVEIROS DE CASTRO, 2014, p. 123 – nota 148 – referem-se à autodeclaração de Bruno Latour como “diplomata dos Modernos”), seria ilegítimo, a meu ver, classificar o pensamento de Heidegger como “antropocêntrico”, seria ignorar sua crítica insistente e até acirrada à “centralidade humana” na Filosofia Ocidental. Assim como ousaria discordar do rótulo de “essencialista” que nele colam, de novo, Danowski e Viveiros de Castro (2014, p. 130) (“os tecnófilos do gênero Breakthough Institute são tão essencialistas como seus inimigos retro-heideggerianos”). O argumento contra esses dois rótulos poderia se estender demais para uma nota de rodapé. Cito, então, para resumir, uma descrição que considero justa e esclarecedora do “anti-humanismo” de Heidegger: “O homem não obtém [tient] suas propriedades e seus poderes de si mesmo; ele não se dá [a si mesmo] o ser nem a relação com o ser. Ele não é o centro dos entes; ele se mantém [tient] ‘no meio do ente’, mas não é o meio [sans en être le milieu], longe de possuir o segredo de sua própria essência, ele jamais tem acesso a ela” (HAAR, 2002, p. 95-96).
34 Trecho da entrevista realizada por Cleber Lambert e Larissa Barcellos, durante o 3º Forum International de Philosophie Politique et Sociale, que ocorreu entre os dias 8 e 16 de julho de 2011 na Université de Toulouse 2 Le Mirail, em Toulouse (França). Durante o simpósio, Eduardo Viveiros de Castro apresentou alguns dos temas abordados em seu livro Metafísicas canibais: “Propus definir a antropologia como uma metafísica experimental, que realiza experimentos com o pensamento alheio, o pensamento indígena, tomando-o, por exemplo, como um pensamento filosófico. Como se aquilo que os índios estivessem pensando exprimisse ‘um pensamento’, como se fala em ‘pensamento grego’, ‘pensamento pré-socrático’ etc. Vamos tomá-lo como se fosse, o que não quer dizer que ele não seja. Vamos tomá-lo nesse sentido específico, como representando um pensamento. Experimentar esse pensamento, pensar como, imaginar como seria pensar como um índio. E ao mesmo tempo é pensar com o pensamento indígena, porque pensar como o pensamento indígena a gente sabe que só poderia fazer em pensamento, não se pode fazer na realidade porque nós não somos indígenas, mas pensar com esse pensamento é algo que não só se pode como eu entendo que se deve, é um experimento de pensamento fundamental. A antropologia sempre foi concebida e praticada como um discurso sobre os outros, os índios, por exemplo. Estava na hora – não fui o primeiro de jeito nenhum a dizer isso – de dizer com todas as letras que a antropologia precisa pensar com o pensamento indígena, e não pensar simplesmente sobre o pensamento indígena. Tomar esse pensamento como interlocutor, eventualmente polêmico, talvez antagonista, como interlocutor à sua altura, à altura do pensamento antropológico, e não como algo que está em posição de objeto, e você ali em atitude de sobrevoo, em posição de dominância sobre esse pensamento. O antropólogo como aquele que conhece as razões que esse pensamento não conhece. As razões desse pensamento que esse pensamento não conhece” (grifos meus). Num dos últimos capítulos do livro Metafísicas Canibais (VIVEIROS DE CASTRO, 2018, p. 231), “O inimigo no conceito”, Viveiros de Castro também se refere a esta possibilidade, não de “pensar como os índios; podemos, no máximo, pensar com eles”. E, um pouco antes: “Se há algo que cabe de direito à antropologia, não é a tarefa de explicar o mundo de outrem, mas a de multiplicar nosso mundo, ‘povoando-o de todos esses exprimidos que não existem fora de suas expressões’ (citando DELEUZE, Diferença e Repetição)”.
35 Sobre a importância da analogia para a filosofia kantiana, ver, entre outros: VAIHINGER, 1925; BECKENKAMP, 2017, p. 210-211: o procedimento analógico “não é algo secundário na obra de Kant, mas ele cumpre uma função capital”, que é a possibilidade de “pensar o suprassensível”. Ou, um pouco mais adiante, a analogia aparece como “um precioso recurso”, situado menos na razão e mais na “faculdade do juízo reflexionante” (p. 224).
36 VIVEIROS DE CASTRO, 2018, p. 33.
37 LATOUR, 2020, p. 121: “É por isso que, ao procurarmos nos desfazer da ideia de ‘natureza’, precisaremos também nos desfazer da teologia que está presa a ela – sem nos esquecermos da política que nela se misturou”.
38 KAC, 2020, grifos meus.
39 KAC, 2020.
40 KANT AA 05: 319; CFJ, p. 217: “O gosto, assim como a faculdade de julgar em geral, é a disciplina (ou corretivo) do gênio, cortando-lhe bem as asas e tornando-o bem comportado ou polido; ao mesmo tempo, porém, ele lhe dá uma orientação no que diz respeito a para onde e o quão longe ele deve estender-se, de modo a permanecer conforme a fins; e, introduzindo clareza e ordem na abundância de pensamentos, ele torna as ideias conserváveis, capazes de uma aprovação geral e duradoura, de uma posteridade entre os outros e de uma cultura sempre crescente. Assim se no conflito entre ambas as propriedades de um produto algo deve ser sacrificado, seria melhor que isso acontecesse do lado do gênio; e a faculdade de julgar, que em assunto das belas artes emite seus enunciados a partir de princípios próprios, preferirá sempre romper com a liberdade e a riqueza da imaginação a romper com o entendimento” (grifos meus).
41 Recentemente, fui obrigada a reler, depois de muito tempo, as Observações sobre o sentimento do belo e do sublime de Kant (1993). Como se sabe, trata-se de um livro da fase pré-crítica, cuja perspectiva é mais “antropológica” e empírica do que estritamente filosófica, como o próprio Kant nos adverte, logo nas primeiras páginas: “[a]qui lanço meu olhar, mais de um observador do que de um filósofo” (KANT, 2013, p. 20). Hoje, esse livro tem sido alvo de intensas e legítimas críticas, que o atacam por todos os lados, por suas ideias eurocêntricas, cheias de preconceitos racistas, machistas, sexistas etc. Apesar de todos esses questionamentos, com os quais estou, aliás, de pleno acordo, há observações sobre os vícios e defeitos humanos que creio serem ainda hoje válidos e aqui, no nosso “contexto”, verdadeiramente oportunos, uma vez que cabem como uma luva na caracterização do nosso artista. Vejam vocês mesmos: por exemplo, o que Kant nos fala dos temperamentos vaidosos, orgulhosos, soberbos e presunçosos, numa única página (p. 74) de seu livro: “[a] vaidade solicita o aplauso, é volúvel e inconstante [...] A soberba é cheia de traços grandiosos, falsamente imaginados. [...] O orgulho [...] é apenas uma consciência elevada de seu próprio valor [...] A conduta do orgulhoso diante dos outros é indiferente e fria [...] O presunçoso é um soberbo, cuja conduta tem por característica marcante o desprezo pelos outros. No comportamento, é grosseiro.” (E numa nota de rodapé nesta mesma página 74): O “soberbo [...] faz uma imagem excessiva e falsa de seus próprios méritos [grifos meus]; pode acontecer de não se estimar mais do que vale. Todavia, revela um falso gosto em impor externamente esse seu valor” (grifos do autor).
42 Basta-nos uma rápida consulta à página do artista na internet para nos informar que sua obra está presente nas mais prestigiosas instituições de arte do mundo, ou, pelo menos, do mundo ocidental, naquelas instituições que têm o poder para legitimar, diplomar e rotular, digamos assim, o que é (ou não) uma obra de arte! Só para citar alguns exemplos: o Museu de Arte Moderna em Nova Iorque, a Tate Modern em Londres e o Museu de Arte Contemporânea em São Paulo (http://ekac.org/kacbio300.html, acesso em: 25 mar. 2022).
43 HOUAISS, 2009, verbete “Arquétipo”.
44 Voltarei a esse ponto na conclusão.
45 VAIHINGER, 1925, p. 27. O contexto para o qual o autor traz o comentário de Schiller é o de uma tentativa obstinada de distinguir ficção e hipótese, ambas aparecem, em geral, para desespero de Vaihinger, confundidas! Ele está interessado em saber se as noções de Goethe, “planta original” e “animal original”, são uma ficção ou uma hipótese. Do nosso lado, é evidente, o problema só nos interessa indiretamente. Afinal, Eduardo Kac jamais pretendeu (como talvez o mais ainda presunçoso Goethe o pretendesse...) que a sua obra fosse uma contribuição para o desenvolvimento da ciência; ao contrário, Kac utiliza-se do desenvolvimento científico e tecnológico de ponta para a “produção” de sua obra. Em todo caso, cito a conclusão de Vaihinger: trata-se de perguntar “se no estado atual de nosso conhecimento a existência histórica de um tal ‘arquétipo’ pode ser assumida [caso em que seria uma ‘hipótese’/vaf], ou se a mera postulação imaginária [caso em que seria uma ‘ficção’/vaf] de tal forma original ainda serve a algum propósito científico”.
46 KANT, AA 05: 308; CFJ, p. 205-206.
47 KANT, AA 05: 308; CFJ, p. 205: “Vê-se a partir disso que o gênio 1) é o talento de produzir algo para o qual nenhuma regra determinada pode ser fornecida [...] vê-se, por conseguinte, que a originalidade tem de ser a sua primeira propriedade” (grifos meus).
48 KANT, AA 05: 308; CFJ, p. 206: “Daí que a palavra ‘gênio’ venha presumivelmente de genius, o espírito protetor e condutor que é dado a um homem no seu nascimento [...] e que fornece a inspiração da qual emanam aquelas ideias.”
49 Também aos juízos determinantes práticos, que não vêm ao caso.
50 HOUAISS, 2009, verbete “originalidade”: “1. qualidade do que é inusitado, do que não foi ainda imaginado, dito, feito etc.; inovação, singularidade. 2. Derivação: sentido figurado. Capacidade para expressar-se de modo independente e individual; habilidade criativa; criatividade. 3. Derivação: por extensão de sentido. Excentricidade, extravagância”.
51 Mais uma vez, recorro à famosa passagem do § 46 da CFJ (AA, 05: 307; CFJ, p. 205), na qual Kant sustenta que o “Gênio é o talento (dom natural) que dá a regra à arte. Uma vez que o talento, como faculdade produtiva inata do artista, pertence ele mesmo à natureza, poderíamos nos exprimir assim: gênio é a disposição inata do ânimo (ingenium) através da qual a natureza dá a regra à arte” (grifos do autor).
52 DANTO, 2006, p. 146: “Em minha concepção, a pop não era só um movimento que vinha após um movimento e era substituído por outro. Era um momento cataclísmico (grifo meu) que assinalava profundas mudanças sociais e políticas e que produzia profundas transformações filosóficas no conceito de arte. Foi o que realmente proclamou o século XX (sic!), que durante muito tempo – 64 anos (as Brillo Boxes aparecem em 1964) – havia enlanguescido no rastro do século XIX”. Seria longo demais discutir a afirmação que fiz do sentido extremamente “político” da avaliação de Danto das Brillo Boxes. Já abordei essa questão em “Kant e a arte contemporânea” (FIGUEIREDO, 2017).
53 KANT, AA 05: 314; CFJ, p. 211.
54 KANT, AA 05: 313; CFJ, p. 211. Talvez tenha sido por meio dessas duas noções de “ideia estética” e de “princípio animador” (o “espírito” que está sem exceção presente em todos os produtos do gênio) que Kant tenha conseguido reconfigurar (atualizando-a ao mesmo tempo que dando a ela novos nomes e conceitos) a tese antiga e tradicional da “inspiração”.
55 KANT, AA 05: 314; CFJ, p. 211.
56 KANT, AA 05: 314; CFJ, p. 211-212: “Vê-se facilmente que ela é a contraparte (pendant) de uma ideia da razão, a qual, inversamente, é um conceito ao qual nenhuma intuição (representação da imaginação) pode ser adequada” (grifos do autor).
57 KANT, AA 05: 308; CFJ, p. 206.
58 KANT, AA 05: 318; CFJ, p. 216: “o gênio é um favorito da natureza, do tipo que se deve considerar como um fenômeno raro” (grifo meu).
59 KANT, AA 05: 308; CFJ, p. 206, grifos meus.
60 De Duve, na primeira página (15) do seu livro Aesthetics at Large (DE DUVE, 2018), remete-se a Kant after Duchamp, no qual ele já havia encontrado um “método de leitura”. Esse método consistiria num “convite a reler a Crítica da faculdade de julgar de Immanuel Kant substituindo mentalmente a palavra beleza em todas as suas ocorrências pela palavra arte e a se perguntar se algo de essencial seria mudado na abordagem de Kant”.
61 DE DUVE, 2018. Logo em seguida à passagem citada na nota anterior, comentando o automatismo e até uma certa estupidez daquele “método”, De Duve reitera sua posição ao descrever as condições de produção de obras de arte como os readymades de Duchamp, as quais, a meu ver, são absolutamente “aplicáveis” à bioarte de Eduardo Kac: há uma “quase intercambialidade entre o artista e o espectador em frente dos readymades. Tecnicamente, suas posições são idênticas: nem o artista, nem o espectador produziram os objetos; o artista somente desafiou os espectadores a aprovar ou desaprovar a pretensão [claim] de que eles devem ser vistos como arte”.
62 Há outros exemplos de arte contemporânea que usufruem dessa “ampliação” do lugar de produção de obras de arte, de um modo que eu qualificaria ainda de “belo”. São os casos exemplares das placas de policarbonato de Iole de Freitas, exibidas em várias exposições, entre outras, na Documenta 12 de Kassel, na Alemanha, em 2007. Essas imensas chapas flexíveis de policarbonato foram produzidas nos hangares de uma indústria naval no Rio de Janeiro, que construía os navios petroleiros para a Petrobras. Cf. FIGUEIREDO, 2017, p. 254-255.
63 Longe de esgotada, talvez ainda por ser feita, está a avaliação filosófica dos efeitos da disponibilidade de uma rede de comunicação/informação virtual como é a Internet não só sobre a produção da arte como sobre a constituição de um novo público. Talvez tenha ocorrido ou esteja ocorrendo uma nova mutação, uma verdadeira “revolução”, para a qual contribuiu, sem sombra de dúvida, a obra de Eduardo Kac. O artista brasileiro foi um precursor na incorporação dos meios tecnológicos mais avançados e do conhecimento científico de ponta.
64 Descrevo a obra segundo os termos do próprio autor: o Uirapuru é o nome tanto de um pássaro da Amazônia quanto de uma criatura mítica. Ele canta uma única vez por ano na floresta tropical, quando está construindo seu ninho; mesmo assim, esse canto só dura 5 a 10 minutos no máximo e muito cedo pela manhã. De acordo com a lenda, o canto do Uirapuru é tão lindo que os outros pássaros param de cantar para ouvi-lo. No entanto, conforme outra lenda, o ser humano se transforma depois da morte num Uirapuru encantado, trazendo vida nova para a floresta silenciosa. Tanto na lenda, quanto na realidade, Uirapuru é símbolo de uma beleza rarefeita. Na mitologia pessoal de Eduardo Kac, como ele mesmo declara no seu sítio, “Uirapuru é um peixe voador que flutua sobre a floresta, cantando e dando sorte aos habitantes da floresta. De acordo com a minha versão, o Uirapuru canta quando recebe os espíritos daqueles que estão longe. A floresta do Uirapuru está povoada de ‘pingbirds’, criaturas fantásticas cuja melodia oscila de acordo com o ritmo do tráfego global da internet. O próprio espírito do Uirapuru é recebido por um peixe virtual que voa e interage online no espaço virtual com outros peixes virtuais. Então, o comportamento do Uirapuru contribui para aumentar o tráfego da internet e estimula os pingbirds a cantarem ainda mais frequentemente”.
65 DE DUVE, 2018, p. 34-35: “Duchamp, elegantemente, cuidou para que nenhum escândalo manchasse a reputação da jovem sociedade ao esperar até que a exposição terminasse para publicar – e muito confidencialmente, na pequena revista The Blind Man, que ele mesmo e alguns amigos editavam – um editorial intitulado ‘O caso Richard Mutt’, ao lado da foto de um mictório [...] triplamente legendado, ‘Fonte de R. Mutt’, ‘Fotografia de Alfred Stieglitz’ e ‘A EXPOSIÇÃO RECUSADA PELOS INDEPENDENTES’. Com essa foto, Duchamp colocou uma mensagem no correio e esperou até que chegasse a hora certa.” “Não antes da década de 1940, quando Duchamp criou – e de novo, muito confidencialmente – a Boîte-en-Valise, uma caixa contendo réplicas em miniatura da maioria de suas obras, incluindo a Fonte, ele reconheceu abertamente a paternidade do mictório de R. Mutt”.
66 HERKENHOFF, 2004, p. 19, grifo do autor.
67 HERKENHOFF, 2004, p. 21.
68 HERKENHOFF, 2004, p. 21, grifos meus.
69 Cf. HERKENHOFF, 2004, p. 22: “Eduardo Kac quer definir uma poética das novas tecnologias como um traço de união entre um conhecimento avançado em trânsito e instrumentos em mutação acelerada”.
70 HERKENHOFF, 2004, p. 21.
71 A maioria dos(as) filósofos(as) e críticos(as) da arte (pelos menos aqueles com quem estou dialogando, Thierry de Duve e Arthur Danto, mas muito antes dos dois, faça-se justiça, Adorno, logo nas primeiras páginas da sua Theoria Aesthetica, ao se perguntar sobre o direito da arte à existência) concorda que a característica específica e marcante da obra de arte moderna/contemporânea consista em incluir como sua parte essencial a questão filosófica “O que é arte?” Pergunto ainda: não seria legítimo traduzir essa “questão filosófica” para os termos kantianos: “dá muito o que pensar”?
72 DANOWSKI; VIVEIROS DE CASTRO, 2014, p. 133.
73 DANOWSKI; VIVEIROS DE CASTRO, 2014, p. 118.
74 DANOWSKI; VIVEIROS DE CASTRO, 2014, p. 119.
75 Cf. nota *.
76 HERKENHOFF, 2004, p. 21, grifos meus.
77 HERKENHOFF, 2004, p. 21
78 DANOWSKI; VIVEIROS DE CASTRO, 2014, p. 130.
79 KANT, AA 05: 314; CFJ, p. 212: Aliás, esta criação de uma segunda natureza é (mais) um dos importantes critérios que definem o gênio: “[a] imaginação (como faculdade produtiva de conhecimento) é, com efeito, muito poderosa na criação de uma outra natureza, por assim dizer, a partir da matéria [Stoff] que a natureza efetiva lhe dá.” Tradução ligeiramente modificada.
80 DANOWSKI; VIVEIROS DE CASTRO, 2014, p. 76.
81 HERKENHOFF, 2004, p. 21.
82 Devo essa “expressão” a Simone Osthoff, que a trouxe para o nosso diálogo não para designar a obra de Kac. O “deslocamento” de contexto é de minha inteira responsabilidade.