Interdição, ressignificação e produção de visibilidades: Notas sobre a colonização da visão no regime heteropatriarcal colonial
Debora Pazetto

Em “Decolonialidade e estética: interdito, ressignificação e reestetização”, a filósofa Carla Milani Damião pretende relacionar decolonialidade e estética passando pelos conceitos de interdição e ressignificação como caminhos para uma possível reestetização decolonial. A interdição e a ressignificação são estratégias bastantes conhecidas nas práticas de grupos reunidos em torno de marcadores sociais ou identidades marginalizadas, bem como nos debates teóricos que circulam nesses meios. Em linhas gerais, ambas se referem a termos historicamente instaurados pela linguagem colonial e que carregam, portanto, marcas de violência, subjugação, discriminação e desumanização. A interdição é a escolha por tentar retirar do vocabulário, formal e/ou cotidianamente, o termo em questão, como forma de reparação histórica e minimização do sofrimento dos grupos e sujeitos aos quais ele se vincula. A ressignificação, por outro lado, é a escolha por transformar o uso do termo vinculando-o a um processo de autodefinição, apropriação irônica ou luta política.

Nesse sentido, tanto a interdição quanto a ressignificação podem ser pensadas como práticas de descolonização da linguagem. Grada Kilomba oferece alguns exemplos importantes das duas possibilidades na carta que escreve especificamente para a edição brasileira de Memórias da plantação, tendo em vista que a língua portuguesa é particularmente carregada de marcas coloniais, e conclui: “parece-me que não há nada mais urgente do que começarmos a criar uma nova linguagem. Um vocabulário no qual nos possamos todas/xs/os encontrar, na condição humana”.1 Embora, nessa passagem, ela esteja se referindo às palavras, a possibilidade de uma nova linguagem, no pensamento de Kilomba, costuma abranger também o campo das imagens, da arquitetura, dos monumentos, da sonoridade, da estrutura urbana, e assim por diante. A ideia de reestetização, tal como proposta por Carla Damião, aproxima-se dessa amplitude. Ou seja, trata de pensar a interdição e a ressignificação não apenas no campo do vocabulário de um determinado idioma, mas no amplo campo das configurações estéticas, com atenção especial para as imagens.

A discussão proposta pela autora, que pretende relacionar decolonialidade e estética, concentra-se em questões raciais, sem dúvida porque o racismo é um dos alicerces centrais da colonização capitalista. Eu gostaria de contribuir com o tema a partir de um deslocamento para outra modalidade de colonização: a cisheterossexualidade compulsória. É comum que se compreenda a colonização como processo geopolítico aplicado a territórios, países e regiões. Eu prefiro descrever a colonização como um mecanismo aplicado a corpos – o corpo da terra, o corpo de coletividades, o corpo da natureza, o corpo dos animais, incluindo os animais humanos –, porque esse ângulo revela a amplitude das formas de colonização (e evita certos equívocos frequentes, como não perceber que a forma “país” já é uma imposição colonial). A colonização é a base do capitalismo, porque é uma estrutura hierárquica de divisão dos corpos na qual um grupo se impõe como sendo superior a outro grupo, e com isso ele se legitima a explorar o corpo, o trabalho, a imagem, o tempo de vida, o psiquismo do grupo que é estabelecido como inferior. Ou seja, o discurso colonizador é aquele que estabelece violentamente o corpo do outro como território a ser explorado. Ou melhor, ele cria o outro enquanto campo de manipulação e exploração.

A marcação de certos corpos como negros, indígenas, selvagens ou primitivos serviu historicamente para defender a sua inferioridade intelectual, espiritual ou civilizatória e, consequentemente, o direito europeu de escravizar, torturar, assassinar, catequizar, privar esses corpos de pensar e existir nos termos de suas próprias culturas. A mesma lógica se aplica para a marcação dos corpos por meio de categorias relacionadas a gênero. De Simone de Beauvoir a Silvia Federici, Ochy Curiel e Oyèrónkẹ́ Oyěwùmí, lemos que o patriarcado ocidental constrói as noções de mulher (para as mulheres brancas) e fêmea (para as mulheres racializadas e escravizadas) com o objetivo de marcar os corpos destinados a serem colonizados pelos homens brancos, para servir sexualmente como esposas ou prostitutas, para servir como trabalhadoras domésticas, remuneradas ou não, para servir como procriadoras, com ou sem consentimento. Ou seja, para fazer gratuitamente o trabalho de reprodução social, indispensável para sustentar a força de trabalho do capitalismo: parir, cuidar e educar os futuros trabalhadores, garantindo tanto a mão de obra gratuita ou precarizada, para as classes mais baixas e racializadas, quanto a hereditariedade das posses, para as classes mais altas. Esse mecanismo depende da cisheterossexualidade compulsória, pois necessita que os corpos obedeçam à designação de gênero que lhes é imposta e que se relacionem dentro da lógica binária de complementaridade entre os sexos, tanto na Europa quanto em suas colônias. Um dos principais eixos da violência catequizadora foi exterminar as diversas formas de gêneros e sexualidades praticadas pelos povos que viviam neste continente (nunca é demais relembrar o assassinato espetacularizado de Tibira, do povo Tupinambá, em 1614). Assim, a cisheteronormatividade também é um alicerce central do colonialismo capitalista: divide hierarquicamente os corpos para oprimir os que manifestam sexualidades e identidades de gênero que desafiam a ordenação do trabalho de reprodução social, utilizando ora o discurso religioso, ora o discurso científico para classificá-los como abjetos, pecaminosos ou anormais e legitimar a violência contra eles.

Posto isso, volto à questão da reestetização proposta por Carla Damião, que direciona a interdição e a ressignificação para as imagens. Tendo em vista que as estratégias descolonizadoras são exercitadas no campo das imagens, torna-se importante ressaltar a dimensão visual da opressão, nesse caso, da opressão racial. Por isso a autora cita Linda Martín Alcoff, em sua obra Visible Identities: Race, Gender, and the Self, que segue Frantz Fanon “no argumento de que a discriminação racial é criada pela visão hegemônica branca. A raça, associada ao corpo, comporta elementos entrecruzados de opressão e de violência que são, ao mesmo tempo, internalizados e externalizados na visibilidade ou aparência”, e conclui: “a visibilidade, raça e gênero, são os pressupostos de afirmação que passam pela composição de uma identidade consciente do olhar do outro sobre mim”. Com efeito, a visibilidade é o pressuposto central da marcação dos corpos nas categorias de raça e gênero. No entanto, a situação se complexifica quando lidamos com identidades que não são necessariamente visíveis, como, em alguns casos, as orientações sexuais desviantes.

Complementando a famosa tríade conceitual “colonialidade do poder”, “colonialidade do saber” e “colonialidade do ser” formulada pelos teóricos do Grupo Modernidade/Colonialidade, o historiador mexicano Joaquín Barriendos desenvolveu o conceito de “colonialidade do ver”. Analisando as imagens que pintores e gravuristas europeus produziram para representar os indígenas do “Novo Mundo”, ele revela a epistemologia visual que engendrou a racialização do corpo indígena através do tropo do canibalismo.

O expansionismo mercantil proporcionou que as imagens-arquivo sobre o canibalismo das Índias fossem convertidas em uma potente maquinaria visual destinada não somente a negar moral, política e ontologicamente a humanidade indígena, mas também a promover a inferiorização corpo-política e a radicalizar a racialização etnocartográfica.2

Sem dúvida, as imagens do canibalismo indígena são estruturais, mas não são as únicas que constituem a matriz hierárquica de poder a partir da qual operam a colonialidade do ver e o racismo epistemológico, desde a expansão marítima europeia até os dias atuais. Basta um breve olhar para a arte produzida no Brasil durante o período colonial por europeus como Albert Eckhout, Johann Moritz Rugendas, Jean-Baptiste Debret, Thomas Ender, Modesto Brocos y Gómez etc., para constatar a diversidade de mecanismos iconográficos e hierarquias imagéticas que constituem a colonialidade do ver. Além das torturas escravocratas terem sido reproduzidas como algo banal, corpos indígenas e negros foram sistematicamente retratados em posturas e expressões animalizadas, apáticas, exotificadas, hiperssexualizadas e servis.

Críticas semelhantes foram feitas por artistas e teóricas feministas para criticar o regime visual patriarcal, como na análise que Monique Roelofs faz da pintura A senhora e a criada, de Johannes Vermeer ou na que Carolyn Korsmeyer oferece sobre a pintura Mercado de escravos romano, de Jean-Léon Gérôme: “os acúmulos de olhares dos homens veem a menina em seu estado mais exposto [...] a menina está dolorosamente colocada não apenas como propriedade vendável, mas também para o prazer excitante de todos os que a observam”.3 A partir de teorias da visão e do olhar, Korsmeyer examina como as imagens artísticas, sobretudo os nus femininos, representaram as mulheres como objetos passivos e submissos à disposição do desejo sexual masculino – a mesma acusação que vem sendo feita pelo grupo Guerrilla Girls em forma de intervenção artística desde a década de oitenta: as mulheres precisam estar nuas para entrar no museu de arte?

Assim, considerando a noção ampla de colonização com a qual estou trabalhando, o conceito de colonialidade do ver, desenvolvido por Barriendos em meio a uma crítica do regime visual racista, também pode ser usado para abordar o regime visual misógino e sexista, bem como o entrecruzamento entre eles. Em todos os casos, trata-se da imposição de uma ordem de visibilidade que instaura a inferiorização e desumanização de corpos racializados e feminizados por meio de um grande arsenal de mecanismos iconográficos. A noção e as práticas de reestetização entram aqui como ferramentas críticas capazes de disputar a doutrinação do olhar, contra a colonialidade da visão. Considerando a hipótese de Carla Damião, a reestetização passa pela interdição e pela ressignificação. Pensando sobre a interdição no campo das imagens, lembrei, evidentemente, da onda mundial de derrubada de estátuas e monumentos que homenageiam figuras escravocratas e colonizadoras em espaços públicos, um movimento que busca, sem apagar a história, interditar a imagem glorificada de genocidas. Lembrei também do impacto que senti quando assisti ao documentário À margem da imagem (2002), de Evaldo Morcazel, no qual pessoas em situação de rua compartilham suas histórias e pensamentos. Em um momento, é relatada uma situação em que os sem-teto e uma religiosa que os ajudava impediram o célebre fotógrafo Sebastião Salgado de fotografar o grupo. O motivo é que eles estavam cansados de ver sua imagem ser vendida sem receber qualquer benefício por isso. Nesse caso, a interdição não é de uma imagem particular, mas da forma colonizadora com a qual imagens costumam ser produzidas e divulgadas, dando aos grupos privilegiados em termos de raça, etnia, classe, gênero etc. o direito de representar como bem entenderem os grupos marginalizados e ainda lucrar com isso.

A estratégia de ressignificação sem dúvida recebeu mais atenção filosófica, sobretudo no campo dos estudos queer, considerando que o próprio termo queer, nesse contexto, resulta da ressignificação de uma ofensa, transformada em signo de identidade política. No Brasil, a mesma torção ressignificadora é feita em relação a palavras como “sapatão” e “bicha”, que eram (e ainda são) usadas de forma pejorativa, com o objetivo de violentar verbalmente os sujeitos assim nomeados, mas foram ironicamente apropriadas por esses mesmos sujeitos como termos de autodefinição, orgulho e resistência. Essa é a principal vantagem do conceito de citacionalidade, que Butler toma da interpretação derridiana de Austin para caracterizar a performatividade do gênero: os signos linguísticos têm a propriedade de poder ser retirados de seus contextos iniciais e deslocados para outros, produzindo novos significados nesse processo.4 Contudo, é importante lembrar que tanto a interdição quanto a ressignificação são táticas de disputa simbólica, cuja efetividade depende de um processo de educação e assimilação social. Assim, mesmo que um termo seja ressignificado, ele pode continuar operando como ofensa, dependendo do contexto de enunciação: quem o utiliza, a quem é dirigido, com qual intenção, com qual entonação.

No campo das imagens, essa dinâmica citacional torna-se mais complexa, pois em alguns casos trata-se de uma forma diferente de utilizar a mesma imagem, como ocorre com as palavras, mas em muitos casos o que ocorre é uma alteração na imagem original. O trabalho de Renata Felinto, Axexê da negra ou o descanso das mulheres que mereciam ser amadas (2017), é um brilhante exemplo da primeira opção: a artista faz um enterro espiritual e performático de imagens impressas de mulheres negras que foram amas de leite no Brasil escravocrata, incluindo uma reprodução da pintura A negra (1923), de Tarsila do Amaral, cuja modelo foi sua ama de leite. Trata-se da mesma imagem, que traz em si a constituição racista das elites que moldaram o modernismo brasileiro, mas completamente ressignificada pelo deslocamento contextual provocado pela artista. Por outro lado, o trabalho de Yhuri Cruz, Monumento à voz de Anastácia (2019), opta pela ressignificação por meio de uma alteração na imagem original do retrato de Anastácia feito pelo francês Jacques Arago no início do século XIX, no qual ela é representada usando uma máscara de silenciamento. A imagem original, aliás, aparece no livro de Grada Kilomba como disparo inicial para uma discussão sobre colonialismo, trauma e memória: “a máscara representa o colonialismo como um todo. Ela simboliza práticas sádicas de conquista e dominação e seus regimes brutais de silenciamento das/os chamadas/os ‘Outras/os’: quem pode falar? O que acontece quando falamos? E sobre o que podemos falar?”.5 Anastácia, ela própria ressignificada enquanto figura política e religiosa em torno do mundo afrodiaspórico, tem sua boca libertada da máscara no retrato alterado por Yhuri Cruz.

Menciono os trabalhos de Evaldo Morcazel, Renata Felinto e Yhuri Cruz como alguns dentre muito exemplos de propostas artísticas que exercitam a descolonização no campo das imagens por meio da interdição ou da ressignificação. São trabalhos que operam torções no ato de ver porque são sensíveis ao fato de que a visibilidade é o mecanismo central da marcação dos corpos nas categorias de raça e gênero e ao fato de que a colonização do ver, nas artes, operou historicamente por meio da criação e difusão de imagens que inferiorizavam, objetificavam e desumanizavam os corpos de mulheres e pessoas racializadas. No entanto, quando lidamos com opressões que não são necessariamente ou predominantemente baseadas em estigmas visíveis, a reestetização por meio da interdição e da ressignificação de imagens é suficiente? Apontei anteriormente que pretendo contribuir com o tema a partir de um olhar para as orientações sexuais desviantes em relação à heteronorma colonial. Para ser mais específica (e pessoal), gostaria de partir da experiência e do conceito de invisibilidade lésbica.

Em 1980, Adrienne Rich publicou um ensaio incontornável sobre esse assunto, no qual confrontava uma instituição política até então desconhecida pelo feminismo hegemônico: a heterossexualidade compulsória. Ela se referia ao vasto conjunto de incentivos e restrições violentas necessário para impor a lealdade erótico-emocional, e a consequente subserviência, das mulheres em relação aos homens. Em palavras mais diretas, a heterossexualidade não seria mais comum porque é “mais natural” e sim porque é compulsória, e ela é compulsória porque a supremacia masculina depende materialmente da sua rigorosa manutenção. Assim, e esse é um dos objetivos centrais de Rich, esse assunto não se endereça apenas às lésbicas, mas ao feminismo em geral, tendo em vista que todas as mulheres passam pelos processos de heterossexualização que sustentam a família nuclear monogâmica, célula de base do capitalismo patriarcal colonial. A heterossexualidade compulsória é um método de controle da consciência que se estabelece por meio de muitas táticas, como a idealização do amor heterossexual, a negação psicanalítica do clitóris, o bombardeio de imagens de romance heterossexual, a heteronormatividade da indústria pornográfica, os padrões de beleza e comportamento que impõem uma suposta feminilidade às supostas mulheres etc. Pois bem, todas essas táticas envolvem a invisibilização da existência lésbica. Trata-se de um apagamento simbólico-material. Ele está nas punições legais ao lesbianismo, incluindo a pena de morte, ainda praticadas oficialmente em alguns países e extraoficialmente em outros (como o nosso), que coage as lésbicas a se manterem invisíveis. Está nas violências morais e físicas cotidianas, permitidas ou negligenciadas pelo Estado. Está na falta de inteligibilidade familiar, social, religiosa, escolar, médica. Está na omissão sistemática da existência lésbica na cultura visual hegemônica: nas histórias infantis, no cinema, na televisão, na historiografia, na publicidade (alguém já viu uma propaganda de margarina ou condomínio residencial em que a família feliz é formada por duas mulheres?). A invisibilização é um método de controle, serve para que meninas e adolescentes cresçam e formem sua identidade sexual sem sequer saber que o lesbianismo existe enquanto possibilidade erótica e romântica.

De acordo com Rich, o apagamento do lesbianismo ocorre tanto na imagética da cultura popular quanto da arte culta, envolvendo “fechamento de arquivos e destruição de documentos relacionados com a existência lésbica”.6 A arte lésbica esteve ausente dos registros oficiais, inclusive das mais aceitas historiografias feministas da arte.7 Informações biográficas sobre relações erótico-afetivas entre mulheres foram extraídas cirurgicamente, minimizadas ou deturpadas, de modo a possibilitar interpretações heterossexualizantes sobre a vida e a obra de importantes artistas. Nesse regime de interpretação, a parceira sexual torna-se a “amiga íntima”. As artistas lésbicas ou bissexuais, mesmo as que foram casadas com mulheres, são descritas como celibatárias, assexuadas ou sexualmente confusas. As artistas que se vestiam com “““trajes masculinos””” tornam-se, mesmo no campo da crítica feminista, mulheres que adotavam uma estratégia de carreira para competir melhor em uma área dominada por homens. Nas obras, sempre que há um par de figuras que pode ser compreendido como heterossexual, a historiografia, a curadoria, os catálogos e os livros de história da arte sustentam, com uma segurança apressada que só existe a serviço de leituras hegemônicas, uma iconografia associada ao amor romântico. Imagens semelhantes, mas que mostram intimidade física ou sexual entre figuras do mesmo gênero, não recebem as mesmas interpretações: “frequentemente, estende-se um véu que encobre as possibilidades eróticas ou românticas de tais obras por meio de títulos que elas passam a adquirir: ‘As amigas’; ‘Dois nus’, ‘Retrato duplo’, ‘As irmãs’”8 – um clássico da invisibilização lésbica no cotidiano das famílias heteronormativas (exemplo paradigmático do funcionamento do “pensamento hétero”, para colocar nos termos de Monique Wittig) sendo mecanicamente repetido nos distintos reinos da história e da crítica de arte: se a imagem representa um homem e uma mulher, sua leitura iconográfica será associada ao romance, se representa duas mulheres, as interpretações serão relacionadas à amizade ou à vida doméstica feminina.

Assim, diferentemente da marcação dos corpos em categorias de raça e gênero, o mecanismo central da lesbofobia no campo das imagens não é a criação de um regime visual degradante, mas a ausência de imagens. Não ocorre que as lésbicas tenham sido representadas como inferiores, exóticas ou subordinadas – elas simplesmente não foram representadas. Eu suspeito que essa diferença nas estratégias de colonização do ver se relaciona com algo que Eve Sedgwick aponta em seu ensaio, escrito em 1990, A epistemologia do armário: “a imagem do armário é indicativa da homofobia de uma maneira que não o pode ser para outras opressões. O racismo, por exemplo, baseia-se num estigma que é visível [...] o mesmo vale para as opressões fundadas em gênero, idade, tamanho, deficiência física”.9 Ou seja, o tipo de invisibilidade que o famoso “armário” proporciona só é possível no caso de opressões que não são baseadas em marcações visuais, como no caso de parte das lésbicas. Digo “parte das lésbicas” porque o armário não costuma funcionar para lésbicas não binárias ou com aparência percebida socialmente como masculina (bem como para homens gays percebidos como afeminados), que são identificadas visualmente como lésbicas com muito mais frequência. Esse ponto é interessante, porque revela intersecções entre a heteronorma e a cisnorma, mas não pretendo me aprofundar nele aqui (e nem nas intersecções da lesbofobia com racismo, classismo, etarismo, capacitismo, gordofobia etc.) porque meu foco está na produção imagética. O ponto central é que, diferentemente da cor da pele e outros estigmas visuais, o lesbianismo pode não ser visto – e a colonização heteropatriarcal da visualidade optou por esse mecanismo: a interdição de imagens da existência lésbica na cultura visual dominante.

Note-se que, nesse caso, a interdição da imagem é feita pela própria doutrinação heteronormativa e não pelos movimentos de luta e resistência política. É justamente por isso que estou argumentando que a reestetização por meio da interdição ou da ressignificação de imagens não faz muito sentido nesse caso, tendo em vista que ambas pressupõem a existência de imagens prévias. O conceito de invisibilidade lésbica contribui com essa discussão na medida em que revela a necessidade de uma terceira estratégia para a reestetização da cultura visual: a própria produção da visibilidade.

Sempre que lésbicas buscam estratégias de autorrepresentação, isto é, de criação de imagens e iconografias a partir de sua própria realidade psicocorporal e sociopolítica, isso necessariamente ocorre como gesto de subversão à estética heterocolonialista. Não há aqui qualquer espécie de estímulo ou romantização dessa opção, porque, obviamente, lésbicas não têm a mínima obrigação de adotar um estilo, uma linguagem ou uma estética lésbica, nem de fazer arte sobre o assunto e nem mesmo de enunciar publicamente sua sexualidade. Apenas aponto que, se dentro da lógica colonial o lesbianismo só pode existir invisivelmente, produzir imagens de corpos e existências lésbicas é um ato de disputa reestetizadora. E muitas artistas lésbicas contemporâneas estão envolvidas com essa agenda de intervenção política na colonização da visão, como Camila Soato, Yacunã Tuxá, Leíner Hoki, Jade Marra, Gê Viana, Rita Moreira, Kamilla Nunes, Letícia Honório, Simone Rodrigues, Mariana Pacor, Marília Oliveira, para citar algumas brasileiras. Em minhas aulas de história da arte brasileira, tenho proposto as categorias de visibilidade explícita e visibilidade cifrada como ferramentas de interpretação crítica para analisar as imagens que são criadas por artistas lésbicas quando elas desejam criar visibilidade para a existência lésbica. A visibilidade explícita refere-se à produção de um arsenal de imagens que mostra explicita e escancaradamente corpos e relações lésbicas, funcionando como uma espécie de manifesto visual contra o armário, compreensível para qualquer pessoa capaz de enxergar. A visibilidade cifrada, por outro lado, refere-se à criação de imagens que utilizam símbolos e códigos muitas vezes compreensíveis apenas por lésbicas, LGBTQ+ ou pessoas que conhecem minimamente a cultura lésbica. Nos dois casos, a reestetização aparece como produção de uma nova cultura de visibilidade, e não como interdição ou ressignificação de imagens anteriores.

Acrescentar uma terceira estratégia de reestetização a partir de um deslocamento da atenção para a cisheterocolonização e, mais especificamente, para a experiência lésbica me parece importante porque há pouquíssima pesquisa sobre isso no campo das filosofias das artes e teorias da imagem. Também porque acredito na potência de teorizar desde os nossos locais de enunciação específicos. Mas também, e principalmente, porque é uma forma de ressaltar que a colonização capitalista dos nossos corpos opera por muitos mecanismos. Apenas em relação à colonização do ver, para além da tríade poder/ saber/ ser, percebemos um método que marca visualmente para inferiorizar e outro que barra a visualidade. A contracolonização precisa ser igualmente múltipla, isto é, precisa direcionar sua revolta às mais diversas formas de colonização – que envolvem território, raça, etnia, gênero, classe, sexualidade, religião, padrão físico, desempenho motor e cognitivo, escolaridade, idade, entre outros – e abrir-se para a pluralidade não numerável de táticas de reestetização contracolonial.

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* Debora Pazetto é professora do Departamento de Artes Visuais da UDESC
1 KILOMBA, 2020, p. 21.
2 BARRIENDOS, 2019, p. 47.
3 KORSMEYER, 2014, p. 87.
4 BUTLER, 1997, p. 15.
5 KILOMBA, 2020, p. 33.
6 RICH, 2010, p. 24.
7 KLEIN, 2010.
8 PILCHER, 2017, p 14.
9 SEDGWICK, 2007, p. 32.