A noção de “hiperstição”, tradução de palavra criada por Nick Land, autor referência do texto aqui comentado, “Fábrica de hiperstição, ou sobre como perdemos o mundo”, de Guilherme Foscolo, é mais um neologismo que traz a marca, também presente em outras palavras e expressões recentes que utilizam prefixos como “hiper”, “mega” ou “ultra”, da realidade modificada tecnologicamente de modo incessante e inquietante. Nesses prefixos, está estampado o sentimento ambivalente de choque e fascínio, de admiração e de submissão diante do poder avassalador de tudo o que tem sido gestado no ponto de fusão entre o capital e as novas tecnologias de comunicação digital. As “hiperstições” são profecias turbinadas pela velocidade e capilaridade instantânea das redes de sociabilidade eletrônica, que passaram a constituir os elementos fundamentais da própria forma em que tempo e espaço se organizam hoje. Mas a hiperstição não pressupõe apenas uma narrativa qualquer, uma associação de imagens ou palavras, e os meios técnicos para sua difusão instantânea. Ela precisa deflagrar um movimento desejante de massa instantâneo. Ela tende a ser montada em cima do medo, como as superstições. A fantasia que ela deflagra no sujeito é impulsionada pelo desejo de negar alguma coisa que ensombrece o seu horizonte, e que lhe surge de modo tão instantâneo quanto insuportável. É uma possível história do futuro, surgida de uma hora para a outra, que ele deseja mais que tudo evitar. Não lhe é dado o tempo de checar sua plausibilidade: na dúvida é mais prudente tomá-la como verdade, ou seja, tê-la por verdadeira, tal como uma superstição: para quê checar se algo de ruim acontece de fato a quem passa por debaixo de uma escada? Melhor não passar. Mas, ao contrário das tradicionais e persistentes superstições como a citada, as hiperstições são superstições com todo o brilho de novidades, turbinadas pela comunicação digital, ou pelo que já foi chamado de “hipercomunicação”.1
“As superstições são meramente falsas crenças, mas hiperstições [...] funcionam causalmente para trazer sua própria realidade”, diz Nick Land, citado por Guilherme Foscolo. A hiperstição “pode ser definida como a (tecno) ciência experimental de profecias autorrealizáveis”, continua a citação. Profecia é um tipo de narrativa, ela descreve o que irá acontecer, seja com base em observações do que já aconteceu, seja por comércio com alguma fonte supranatural responsável pelo que irá acontecer. Elas são pretensamente objetivas, por mais que, na verdade, devam sua existência aos desejos ou temores que o profetizador aposta que são os de seu destinatário. Ou seja, na verdade são como fantasias ou sonhos diurnos, cuja divulgação, numa fórmula bem trabalhada, produz expectativas, e estas influenciam ações que podem eventualmente ajudar a moldar a realidade futura.
Os acontecimentos produzidos neste molde são inúmeros. O caso que abre o texto de Guilherme Foscolo é o chamado “pizzagate”, da época da eleição presidencial americana em que Donald Trump venceu a disputa contra Hilary Clinton. O processo hipersticioso foi iniciado em blogs anônimos. Uma insinuação sem qualquer fundamento foi replicada e aumentada por milhares de usuários da internet, até que um indivíduo fortemente armado invadiu uma pizzaria em Washington para libertar crianças de um esquema hediondo pretensamente ligado à candidata democrata, um delírio que quase terminou em chacina. Sua intenção era salvar o mundo de uma rede de perversos absolutos. A cadeia de associações que o levaram a concluir que uma determinada pizzaria, de propriedade de imigrantes asiáticos, seria com toda certeza o epicentro do mal, era, claro, das mais delirantes que se pode conceber. O risco de vida que os atônitos proprietários e funcionários da pizzaria correram na mira do fuzil de guerra do “justiceiro” foi, no entanto, real.
A teoria conspiratória que lhe forneceu uma precária moldura narrativa nasceu em blogs e páginas de notícias alternativas (os “alternative facts” citados por Trump em uma entrevista coletiva à imprensa). A metástase de reiterações e acréscimos de especulações alucinadas e afirmações insustentáveis, porém, tem um direcionamento, não é um surto de boatos aleatórios que se conectam mecanicamente por afinidade. A hiperstição não é uma força mágica dispersa na atmosfera, agindo sobre os sujeitos não se sabe vindo de onde. Ao contrário, a hiperstição tem uma orientação inicial decisiva: é fácil ver de onde partem os boatos criminosos e que efeitos querem produzir, a quem interessam e quem é o líder de carne e osso que catalisa o processo todo, que irá dele se beneficiar. Mas gostaria aqui de dirigir nossa atenção para os participantes espontâneos do processo, e que são decisivos para a dinâmica descrita por Foscolo como “retroalimentação positiva”. Apesar da contribuição de robôs digitais e do fato de ter início em verdadeiras oficinas especializadas na produção de conteúdos ficcionais, destinados a serem veiculados como se não fossem ficcionais, e que trabalham coordenadamente para alguém, podemos ter certeza de que boa parte da maré tem a contribuição de indivíduos não especializados, amadores, que encontraram nessa militância digital uma historicamente inédita forma de participação em uma massa.
Como afirmado por diversos autores repassados por Freud em “Psicologia das massas e análise do eu”, quando imerso no sentimento de massa cada indivíduo faz coisas que não costuma ousar fazer quando está só.2 Em seu resumo da teoria de Gustave Le Bon, produzida no fim do século XIX, Freud sublinhou, em 1921, aspectos desta que produzem instantâneo reconhecimento nos seus leitores nesta nossa terceira década do século XXI. A diferença é que, agora, ele pode se juntar à massa a qualquer instante, de qualquer lugar, e é por ela constantemente requisitado e instigado. Tudo o que ele precisa fazer para se sentir parte da massa é receber e repassar conteúdo, reiterando-o, sentindo-se coautor, desejando seus efeitos. Freud resume com suas palavras elementos da descrição feita por Le Bon: “A massa é impulsiva, volúvel e excitável. [...] Não tolera qualquer demora entre o seu desejo e a realização dele. Tem o sentimento da onipotência; a noção do impossível desaparece para o indivíduo na massa. A massa é extraordinariamente influenciável e crédula, é acrítica, o improvável não existe para ela”.3 O ponto em que Freud faz sua resenha dos pontos mais importantes da incursão de Le Bon pelo tema precede sua crítica fundamental, a qual abre o caminho para o caminho que ele propõe, agora a partir da “análise do Eu”4, mas é muito eficaz em suscitar a percepção de semelhanças presentes do contexto atual.
A imagem romantizada do hacker solitário, surgida nos anos 1990, e filmes como Matrix, de 1999, ajudaram involuntariamente a preparar o terreno para esse novo membro de uma massa. Em fins do século passado, quando a internet ainda era vista por alguns por um viés utópico, o hacker era pintado em sua mesa num quarto penumbroso, de onde enfrentava o sistema com o seu PC de tela âmbar. Essa imagem, aparentada com a do justiceiro solitário ou do guerrilheiro insurgente forneceu um ideal egóico para muitos desses participantes, em sua maioria realmente solitários, sem experiência concreta de associação política, que entram no jogo sob codinomes como “sincerão indignado”, e cuja motricidade raramente se dirige para algo fora do âmbito de seu teclado, mas que eventualmente encontra expressão motora em alguém que sai do quarto, como o invasor de pizzaria ou como o integrante da horda que invade um parlamento.
Mas continuemos com nosso foco no participante da massa digital, considerado como indivíduo, e levantemos quais os elementos mais marcantes que o texto de Guilherme Foscolo apresenta. Um dos aspectos mais destacados por quem observa atônito este processo é o caráter absurdamente fantasioso e totalmente descompromissado com qualquer possibilidade de aferição das afirmações e fatos veiculados nos atos de comunicação que mantêm essa massa, e também a desproporção entre seu afastamento da realidade e sua causalidade real. Como diz Foscolo, “crenças (não importa se falsas ou verdadeiras) constituem princípios de ações”. Poderíamos talvez mudar ligeiramente o terreno da discussão, passando do terreno do verdadeiro e do falso para o do desejo. A convicção, por exemplo, de que modos de vida que fogem minimamente ao modelo patriarcal e heteronormativo são ameaças que devem ser coibidas a todo custo não é verdadeira nem falsa, a rigor. É um desejo de alguém. De onde provêm desejos como esse, o que eles revelam e o que escondem dos sujeitos que os professam, são outros quinhentos. O que eles possuem de perverso, na medida em que tendem ao limite em que o outro é anulado enquanto sujeito, também pode e deve ser assinalado, embora não possamos ir mais adiante aqui. O que está em causa no texto de Foscolo é, antes, que esse desejo faça uso de “fatos alternativos” como meio de realização. O uso de fatos alternativos não é uma novidade, a história está coalhada de exemplos. O uso de fatos alternativos caracteriza um modo de relação com os desejos. Este não se distingue do que Freud chamou de “onipotência dos pensamentos”, expressão que tomou emprestada de um paciente, e que ele entende como sendo “a inabalável confiança na possibilidade de controlar o mundo e a impermeabilidade às simples experiências que poderiam instruir o homem sobre seu verdadeiro lugar no mundo”.5 Um dos contextos do uso desta expressão por Freud é o terceiro ensaio de Totem e tabu, e serve ali para analisar o fundamento psicológico da magia. O praticante de magia tem como fundamento, segundo Freud, “uma enorme confiança no poder de seus desejos. No fundo, tudo o que ele realiza por meio mágico deve acontecer apenas porque ele o deseja. Fica parecendo que apenas a ação mágica, devido à sua semelhança com o resultado desejado, faz com que ocorra”.6
Com certeza existem outras formas de compreender a prática da magia. Acreditamos, no entanto, que essa seja bem adequada para o caso em questão. Arriscamos dizer que o sex appeal da hiperstição reside na reatualização desta onipotência narcísica como movimento de massa. Enquanto tal, não constitui novidade na história. Mas a convivência cotidiana nas redes de “sociabilidade eletrônica” se revelou o terreno mais propício para esta dinâmica que jamais existiu. Na excitação do revoltado online por sua participação no processo mágico digital reside a principal força da hiperstição. Esses soldados da guerra política se interligam através de uma regressão em massa a um tipo de satisfação que tende a desprezar qualquer princípio de realidade, qualquer resistência externa. O seu lema poderia ser “o meu maior desejo é poder realizá-lo”, e remete a uma instância do desenvolvimento do sujeito em que a introjeção de negativas e limites ainda é muito frágil.
Isso fica patente em elementos da iconografia que é produzida nesse meio. O texto de Foscolo traz em certo momento a atribuição de um papel declaradamente “mágico” à produção de memes. “Em 2015”, diz Foscolo,
o termo “meme magic” difundiu-se pelo 8chan a partir da criação de dois sub-fóruns – /bmw/ (Bureau of Memetic Warfare) e /magick/. O termo refere-se à capacidade dos memes de produzir consequências reais para o mundo – retroativamente, os fóruns buscavam resgatar memes que teriam antecipado eventos no mundo real.
Atribui-se à meme magic um papel chave na ampliação do círculo de participantes da hiperstição, conquistando novos aliados, contagiando-os com o desejo de participar da mágica. O alvo visado, no vocabulário utilizado pelos usuários iniciados, são os “normies”, corruptela derrisória de normal. O participante das fábricas de memes, um tipo que se encontra perto da nascente das ondas de disparos de hiperstições, e se sente algo como um xamã, é ungido por “Pepe Frog”, entidade capturada de uma história em quadrinhos que, à revelia de seu criador, se tornou um dos símbolos recorrentes de empreendimentos da chamada “direita alternativa”, e consiste na imagem de um sapo verde munido de uma varinha mágica e chapéu de mago. O meme é uma linguagem que condensa uma associação de ideias de modo simples e de inteligibilidade imediata. A associação de ideias produzida na mente do criador de memes, tal como um feitiço bem pronunciado, produzirá efeitos mágicos, incorporando áreas normies, ampliando o território dos iniciados, e suscitando respostas motoras ou fisiológicas nos novos incorporados. Quanto mais alternativos são os fatos associados nos memes, quanto mais sua lógica de associação é arbitrária e obediente apenas ao que o participante da massa digital quer que seja real, mais eficaz e assombrosa parece ser a mágica que crê estar realizando.
Mas falemos um pouco dos “normies”. O dicionário Cambridge diz que normie é “uma pessoa normal, que se comporta do mesmo modo que a maioria das pessoas em sociedade”.7 O uso do termo no contexto dos grupos difusores de memes da direita dita alternativa é opositivo, e pressupõe uma diferença entre pessoas de comportamento padronizado e os devotos de Pepe Frog. Os normies são integrantes de um grupo mais numeroso, porém também menos ágil e eficaz. No mundo de Harry Potter, seriam os “trouxas”. Mas a comparação aqui é equivocada. Os trouxas, que nunca entraram na escola de Hogwarts, não acreditam em magia. Mas nós, os normies, sim. Somos todos hipersticiosos.
Nós, os normies, temos geralmente pouca consciência da dimensão em que participamos, em medidas variáveis, da mesma onipotência dos pensamentos dos praticantes da meme magic. O labor diário de construir uma persona nas redes de “sociabilidade eletrônica”, a construção incessante de um “show do eu”, na expressão usada em diversos textos por Paula Sibília, atividades extremamente comuns hoje em qualquer extrato sociopolítico, têm, em graus variados, componentes afins com a evitação do que Freud chama de “teste de realidade”. Os avatares que são criados ali não pedem por qualquer tipo de confirmação. Na verdade, as redes reinventaram o teste de realidade, o colocaram em outro patamar, que se constrói agora em torno da recepção medida em termos quantitativos. O que importa é persuadir o olhar dos outros para que reiterem aquilo que exibem como uma performance de si mesmos. A realização suprema consiste em iniciar um circuito de replicação no mais curto intervalo de tempo possível. Trata-se do que já foi chamado em nossa língua de “causar” ou “viralizar”, que consiste na replicação entusiástica dos nossos conteúdos postados pelos “amigos”. Como todos participam do mesmo jogo, não há necessidade premente de interrompê-lo a fim de checar se há contradições. A saída deste circuito de retroalimentação pode ser adiada, talvez até indefinidamente. É impossível não perceber a semelhança essencial entre este comportamento cotidiano nas redes e o dos participantes das fábricas de meme magic.
Para concluir esse breve comentário, gostaria de acrescentar um outro aspecto a esse quadro. Diríamos também que esta dinâmica toda deixa parte dos normies com o inquietante sentimento de estar sendo levada de roldão por um processo que possui caraterísticas sobre-naturais. A internet, que possibilitou a comunicação em redes digitais, foi saudada, na década de 1990, como um espaço mais democrático do que o do das mídias “tradicionais”, como o jornal, o rádio e a TV. Pouco tempo se passa até que ela comece a inspirar temor em todos os que percebiam os efeitos reais das práticas aí potenciadas, tanto na vida pessoal como na vida púbica. No dia a dia, isso se mostra de modo mais incisivo quando se pronuncia a palavra “algoritmo”, termo que parece esconder em seu interior toda uma gama de possibilidades incontroláveis. Não só os algoritmos parecem controlar cada vez mais o que fazemos e o que desejamos, mas tudo é percebido confusamente como se estivéssemos sob a influência de feitiços. Também a própria origem e dinâmica dos algoritmos parece se situar em um plano inacessível. Ouvimos falar que os arquitetos de algoritmos não detêm todo o poder sobre estes, que eles depois de certo ponto aprendem a se desenvolver de forma autônoma, como as inquietantes máquinas que produzem máquinas de forma autônoma da ficção científica de Philip K. Dick e outros. Este terror contemporâneo é bem expresso por Jamie Bartlet, um dos muitos escritores analistas da internet:
Duvido muito que qualquer funcionário entenda completamente todos os algoritmos de uma empresa, assim como nenhum trabalhador sozinho poderia fazer um carro ou um lápis. Algoritmos poderosos, compostos de linhas de códigos sobrepostas, moldam nosso mundo e, na maioria das vezes, os humanos não estão envolvidos. É tudo automatizado e executado em loops de feedback constantes e auto-aprimorados.8
Percepções deste tipo, embora corretas, talvez nos induzam a perceber na tecnopolítica atual um caráter, como encontramos no texto de Foscolo, “autopoiético”. O surgimento de políticos que seriam inviáveis na era pré-internet só contribui para a mística da tecnologia digital. Esta mística aterroriza e paralisa aqueles que ainda podem perceber que nada disso pode acabar bem. Mas também, por outro lado, contribui para apimentar ainda mais a relação hispersticiosa que temos hoje com a tecnologia. A posição expressa no texto de Guilherme Foscolo tem sua razão de ser: ondas de hiperstição se mostram muito resistentes a qualquer confronto com a realidade que diminua sua força. Por trás da tecnologia, reencontramos uma força que tendemos a ver como sobre-natural, mágica. Mas os conglomerados econômicos de tecnologia digital não têm propulsão própria. Acho que precisamos em primeiro lugar enfatizar a economia de desejos humanos que é posta em jogo no processo, e começar a perceber melhor nossos modos de participação nele.
Referências bibliográficas
BARTLET, Jamie. People vs. Tech. How the Internet is Killing Democracy (and How We Save It). Nova Iorque: Dutton, 2018.
FREUD, Sigmund. Psicologia das massas e análise do Eu e outros textos. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Cia das letras, 2011.
_____________. Totem e tabu. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Cia das Letras, 2010.
GUMBRECHT, Hans. Nosso amplo presente. O tempo e a cultura contemporânea. Tradução de Ana Isabel Soares. São Paulo: Editora Unesp, 2015.