As setas de Cronos e as setas de Eros
Rafael Zacca Fernandes

Antes de começar, gostaria de dizer que senti saudades.

Encontrá-los novamente me deixou um pouco mais atento ao tema do desejo. E chamar vocês pelos seus nomes também. Fico especialmente agradecido e emocionado que possamos novamente dizer os nomes uns dos outros na mesa do café, nas mesas do congresso ou na mesa de bar. Pensarmos juntos enquanto nos chamamos.

Saudade, desejo e nome. Três pontos incontornáveis na leitura de Marcel Proust a partir desse texto da Marcela Oliveira, da Marcela, que se chama “Escrever a palavra fim”, e que também me coube comentar. É profundamente agradecido por poder ver, tocar e ouvir vocês que faço e penso esse comentário. E acrescento, à guisa de introdução, um poema da poeta portuguesa Adília Lopes, que no livro Versos verdes, de 1999, escreveu:

A segunda lei da Termodinâmica
a lei leteia
a seta do tempo
[...] a entropia
existe
mas também
[...] as sete artes
existem
para a contrariar
(desejo, logo sou
e eu não acabo
de ser)1

Cito este poema porque ele performa uma espécie de contradição entre o tempo cronologicamente estabelecido e a experiência de tempo em jogo no desejo. O desejo, no poema de Adília, coincide com as sete artes como uma forma de “contrariar” a seta do tempo. Algo que o texto da Marcela também me evocou.

Esse meu comentário também tem um nome. Ele se chama as setas de Cronos e as setas de Eros.

Saio da leitura do texto da Marcela, “Escrever a palavra fim”, com a impressão de que há nele dois desejos em cena. E como trata da Busca de Proust, um deles é o desejo do protagonista Marcel por Albertine. O outro, é o desejo do autor Marcel por escrever a palavra fim. Como se se projetassem um sobre o outro: o atual do escritor com o virtual do personagem, numa espécie de fotografia em dupla exposição que os mostra simultaneamente na mesma imagem, semelhantes e desencaixados.

Quando está quase terminando o seu texto, Marcela escreve que existe um “desencaixe constitutivo” na relação entre palavras e coisas. E isso tanto no desejo pela palavra fim – que acabaria com a própria escrita – quanto no desejo por Albertine, cujo nome tem significados múltiplos e contraditórios para o herói do romance. É então que Marcela cita o fragmento 38 do livro O método Albertine da poeta e classicista canadense Anne Carson sobre Em busca do tempo perdido e a relação do herói com a amada: “quando Marcel aproxima o rosto para beijá-la, ela se desdobra em dez Albertines sucessivas”2 – ao que Marcela acrescenta “seu rosto não se deixa fixar”.

O desejo parece, então, entrar em cena para mexer um pouco com as coisas. Ou para movê-las.

“Curioso, então, perceber que o desejo de escrever o ponto final”, nos diz Marcela no início de seu texto, “conviva com a inconclusão constitutiva dessa obra que já começa, na verdade, de seu fim.” Marcela evidencia uma contradição performativa em Proust: Em busca do tempo perdido tem um narrador que ainda no primeiro volume nos anuncia “mais tarde, quando comecei a compor um livro...”.3 Ela sugere que o romance dialetiza forma e conteúdo: no plano do conteúdo, ele aponta as setas do tempo para as suas costas, e investiga o passado com uma direção que vai do futuro para trás. No plano da forma, essa seta “perde o sentido”, e se ramifica em diversas direções e conexões (que recebem múltiplos nomes: teia, trama, cadeia, tecido, universo...), de maneira a indicar a constituição, no futuro, do escritor. É o agora da escrita – o fim da narrativa – que se torna o ponto de partida no plano da forma.

Proust tem o desejo de escrever a palavra fim; Marcel, o de possuir Albertine. Mas a fotografia em dupla exposição dos dois revela algo como um terceiro desejo: “isolar uma fatia do tempo”, da mesma maneira que se pode fatiar um pedaço de bolo, na epifania da madeleine. Com o que se pode fatiar o tempo? Com o desejo.

*

Com o desejo? As representações historicamente consolidadas sobre Eros e Cronos nos dizem, muitas vezes, o contrário. Como naquela pintura de Pierre Mignard, do século XVII, em que um Cronos bem mais velho corta as pequenas asas de Eros, representado como um serzinho ainda na primeira infância. Ou a cena pintada por Giovanni Barbieri em que Cronos admoesta o bebê Eros na presença de Afrodite e Ares ainda em seu berço. Eros é, para parte de nossa tradição, símbolo de uma juventude destinada à ruína por ação de Cronos. Essa interpretação está destilada em histórias que contamos sobre como o tempo mata ou embota o amor, a paixão ou o desejo. E ela parece contradizer aquela genealogia da Teogonia de Hesíodo que sugere que Eros é um dos deuses mais antigos4, sendo antecedido por poucos como Gaia ou Caos, tendo, portanto, como sugere Fedro no Banquete de Platão, autoridade sobre as demais divindades.5

Em Proust, no entanto, Eros não é uma divindade jovem ou antiga: é uma lâmina. Enxergar esse corte é outra forma de recuperar alguma dignidade de Eros diante de Cronos. Seguindo a leitura que faz Marcela, a própria forma da rememoração em Em busca do tempo perdido não se dá pela lógica de Cronos, mas por aquela do adormecer e do acordar, convocando as forças do sonho e do inconsciente. Na Interpretação dos sonhos, Freud estabelece uma das teses mais conhecidas da psicanálise, a de que o sonho é a realização de desejo. Conta-nos, então, um experimento que realizara no bojo da descoberta. Esse experimento consistia em comer algum alimento muito salgado antes de dormir. A sede o desperta de madrugada, mas antes disso provoca nele sempre o mesmo sonho, de estar bebendo água em grandes goles. A sede que provoca o sonho só vem à consciência após o despertar.

A sede dá origem a um desejo de beber, e o sonho me mostra esse desejo realizado. Ao fazê-lo, ele executa uma função – que seria fácil adivinhar. Durmo bem e não costumo ser acordado por nenhuma necessidade física. Quando consigo aplacar minha sede sonhando que estou bebendo, não preciso despertar para saciá-la. Esse é, portanto, um sonho de conveniência. O sonhar toma o lugar da ação, como o faz muitas vezes em outras situações da vida. Infelizmente, minha necessidade de água para aplacar a sede não pode satisfazer-se num sonho da mesma forma que se satisfaz minha sede de vingança [...].6

Para Freud, vale observar, essa busca do sonho pela realização do desejo se dirige até as lembranças mais remotas – com o rebaixamento das forças da consciência e de tudo aquilo que reprimiu os desejos infantis um dia. “O sonhar é, em seu conjunto, um exemplo de regressão à condição mais primitiva do sonhador”, nos diz Freud, e ainda “uma revivescência de sua infância, das moções pulsionais que a dominaram e dos métodos de expressão de que ele dispunha nessa época.”7 Isso o faz concluir que “a criança e seus impulsos seguem vivos”.8 E é justamente na passagem entre o mundo acordado e o mundo adormecido que Proust vai buscar a sua lâmina de fatiar o tempo. O sonho é onde a criança ainda está viva e o desejo impõe seus cortes, seus critérios.

“A psicanálise diria na mesma época [de Proust] que onde não há falta não há desejo” – é o que lemos no texto de Marcela. A falta de Albertine move Marcel em direção a ela. A falta da palavra fim move Marcel em direção à palavra. E, no entanto, Marcela nos sinaliza em seu texto que não devemos acreditar que a finalidade desses desejos – alcançar o objeto – seja de fato o fim desses desejos. Ela nos adverte para “desconfiar da capacidade conclusiva do desejo em Proust”. O objeto de desejo parece, então, colocar a sua falta no início da narrativa como uma espécie de primeiro motor.

Isso me faz pensar em outra narrativa, extremamente mais curta se comparada à de Proust – “O pião”, de Kafka. Também nos remete à infância. Em suas poucas linhas, Kafka nos conta de um filósofo que gosta de ficar à espreita de algumas crianças com o intuito de agarrar piões em pleno giro. Quando uma das crianças se prepara para lançar um pião, a excitação eletriza o filósofo e ele corre para agarrar o objeto de madeira. O que o move é a esperança de que a compreensão de um pequeno detalhe – uma pequena fatia – já seria suficiente à compreensão do todo. Mas quando tem o pião em mãos, finalmente, e ele para de girar, o filósofo se sente nauseado e atira o pião ao chão, com desgosto. Ele parece extrair mais prazer da tentativa de captura do que da captura em si. Capturar o objeto estabelece dois fins: a busca prazerosa acaba e o pião não gira mais.9

A poeta e classicista citada por Marcela, a Anne Carson, também comenta esse conto de Kafka. Para Carson, que é leitora atenta do Banquete de Platão, esse filósofo de Kafka se torna filósofo para se deleitar com o saber. Porque não o tem, corre atrás do saber, na esperança de obtê-lo. Quer dizer, o desejo pelo saber se institui na falta de saber. E, no entanto, a suposta captura equivale, na verdade, ao fim do saber – e também do prazer.10

A busca é em si mesma prazerosa. E a busca inclui, como condição, a esperança de possuir o objeto. Possuir o objeto, no entanto, é amargo, porque dá fim à busca. O desejo é doce e amargo ao mesmo tempo – como naquele fragmento de Safo, em que a poeta nos diz que “Eros de novo o quebra-membros me agita / doceamarga inelutável criatura”.11 O fragmento dá nome, aliás, ao ensaio de Carson: Eros the bittersweet, Eros o agridoce.

No seu texto, Marcela nos relembra que o narrador Marcel tinha consciência de que possuir o objeto significa arruinar o prazer. Ela o cita: “o objeto do meu amoroso anelo, fosse qual fosse, teria de achar-se ao fim de uma penosa busca, e em tal busca, teria de sacrificar o meu prazer a esse bem supremo, em vez de encontrar nesse bem o meu prazer.” Agarrar o objeto é o fim do desejo, nos dois sentidos desse fim: finalidade e término. Agarrar o objeto realiza e arruína o desejo. Por quê? Há algo na forma do desejo que estabelece essa coincidência entre realização e ruína?

Anne Carson responde que sim. Para explicá-lo, ela sugere que o desejo tem uma geometria. Ele é formado por três elementos que traçam três tangentes e formam um triângulo.12 Ninguém deseja o que já possui. Desejamos aquilo que não temos. Isso significa que o desejo é uma estrutura que não inclui apenas o sujeito e o objeto do desejo, mas também um terceiro elemento, que os separa. Sem o obstáculo, não há falta. Para Anne Carson, no entanto, esse terceiro elemento não se chama exatamente obstáculo, mas se chama distância. Sem distância não há falta nem busca. E o desejo sobrevive enquanto não se esgota no alcance. Desejar é tentar alcançar sem alcançar.

Eros é uma questão de limites. Ele existe porque certos limites existem. No intervalo entre alcançar e agarrar, entre o olhar e ser olhado, entre “eu te amo” e “eu também te amo”, a presença ausente do desejo ganha vida. Mas os limites de tempo e olhar e eu te amo são apenas tremores derivados do limite principal e inevitável que cria Eros: o limite da carne e do eu entre você e eu. E é só, repentinamente, no momento que eu dissolveria essa fronteira, que percebo que nunca posso.13

*

Em busca do tempo perdido é uma tentativa de alcance. E, no entanto, o que torna esse tempo um tempo pleno de desejo é o fato de que ele se perdeu. Mais precisamente, na terminologia de Carson, é a distância entre aquele que procura e aquilo que foi perdido, que torna essa busca desejante. Nesse sentido, há aqui um truque do desejo. Ele consiste em confundir fins e começos.

Começamos pelo fim, nos explica Marcela. O narrador só começa a sua narrativa no fim de sua vida. E terminamos pelo começo: essa narrativa é o que autoriza o início da escrita. Nesse truque o que se esconde é a distância. Ao colocar o fim no princípio, a distância que o separa da escrita se manifesta como conteúdo da obra. Ao colocar o princípio no fim, a distância se mostra como explicação originária da forma.

Entre essas duas operações se esconde um resultado que se manifesta como acaso: o isolamento de uma “fatia do tempo”. Uma paralisação dos momentos em que essa distância se reduziu ao mínimo ou se ampliou ao máximo – como no célebre episódio da madeleine. Assim, a distância é o fundamento da busca – mas também da operação alquímica que transforma setas de Cronos em setas de Eros.

São essas setas, do desejo, que permitem revisitar o passado. Não uma revisão, que significaria ver de novo, mas realiza uma segunda visita àquele passado. No trabalho das Passagens, Walter Benjamin afirmava que aquilo que está pronto e acabado no ocorrido se torna vivo e inacabado na rememoração. Está no fragmento N 8,1 do caderno N: “O que a ciência ‘estabeleceu’, pode ser modificado pela rememoração. Esta pode transformar o inacabado (a felicidade) em algo acabado, e o acabado (o sofrimento) em algo inacabado.”14

No Banquete de Platão há uma cena de rememoração que conhecemos. Trata-se do diálogo de Sócrates com a sacerdotisa Diotima, que explica para o filósofo que Eros não deve ser pensado como uma divindade. Se Eros deseja o que não tem, e se Eros ama a beleza, ele não é belo – portanto, não deve ser um deus, já que os deuses são necessariamente belos. Eros seria algo de intermediário entre os mortais e os imortais. Um daimon.

[Eros é] algo de intermediário entre mortal e imortal. [...] Um grande demônio, Sócrates; e, como tudo o que é demoníaco, elo intermediário entre os deuses e os mortais. [...] Interpreta e leva para os deuses o que vai dos homens, e para os homens o que vem dos deuses: de um lado, preces e sacrifícios; do outro, ordens e as remunerações dos sacrifícios.15

Como intermediário, é também uma espécie de mensageiro, um leva e traz – poderíamos dizer, talvez, um exu (penso naquele ditado iorubá que diz que “exu matou um pássaro ontem com uma pedra que só jogou hoje”).

A escrita de Em busca do tempo perdido realiza uma contrariedade performativa: está tudo no início, e, no entanto, nada está lá. Somos convidados a um movimento – Eros, como relembra Anne Carson, é um verbo. Ele nos move.16 Da mesma forma, o ocorrido não está pronto e acabado, mas se sujeita às ações do desejo. Se o desejo se estabelece como um a priori da narrativa, o objeto de desejo não é o objetivo da narrativa, mas o princípio. E assim, é a própria memória que pensa se dirigir para trás, mas se move para frente. E o querer pensa se dirigir para frente, mas recua no tempo. Assim, Eros se diverte na narrativa proustiana sem que tenha que dar as caras com o seu nome.

Mas onde se esconde Eros nesse jogo de início e fim de partida? Na madeleine? Nas formas escuras do quarto? No rosto de Albertine? Onde está o daimon?

Referências bibliográficas

BENJAMIN, Walter. Passagens. Organizador da tradução brasileira Willi Bolle. São Paulo: UFMG, 2009.

CARSON, Anne. Eros the Bittersweet. Champaign/Londres: Dalkey Archive Press, 2015.

_____. O método Albertine. Tradução de Vilma Areas e Francisco Guimarães. São Paulo: Edições Jabuticaba, 2017.

FREUD, Sigmund. A interpretação dos sonhos. Obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996. Vol. IV

HESÍODO. Teogonia. Tradução de Jaa Torrano. São Paulo: Iluminuras, 1995.

KAFKA, Franz. “O pião”. In: _____. Narrativas do espólio. Tradução de Modesto Carone. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

LOPES, Adília. Dobra: poesia reunida (1983-2014). Porto: Assírio & Alvim, 2014.

PLATÃO. O banquete. Tradução de Carlos Alberto Nunes. Belem: Edufpa, 2011.

PROUST, Marcel. No caminho de Swann. Tradução de Mario Quintana. São Paulo: Globo, 2003.

* Rafael Zacca Fernandes é professor de filosofia da PUC-Rio
1 LOPES, 2014, p. 376-377.
2 CARSON, 2017, p. 19.
3 PROUST, 2003, p. 97.
4 HESÍODO, 1995, p. 94.
5 PLATÃO, 201, p. 89 e 95.
6 FREUD, 1996, p. 158.
7 FREUD, 1996, p. 578.
8 FREUD, 1996, p. 221.
9 KAFKA, 2002, p. 136.
10 CARSON, 2015, p. xi-xii.
11 SAFO apud CARSON, 2015, p. 3. Tradução livre a partir da tradução de Anne Carson.
12 CARSON, 2015, p. 17.
13 CARSON, 2015, p. 30.
14 BENJAMIN, 2009, p. 513.
15 PLATÃO, 2011, p. 150-151.
16 CARSON, 2015, p. 17.