A explicação para a inadequação da estética filosófica a boa parte da produção artística contemporânea é, em certa medida, histórica. Muitas obras contemporâneas seriam impensáveis no mundo da arte conhecido quando esta estética se consolidou e não se dispunha de uma concepção de arte capaz de abarcar muitos dos trabalhos que consideramos arte pelo menos nos últimos sessenta anos. Para Joseph Kosuth, um dos pioneiros da arte conceitual, esta incompatibilidade entre a estética filosófica e a produção contemporânea se deve, em grande parte, ao fato de a primeira atribuir uma importância excessiva aos objetos e à sua morfologia. Segundo Kosuth, no passado, “qualquer ramo da filosofia que lidasse com o belo e, nessa medida, com o gosto, estava inevitavelmente destinado a também discutir a arte. Devido a este hábito surgiu a noção de que havia uma conexão conceitual entre arte e estética, o que não é verdade”.1
Em seu artigo “Art after Philosophy”, publicado pela primeira vez na Studio International em 1969, Kosuth trouxe à tona a crescente indefinição das fronteiras entre arte e filosofia, afirmando que a arte iria ocupar o espaço que a filosofia havia perdido na cultura oficial. Kosuth desenvolveu uma analogia forte entre o status da obra de arte e aquele de uma proposição, rompendo com as formas institucionalizadas da pintura e da escultura e colocando como tarefa do artista o questionamento acerca da função e do uso da linguagem da arte, definindo a arte conceitual como um tipo de arte capaz de nos oferecer dados acerca da própria natureza da arte.
Boa parte da tradição da estética e das teorias da arte moderna defendeu que a arte fosse julgada a partir das formas de suas realizações, em detrimento de seu conteúdo, enquanto a arte contemporânea muitas vezes desafia esta posição. Consequentemente, a Teoria da Arte passou a dialogar com outras áreas do conhecimento como filosofia da linguagem, psicanálise, antropologia, marxismo, ou seja, com a cultura como um todo, desviando-se de sua pretensão original à pureza e à autonomia.
Os artistas conceituais pretendiam confrontar, sobretudo, a concepção de modernismo defendida por Clement Greenberg, bem como seu formalismo. No lugar da ideia sustentada pelos modernistas, segundo a qual cada modalidade artística deveria se voltar para uma investigação de seus próprios meios e abandonar tudo o que fosse próprio de outra linguagem, os artistas conceituais – e minimalistas – pretenderam fazer arte em um sentido genérico e não mais pintura, escultura, e assim por diante. Eles não estavam interessados em dialogar com uma tradição artística e entender quais suas convenções. Como Greenberg previu, a partir do momento em que até uma tela em branco pudesse ser arte, tudo poderia ser arte, e o gosto deixaria de ser relevante. Assim, julgar que um determinado objeto é arte deixaria de ser um problema estético para ser uma decisão que dependeria, basicamente, de algum conhecimento de história da arte pois, a esta altura, a arte já teria se diluído na teoria.2
GFP Bunny, obra de Eduardo Kac, é um exemplo de trabalho que escapa às categorias formalistas da estética e da teoria da arte, devido ao seu diálogo com a ciência, com a natureza, e por envolver também uma discussão acerca da autoria. Um trabalho no qual o artista elabora, no interior do contexto artístico, uma série de informações extraídas do contexto científico, cultural e ambiental. Embora o processo de produção da obra dependa de um laboratório de genética, instalado em um instituto de agronomia, não é neste ambiente que sua repercussão produz estranhamento e, sim, no espaço museológico e naquele da crítica, ampliando o alcance da discussão acerca da criação de animais transgênicos.
Ainda que a obra não se encaixe exatamente nem na contraposição estabelecida por Kant entre arte e natureza, nem na contraposição entre arte e ciência na Crítica da faculdade de julgar, tais contraposições são capazes de promover discussões interessantes para se pensar acerca deste tipo de trabalho. GFP Bunny não é exatamente natural, e dificilmente poderia ser tomada por tal, assim como não é ciência, pois ainda que ela seja desenvolvida num laboratório, a obra de Kac consiste numa apropriação de algo científico que é apresentado como arte, por meio de um deslocamento semelhante àquele realizado por Duchamp com seus ready mades, ainda que ela seja muita distinta de um objeto trivial e inanimado que poderia ser encontrado numa loja de materiais de construção.
De acordo com Kant, aquilo que nos surpreende quando um objeto natural apresenta uma forma final consiste, sobretudo, no fato de tal objeto parecer seguir alguma espécie de legalidade, o que nos leva a pensar que se trata de algo criado segundo um plano, ou projeto, o que implica em alguma medida uma ideia de perfeição, ao passo que um produto da arte que tomamos por natural parece ter sido atingido sem a adesão a regras, o que provoca um sentimento de prazer.
Esta passagem, na seção 45 da terceira Crítica, é muito semelhante àquela na qual Ernst Gombrich, em Os sentidos da ordem, comenta que frequentemente nos admiramos pelo fato de as mais remotas civilizações se valerem de formas geométricas e linhas retas, quando estas não são encontradas com frequência na natureza. Quanto a este ponto, Gombrich nos lembra que, se examinarmos bem, esta é uma impressão equivocada, dada a existência de cristais, ouriços do mar, dentre outros exemplos, que poderiam perfeitamente ter sido citados por Kant:
Tão profundamente entranhada é nossa tendência em ver a ordem como marca de uma mente ordenadora que nós instintivamente reagimos com admiração sempre que percebemos regularidade no mundo natural. Às vezes, caminhando em um bosque, nossos olhos podem ser detidos por cogumelos arranjados em um círculo perfeito. O folclore os chama de anéis de fada, porque parece impossível imaginar que tal regularidade tenha surgido por acidente. E de fato não o foi, ainda que a explicação para o fenômeno esteja longe de ser simples. Mas por que estamos surpresos? O mundo natural não exibe muitos exemplos de regularidade e simplicidade – das estrelas em seus cursos às ondas do mar, à maravilha dos cristais e, mais acima, na escala da criação, às ricas ordens de flores, conchas e plumagens?3
Porém, tanto para Kant, quanto para Gombrich, o fato de reconhecermos uma finalidade formal em uma dada representação não implica que ela possua uma finalidade objetiva, mas que o prazer estético é possível justamente porque não levamos em conta nenhuma finalidade objetiva: “Se, por exemplo, encontro na floresta uma relva em torno da qual as árvores fazem um círculo, e não me represento aí um fim – como, por exemplo- de que ela deveria servir para um baile campestre – não me será dado, pela mera forma, o menor conceito de perfeição”.4 Do mesmo modo, se desconheço a finalidade, ou conceito, daquilo que a coelhinha deveria ser, nada impede que ela suscite em mim um prazer estético pelo fato de ela ser o ponto de partida para um livre jogo entre minha imaginação e meu entendimento.
O fato de o objeto natural ser julgado como arte e de a arte ser julgada como natureza depende do modo como os consideramos, o que pode ser atestado a partir de passagens nas quais Kant comenta que o prazer estético se esgota assim que nos damos conta de que um objeto que julgávamos natural foi, na verdade, criado intencionalmente. Ou seja, o mesmo objeto pode ser julgado de um modo ou de outro, a depender da atitude assumida por aquele que julga. Mas GFP Bunny é uma obra inegavelmente dependente da ciência, do ponto de vista da sua produção. Não há dúvida ou ambivalência, o que nos coloca face à distinção entre bela arte e ciência e, novamente, podemos pensar que, para Kant, o prazer depende de termos ou não consciência de que se trata de ciência e não de arte, distinção que tem desdobramentos, uma vez que, para Kant, o julgamento da beleza natural requer apenas gosto, e o julgamento da beleza artística requer, também gênio.
Uma afirmação como “uma beleza natural é uma coisa bela; a beleza artística é a bela representação de uma coisa”5 seria impensável após Duchamp ter borrado e apagado as fronteiras entre arte e vida.
Para julgar uma beleza natural enquanto tal não preciso ter antes um conceito da coisa que o objeto deveria ser, ou. seja, não preciso conhecer a finalidade material (o fim): a mera forma apraz por si mesma no julgamento, sem que haja um conhecimento do fim. Se, no entanto, o objeto é dado como um produto da arte e deve, enquanto tal, ser declarado belo, então, uma vez que a arte sempre pressupõe um fim na causa (e sua causalidade), tem de ser posto, como fundamento, um conceito do que a coisa deve ser e, na medida em que a perfeição da coisa é a concordância do diverso nela com a sua determinação interna como fim, é preciso que a perfeição da coisa seja levada ao mesmo tempo em conta – algo que absolutamente não está em questão no julgamento de uma beleza natural (enquanto tal). 6
Nesse contexto, Kant defende que a arte pode descrever de maneira bela inclusive coisas que na natureza seriam feias, exceto aquelas que despertam nojo, pois o nojo é visto aqui como “uma estranha sensação” na qual o objeto é representado “como se impusesse uma fruição contra a qual lutamos violentamente, a representação artística do objeto já não se distingue da própria natureza desse objeto em nossa sensação, sendo impossível considerá-lo belo”.7
Ora, a obra de Kac envolve ciência, mas não tem uma finalidade científica. A ciência participa da sua produção como técnica utilizada e, nesse sentido, cabe pensar em alguma medida em um conceito de perfeição, pois o sucesso na execução da obra depende da adesão a métodos e técnicas que pertencem ao contexto científico. Não se trata de uma obra que pudesse ser produzida em um ateliê convencional e com materiais tradicionais, ou artesanais. Ela tem uma dependência da ciência maior do que uma escultura tradicional, ainda que muitos materiais artísticos amplamente utilizados contenham componentes sintéticos desenvolvidos por cientistas em laboratórios.
Há muitas obras e monumentos que julgamos belos a despeito do fato de seguirem regras do campo de ciências como a matemática e a geometria, como as pirâmides ou os desenhos de Nazca, por exemplo. Nesses casos, como em outros sítios arqueológicos, é provável que aquilo que dá muito a pensar colocando nossa imaginação e nosso entendimento em um livre jogo se deva à curiosidade em saber como tudo aquilo pode ter sido possível em tempos tão remotos. Aliás, o fato de estarem tão distantes no tempo colabora para não encontrarmos conceitos que teriam norteado a criação de tais formas, ou não conseguirmos precisar como aqueles conceitos estariam disponíveis naquelas culturas. Talvez um dos fatores que instigue o observador no caso da coelhinha também seja a curiosidade quanto ao seu modo de produção, pouco familiar para a maioria das pessoas. A coelhinha foi, portanto, criada graças à ciência, e, mesmo assim, a julgamos como arte, não como um experimento. Afinal, poucas pessoas devem ter um conceito do que deveria seu um coelho transgênico fluorescente e julgariam a obra de Kac adotando algum critério de perfeição como parâmetro.
Em certa medida, pode-se comparar o feito de Kac ao ready made de Duchamp, por consistir no deslocamento de algo que pertence ao ambiente científico e que passa a ser apresentado como arte. A operação de Duchamp levou Thierry de Duve a ponderar que, na contemporaneidade, o juízo “X é belo” poderia, ou deveria, ser substituído pelo juízo “x é arte”. Ocorre que, no caso do ready made, parte daquilo que choca é o fato de os objetos apresentados como arte serem tão triviais quanto um urinol ou um secador de garrafas, ou seja, o objeto escolhido é indiferente, o que não é absolutamente o caso de GFP Bunny, ou Alba (o nome dado à coelhinha), fruto de uma tecnologia complexa. Ainda assim, vale o questionamento, por que Alba é uma obra de arte?
Se nos mantivermos em uma perspectiva estética moderna, kantiana ou formalista, podemos nos propor a ter uma experiência estética a partir de Alba se abstrairmos o contexto científico de seu surgimento e jugarmos simplesmente se a atitude de Kac é, ou não, artística. Ele não criou a experiência Alba, sua obra consiste em ter deslocado algo científico para um contexto artístico. Sua obra está na ideia e na sua execução, não na produção do objeto. Além do deslocamento, a partir de Duchamp começou a ficar cada vez mais claro que a obra dependia não apenas do contexto artístico como também da sua nomeação como arte pelo artista e que a obra de arte tinha a forma de uma tautologia, como se para um objeto ser arte bastasse que o mundo da arte e ou o artista afirmassem A= arte (esse urinol é arte, esta tela branca é arte, esse cubo de aço é arte, e assim por diante).
Um trabalho de arte é uma tautologia, na medida em que é uma apresentação da intenção do artista, ou seja, ele está dizendo que um trabalho de arte em particular é arte. O que significa: é uma definição da arte. Portanto, o fato de ele ser arte é uma verdade a priori (foi o que Judd quis dizer quando declarou que se alguém chama isso de arte, é arte).8
Se parte do prazer experimentado face à obra de Kac, ainda que estético, se dever em parte ao engenho, à curiosidade acerca de como ela foi feita, trata-se de um prazer em parte intelectual, diria Kant. Tal admiração pela engenhosidade, de resto, é razoavelmente frequente em boa parte da arte contemporânea. Artistas como Richard Serra, com suas pesadíssimas esculturas em aço corten, ou Olafur Eliasson, com suas instalações capazes de gerar efeitos ópticos surpreendentes, para citar apenas dois, surpreendem e proporcionam um tipo de prazer no público que envolve o encantamento pelo domínio da tecnologia e da ciência e, nessa medida, não seriam juízos estéticos tão puros como Kant gostaria. Talvez o caráter científico da obra de Kac seja excessivamente evidente, diferentemente daquilo que ocorre quando se observa uma pintura renascentista, a qual não explicita quantos estudos geométricos e ópticos envolve, nem quantos conhecimentos químicos estão por trás de materiais tão antigos quanto os vernizes e a tinta a óleo.
Cabe também questionar se a possibilidade de julgar um mesmo objeto sob dois pontos de vista distintos faria sentido em todos os períodos da história e se sempre seria possível adotar uma atitude formalista. Kac não deseja que se abstraia o contexto científico no qual sua obra foi desenvolvida, ele a descreve como arte transgênica e um dos seus objetivos é justamente chamar a atenção para questões de bioética. Há obras que envolvem aspectos éticos que dificilmente poderiam ser abstraídos, como no caso das incômodas performances de Santiago Sierra, por exemplo. E essa observação não se restringe à arte contemporânea. Como observa Arthur Danto, “certamente, a arte do alto barroco não pretendia ser apreciada desinteressadamente; sua finalidade era mudar a alma dos homens”.9 A arte sempre foi um veículo para ideias e a ideia de autonomia da arte está, na verdade, estreitamente vinculada à modernidade. Como bem observou Lucy Lippard:
Certamente o uso do objeto de arte como veículo para ideias não é novo. No curso da história da arte, foi somente no final do século XIX que uma alternativa foi oferecida pela proposta de que a arte é estritamente retiniana ou sensual em efeito – uma proposição que chegou até nós como a formal ou corrente principal modernista.10
Muitas obras contemporâneas, devido a aspectos ligados à ética, terminam por provocar polêmicas que extrapolam o campo artístico, o que acabou acontecendo com a coelhinha Alba, que não pôde deixar o Instituto no qual foi desenvolvida, na França, contrariando o acordo firmado previamente pelo artista. O Instituto Nacional de Pesquisa Agronômica da França, onde Alba foi desenvolvida, não a reconhece como arte, mas apenas mais um coelho transgênico da espécie portadora de proteína fluorescente verde, um animal experimental que poderia ser sacrificado, assim como tantos outros. Kac, por sua vez, defende a ideia de que a arte tem um valor simbólico.
Mas deixemos de lado por ora as motivações de Kac para nos concentrarmos no fato de Alba poder ou não ser considerada arte, a despeito de ser aparentemente idêntica a tantas outras coelhinhas desenvolvidas no Instituto para fins científicos. Mesmo Clement Greenberg, um crítico tão atacado por ser formalista e que nunca foi um grande admirador de Marcel Duchamp, reconheceu que depois do ready made a diferença entre arte e não arte é mera convenção. E a lição de Duchamp repercutiu nos artistas conceituais, como Joseph Kosuth que, em seu ensaio fundamental sobre a arte conceitual, o já mencionado “A arte depois da filosofia”, deixou claro que tudo pode ser arte: “quando objetos são apresentados no contexto da arte [...] eles são passíveis de considerações estéticas assim como quaisquer objetos no mundo, e uma consideração estética de um objeto existente no reino da arte significa que a existência do objeto, ou o funcionamento em um contexto de arte, é irrelevante para o juízo estético”.11 A partir de Duchamp, segundo Kosuth, a arte teria desviado seu foco das questões da forma para a questão da função, da aparência para a concepção, inaugurando a arte conceitual: “toda a arte (depois de Duchamp) é conceitual, (por natureza), porque a arte só existe conceitualmente”.12
Ora, os objetos utilizados por Duchamp nos ready mades não eram escolhidos devido a algum deleite estético que pudessem proporcionar. Duchamp negava a importância do gosto. Os objetos escolhidos para serem usados como ready mades deveriam ser selecionados arbitrariamente. E a partir do momento em que qualquer objeto físico pode ser considerado um objeto de arte, como um objeto para o gosto, a estética passa a ser irrelevante para a arte. Esse é o ponto que os artistas conceituais da década de 1970 retomaram. Segundo Greenberg, desde Duchamp ficou claro que tudo que pode ser experimentado pode ser experimentado esteticamente, e que tudo o que pode ser experimentado esteticamente também pode ser experimentado como arte; ficou provado que arte não tem a ver com habilidade técnica, mas com um ato de distanciamento mental e que tudo pode ser submetido a tal distanciamento e, assim, convertido em arte. Porém, Greenberg entende que aquilo que torna a arte interessante, ou ainda a experiência estética que em geral oferece mais satisfação do que qualquer outra, é o conjunto de decisões tomadas pelo artista quanto ao modo de comunicar, tornar real, tornar pública, a sua própria experiência estética e, nesse caso, tais decisões e escolhas dizem respeito, necessariamente, a aspectos formais, e “a qualidade na arte aparece, de certa perspectiva bastante real, ser diretamente proporcional à densidade ou ao peso da decisão que foi tomada em sua realização”.13
Daí o fato de Greenberg julgar que a arte contemporânea é entediante e vazia. Segundo ele, o artista contemporâneo primeiramente “liberta-se das convenções” que regiam as artes tradicionais (desenho, pintura e escultura) para, em seguida, se apegar “a uma ideia, conceito ou categoria: serialização, objetalidade, processo” e assim por diante”.14
Os ready mades de Duchamp já configuram, para Greenberg, uma primeira manifestação do tipo de arte que ele chamou de avangardista, em contraposição à arte de vanguarda. De acordo com Greenberg, os ready mades passaram a ser recebidos como arte devido ao fato de serem apresentados em um contexto artístico, o que seria um fato puramente cultural, ou social, e não por serem estéticos, ou artísticos. Mas a arte que começa a ser produzida a partir dos anos 1960, que ele também denomina avangardista, não dependeria destes fatores extrínsecos e, sim, do fato de serem novidades. E isso valeria para a Earth Art, para a arte processual, para experiências com tecnologia, e assim por diante, e o que esse tipo de arte fez foi, principalmente, converter em arte aquilo que não era arte.15
Os ready mades já mostravam que a diferença entre arte e não arte era convencional, e não uma diferença do ponto de vista da experiência: “desde então ficou claro que tudo o que pode ser experimentado, pode ser experimentado esteticamente, e que tudo o que pode ser experimentado esteticamente também pode ser experimentado como arte”16, provando que a noção de arte depende, sobretudo, de um ato de distanciamento que, inclusive, pode passar longe da percepção sensorial. Assim, a expectativa estética teria passado a se resumir à surpresa e o juízo teria deixado de envolver a questão da qualidade para se tornar uma consideração acerca de algo ser ou não ser arte, afastando-se daquilo que chamaríamos propriamente de juízo de gosto, algo que posteriormente foi desenvolvido por Thierry de Duve em seu livro Kant after Duchamp. Reproduzindo, segundo seu modo um tanto quanto reducionista, a estética kantiana, Greenberg defende que a experiência estética coincide com a avaliação estética, com o julgar. E apenas julgar se algo é ou não é arte não recairia dentro daquilo que esperava de um juízo estético, pois não envolveria uma avaliação da qualidade.
Descartamos a possibilidade de GFP Bunny ser acolhida como natureza, pois temos consciência de que ela é um experimento científico feito em laboratório, assim como descartamos a possibilidade de acolhê-la como ciência, uma vez que ela é apresentada como obra de arte. Nas palavras do artista, ela é “uma obra de arte transgênica e não um projeto de procriação”.17 Mas o que faz dela uma obra de arte, diferentemente de outros indivíduos de sua espécie, igualmente transgênicos e sujeitos a serem sacrificados pelo laboratório ao término do projeto no qual estavam inseridos? Para responder a essa pergunta pode ser interessante recorrer a Danto, que se dedicou justamente a pensar naquilo que faz com que, dentre dois objetos aparentemente semelhantes, um seja arte e outro não.
Nesse sentido, Arthur Danto, ao investigar, em A transfiguração do lugar comum, o que nos leva a considerar, face a dois objetos aparentemente idênticos, que um deles é uma obra de arte e ou outro uma mera coisa, pôs em xeque a possibilidade de que nossas respostas estéticas repousassem sobre a nossa sensibilidade. Esta resposta estética não é a mesma face a uma mera coisa e a um objeto idêntico a essa coisa quando sabemos que se trata de arte. Podemos pensar nos clássicos exemplos do Urinol e das Brillo Boxes, que comprovariam que a reação estética passa por uma mediação intelectual. Segundo Danto, uma obra de arte tem muitas propriedades que podem ser estéticas e possuir a faculdade de provocar experiências estéticas, porém, “para reagir esteticamente a essas propriedades é preciso antes saber que o objeto em questão é uma obra de arte, de modo que para reagir de modo diferenciado a essa diferença de identidade é preciso que já tenha sido feita a distinção entre o que é arte e o que não é”.18
Danto pensou primeiramente nas caixas de Brillo Box, expostas na Stable Gallery em Nova York no ano de 1964, questionando-se sobre por que elas seriam arte e as caixas de Brillo Box que encontraríamos no mercado não seriam, e estendeu sua reflexão aos ready mades, perguntando-se por que um urinol na loja de materiais de construção não é arte e o urinol de Duchamp sim. Nas palavras de Danto, é o artista quem impõe uma função de representação a um objeto tão trivial. Para Danto, “as obras de arte são comparáveis às palavras da linguagem porque, apesar de terem equivalentes em simples coisas reais, dizem respeito à alguma coisa (isto é, saber a que elas dizem respeito é uma questão legítima)”.19
O fato de GFP Bunny ser apresentada em um contexto artístico faz dela algo diferente de outras coelhas idênticas a ela. Ao sabermos que se trata de uma obra de arte, adotamos uma atitude estética face a ela. E isso não se resume a uma pressão institucional. Sabemos que se o artista apresentou um objeto do contexto científico em um contexto artístico, ele quis dizer algo com isso. Não se trata de mimese, o mesmo objeto em um contexto artístico é sobre algo diferente do que o mesmo objeto no laboratório. Eles não têm o mesmo significado, ainda que sejam equivalentes do ponto de vista material. Ainda que Duchamp, Warhol e Kac tenham usado a mesma estratégia, apresentando objetos existentes previamente em contextos artísticos, parece- me que suas obras tratam de coisas diferentes. Duchamp talvez estivesse denunciando o esgotamento da exaltação da subjetividade do artista, ou apontado para a arbitrariedade das instituições que atribuem valor à arte; Warhol, ao seu modo, fazendo um comentário acerca da cultura da classe média americana e seus hábitos de consumo, e Kac? Ao apresentar a coelhinha no contexto artístico, sobre o que ele nos fala?
Kac insere a arte transgênica no conjunto de possiblidades artísticas que, ao longo do século XX, questionaram “a representação pictórica, o objeto artesanal e a contemplação visual”, para privilegiar “processos, conceitos, ações, interações, novas mídias, ambientes e discurso crítico”20 Em outras palavras, aquilo que Lucy Lippard reuniu sob a denominação mais geral de “desmaterialização da arte”. Em 1967, Lucy Lippard usou o conceito de desmaterialização em um artigo escrito a quatro mãos com John Chandler, ao citar uma passagem escrita por John Cage. Um ano mais tarde, concluíram que este conceito poderia ser aplicado a artistas que concebem suas obras como protocolos, proposições e até listas de instruções que poderiam ser dadas a terceiros e observaram que esta maneira de conceber a intencionalidade na arte acabaria absorvendo a função do crítico de arte, uma vez que o estilo, no sentido formal, não existe na arte conceitual.
Kac entende que a arte transgênica seria um meio para ampliarmos nossas concepções de vida, interação e alteridade, questionando a natureza da arte e apresentando novas possibilidades.
A arte transgênica é um modo de inscrição genética que está dentro e fora do domínio operacional da biologia molecular, negociando o terreno entre ciência e cultura. A arte transgênica pode ajudar a ciência a reconhecer o papel de dados relacionais e comunicacionais no desenvolvimento de organismos. Pode ajudar a cultura, desmascarando a crença popular de que DNA é a molécula mestre por meio da ênfase no organismo como um todo e no ambiente (o contexto). Finalmente, a arte transgênica pode contribuir para o campo da estética, inaugurando novas dimensões simbólicas e pragmáticas da arte como criação literal da vida e de responsabilidade por ela.21
Ao inserir um ser natural geneticamente modificado no circuito artístico, exibindo-o a um público para o qual tal experimento está longe de ser trivial, Kac produz uma transferência simbólica. Além de propiciar uma experiência estética, GFP Bunny instiga a audiência a refletir acerca da relação entre homem e natureza, nos levando a questionar não apenas o que é arte, mas também o que é natureza, qual o papel da arte e qual o papel da ciência, encorajando o público a perceber a arte como um processo amplo e interdisciplinar e relacionando atividades historicamente desconectadas.
Referências bibliográficas
DE DUVE, Thierry. Kant after Duchamp. Cambridge: MIT Press, 1997.
DANTO, Arthur. A transfiguração do lugar comum. Tradução de Vera Pereira. São Paulo: Cosac Naify, 2005.
GOMBRICH, Ernst. Os sentidos da ordem. Tradução de D. M. P. Kern. Porto Alegre: Bookman, 2012.
GREENBERG, Clement. “Counter Avant-Garde”. In: MORGAN, Robert (org.). Clement Greenberg Late Writings. Minneapolis: University of Minnesota, 2003, p. 5-18.
_____. Estética doméstica. Tradução de André Carone. São Paulo: Cosac Naify, 2002.
KAC, Eduardo, “GFP Bunny: a coelhinha transgênica”. Galáxia: Revista do Programa de Pós-Graduação e Semiótica da PUC São Paulo, n. 3 (2002), p. 35-58.
KANT, Immanuel. Crítica da faculdade de julgar. Tradução de F. C. Mattos. Petrópolis: Vozes, 2016.
KOSUTH, Joseph. “A arte depois da filosofia”. In: FERREIRA, Glória; COTRIM, Cecilia (org.). Escritos de artistas anos 60/70. Tradução de P. Süssekind. Rio de Janeiro: Zahar, 2006, p. 210-234.
LIPPARD, Lucy; CHANDLER, John. “A desmaterialização da arte”. Tradução de F. Pequeno e M.P. Andrade. Arte & Ensaios, v. 25, n. 25 (2013), p. 150-165.