I
Walter Benjamin foi um leitor assíduo de romances policiais. Na lista de suas leituras, que ele se deu ao trabalho de manter, ao longo dos anos, obras de Goethe e Hofmannsthal, Nietzsche e Freud, Gide e Proust concorrem lado a lado com as de autores de literatura policial. Constam dessa lista, por exemplo, a escritora norte-americana de romances de investigação Anna Katherine Green, o jornalista e escritor francês Gaston Leroux, autor de O fantasma da Ópera e O perfume da dama de negro, e também os autores escandinavos de romances de detetive, Sven Elvestad e Frank Heller, pseudônimo de Gunnar Serner. Agatha Christie aparece na lista logo depois de Bertold Brecht e, no mesmo período de sua estadia em San Remo em 1934-1935, figuram duas traduções alemães de Arthur Conan Doyle. Há mesmo um famoso romance policial noir norte-americano numa tradução francesa: Le facteur sonne toujours deux fois, de James M. Cain. Mas a lista não esconde a predileção de Benjamin pelas novelas policiais de Georges Simenon que, a partir de 1933, ele lê com uma fiel regularidade.1
Esse interesse de longa data pela literatura policial parece indicar, contudo, um pouco mais que o gosto por uma leitura despretensiosa de romances de entretenimento. Como seu companheiro de geração Siegfried Kracauer, Benjamin deu uma especial atenção às manifestações marginais da cultura burguesa e às formas de expressão da cultura de massa. Na verdade, a referência a Kracauer é aqui quase inevitável. Ainda no final dos anos de 1920, quando o seu pensamento, como também o de Benjamin, estava fortemente imbuído de referenciais teológicos, Kracauer escreveu um pioneiro estudo filosófico sobre o romance policial.2 Mesmo antes, mas sobretudo a partir da guinada política materialista no pensamento de ambos, tanto Benjamin quanto Kracauer não tardaram em reconhecer nas formas de linguagem nascidas nas novas condições da sociedade industrial de massa “fenômenos de superfície”3 (Kracauer) ou índices histórico-linguísticos que, ao modo de sintomas (ou indícios perseguidos por um detetive), podiam a um só tempo condensar e expressar as contradições mais escamoteadas e também as inquietações mais inconscientes daquele mundo de transformações velozes e violentas que o próprio Benjamin buscou descrever sob o amplo conceito de modernidade. Dentre os muitos gêneros literários centrados na vida urbana moderna, a literatura policial conquistou desde o início um lugar de relevo. No final do século XIX, o romance policial já havia se tornado uma das mais típicas e bem-sucedidas formas de literatura de massa.
Essa preocupação com formas emergentes de linguagem, como foram a fotografia e o cinema no século XIX e início do século XX, e com novos gêneros literários urbanos, todos eles ligados ao desenvolvimento da modernidade industrial, se situa no cerne das investigações que ocuparam Benjamin desde o fim dos anos de 1920 e durante toda a década de 1930 e giravam em torno do que ele algumas vezes denominou, retomando uma expressão de Adorno, de uma “arqueologia da modernidade” [Urgeschichte der Moderne].4 Arqueologia da modernidade que se conjuga ao singular materialismo histórico benjaminiano numa espécie de experimento investigativo cujo objeto é o próprio mundo da cultura e as suas transformações convulsas na modernidade, já que essa arqueologia se propõe a realizar uma certa exposição materialista da cultura que constitui também uma historiografia materialista da cultura a contrapelo. Não custa lembrar que, para o Benjamin materialista, a cultura não constitui uma esfera isolada e privilegiada de acúmulo e entesouramento de bens culturais, mas, ao contrário, o próprio imbricamento do material e do espiritual, imbricamento tenso, atravessado por conflitos e fraturas. Também por isso, nos trabalhos de uma assumida visada materialista, Benjamin põe em questão qualquer relação causal entre base econômica e cultura e, nesse sentido, concebe o seu materialismo em termos de um materialismo expressivo, para o qual as transformações que se operaram nas condições materiais do capitalismo do século XIX ganharam expressão em determinadas formas culturais.5 Assim, para esse materialismo, as transformações materiais e técnicas do capitalismo industrial se expressaram, segundo uma dialética tensa e desdobrada, em transformações estéticas e midiáticas e, por isso mesmo, em novas formas de linguagem. Este constitui, pode-se dizer, um ponto de partida da estética materialista de Benjamin e da sua interpretação da modernidade. É ele que está no núcleo dos seus trabalhos dos anos de 1930, tanto dos ensaios sobre a obra de arte e sobre o narrador quanto dos ensaios sobre Baudelaire.
Desse núcleo da interpretação materialista da modernidade industrial desdobra-se, no entanto, uma questão menos explícita e, não obstante, de importantes implicações: se os novos meios e as novas formas literárias expressam transformações históricas nas condições de existência, também as novas mídias, ligadas, elas próprias, às novas formas de percepção e recepção, agem sobre as formas literárias já estabelecidas e forçam a sua transformação. Por certo, Benjamin se situa aqui no horizonte de uma poética histórica dos gêneros e, portanto, de uma compreensão aguda da constituição histórica das formas literárias, tal como já formulada por Georg Lukács na sua Teoria do romance e retomada pelo próprio Benjamin no seu ensaio sobre O narrador. No entanto, Benjamin parece ir um pouco mais longe: ele abre caminho para que se possam pensar as possíveis e complexas relações entre transformações estéticas, midiáticas e literárias na modernidade. Que complicadas relações se estabelecem entre as mídias visuais emergentes no século XIX, as formas de percepção e recepção a elas ligadas e os novos gêneros literários nascidos também a partir das transformações do mundo industrial moderno? Eis uma questão que, se não está explicitamente formulada nos ensaios “materialistas” dos anos de 1930, talvez deles se possa extrair e desdobrar.
II
O fio condutor da segunda parte do ensaio A Paris do Segundo Império em Baudelaire, intitulada “O flâneur”, é precisamente a correlação complexa entre as transformações nas condições de produção levadas a efeito na nascente sociedade industrial de massa e as transformações nas formas de linguagem e nos gêneros literários – correlação, portanto, entre as transformações nas condições técnicas e produtivas e nas formas de percepção e recepção e transformações nas formas literárias. Mesma problemática que, não por acaso, abre o ensaio posterior de 1939, Sobre alguns temas em Baudelaire, nascido de uma reformulação e um remanejamento de “O flâneur”, por força das críticas que Adorno dirigiu àquela primeira versão do ensaio. A despeito dessas críticas, é forçoso reconhecer que A Paris do Segundo Império em Baudelaire – um verdadeiro “ensaio cinematográfico”6, na descrição de Willi Bolle – constitui o escrito que efetivamente correspondia às intenções experimentais de Benjamin com a forma do ensaio-montagem e, inseparável dessa forma, ao seu propósito de interpretar a modernidade a partir de uma exposição-montagem de materiais em conjunção com a poesia de Baudelaire. De todo modo, a questão suscitada já na abertura de Sobre alguns temas em Baudelaire, o ensaio remanejado, é ainda a da correlação entre a mudança na estrutura da experiência e as novas condições de recepção da poesia lírica na época da primeira publicação de As flores do mal. Se essas novas condições de recepção correspondem não mais a uma atitude contemplativa e demorada mas a uma atenção distraída, afeita ao tédio provocado mesmo pelo excesso de estímulos, a mudança na estrutura da experiência, da qual a distração e o tédio constituem sintomas, define, segundo Benjamin, a própria modernidade. É nesse sentido que se pode dizer, seguindo um leitor de Benjamin, que a modernidade constitui menos um período histórico claramente demarcado do que uma mudança estrutural da experiência nas condições da sociedade industrial de massa.7
Segundo os termos da teoria estética materialista desenvolvida no ensaio sobre A obra de arte, as transformações históricas no modo de existência das coletividades humanas se fazem acompanhar de metamorfoses nas suas formas de percepção [Wahrnehmung]. Quase num desdobramento estético de formulações dos Grundrisse de Marx, a percepção é compreendida em sua radical constituição histórica e social – o modo pelo qual a percepção humana se estrutura, “o médium no qual ela se dá, não é apenas condicionado naturalmente, mas também historicamente”.8 Assim, as transformações perceptivas e, portanto, estéticas que definem o campo da experiência da modernidade ligam-se à “crescente difusão e intensidade dos movimentos de massa” e, por isso mesmo, Benjamin as colocou sob o signo do “declínio da aura”.9 Não é difícil reconhecer, a partir desse materialismo estético, a afinidade estrutural que aproxima as sensíveis dificuldades do leitor do século XIX com a poesia lírica e a distração-dispersão do público moderno de cinema, tal como este é caracterizado por Benjamin no ensaio sobre A obra de arte. À luz dessa afinidade estrutural entre o leitor moderno e o espectador de cinema, talvez possamos retomar e reler dois decisivos trechos dos escritos “materialistas” de Benjamin dos anos de 1930. O primeiro deles se refere ao espectador de cinema e foi retirado justamente do ensaio sobre A obra de arte. Diz o trecho:
A recepção através da dispersão, que se observa crescentemente em todos os domínios da arte e constitui o sintoma de transformações profundas nas estruturas perceptivas, tem no cinema o seu cenário privilegiado.10
O segundo trecho é de Sobre alguns temas em Baudelaire, do final dos anos de 1930, e diz respeito ao leitor moderno:
Se as condições de recepção da poesia lírica se tornaram menos favoráveis, é natural supor que a poesia lírica só excepcionalmente mantém contato com a experiência do leitor. E isto poderia ser atribuído à mudança na estrutura dessa experiência.11
Essas transformações nas formas de percepção encontram seu médium privilegiado e seu gigantesco laboratório na metrópole moderna do século XIX, com a circulação em massa de pessoas e mercadorias, o desenvolvimento do tráfego e dos novos transportes urbanos e todas as inovações técnicas e reordenações urbanísticas daí advindas. Servindo-se de uma passagem de Georg Simmel citada livremente, Benjamin chama a atenção para o fato de que as relações sociais na cidade grande “caracterizam-se por um evidente predomínio da atividade do olhar sobre a do ouvido”, para o que contribuem decisivamente “os meios de transporte coletivos”.12 Essa situação inédita de predomínio da experiência ótica em meio à massificação urbana não apenas reprograma a atenção dos citadinos como também passa a ser fonte de novas ansiedades e inquietações. É nesse horizonte que se pode localizar a figura do espectador moderno.
Com efeito, o que aqui designamos por espectador moderno tem uma configuração histórica específica, embora complexa: ele diz respeito aos efeitos e implicações das mudanças técnicas e midiáticas do capitalismo industrial e, portanto, às formas de percepção e recepção nascidas sob essas condições. Contudo, ele pressupõe também um longo e descontínuo percurso, marcado por clivagens históricas, o que inclui desde a experiência do espectador do palco italiano e da janela do mundo da pintura renascentista até o desenvolvimento do drama burguês e do teatro popular e a formação do público moderno. Em seus desdobramentos nos séculos XIX e XX, o espectador moderno se reconfigura sob o impacto da reprodução em série de imagens pelo novo meio técnico da fotografia e sobretudo da experiência de recepção coletiva ótico-tátil do cinema13, tanto dos primeiros experimentos do cinema mudo e sonoro como do cinema clássico da grande indústria em vigor, pelo menos, até após a Segunda Guerra e ao longo de toda década de 1950.14
Não é sem razão que a emergência de novas formas literárias nas condições da sociedade industrial de massa do século XIX articula-se também à constituição da figura do espectador moderno e, como a sua face complementar e inseparável, à configuração da metrópole moderna e da própria modernidade como espetáculo. É assim, nessas condições, que se formam e se incrementam os gêneros literários urbanos, precisamente estes que tomam por seu objeto a experiência cotidiana da cidade grande moderna – e essa experiência se apresenta aí sob a forma do espetáculo, ao qual deve corresponder o lugar e a figura do espectador. Benjamin insiste que é esse também o mundo no qual se situa a obra poética de Baudelaire como um momento de fundação da poesia moderna. Também para essa nova lírica a experiência da cidade grande se converte na matéria poética por excelência, ainda que, no contexto dos novos gêneros literários urbanos ligados ao desenvolvimento da grande imprensa, Baudelaire apareça como um caso, por assim dizer, desviante.15 De todo modo, na paisagem urbana visada pela poesia de Baudelaire, quase uma segunda floresta de signos, destaca-se, não menos, a figura dúbia do flâneur-espectador, intercambiável muitas vezes com a do próprio poeta.
Assim, se desde o fim do século XVIII e início do século XIX o escritor advindo da tradição do iluminismo e do romantismo se vê defrontado com as novas condições de vida ligadas ao desenvolvimento do mercado, ao incremento da grande imprensa e às inovações técnicas e midiáticas, é também a partir daí que toda uma gama de novas formas literárias nasce e se desenvolve. No contexto de Baudelaire, esse amplo espectro de novas formas literárias abrange especialmente aquelas que ficaram conhecidas sob a rubrica de “quadros de Paris” [tableaux de Paris], denominação que deixa clara a sua inspiração visual, pictórica e mesmo fotográfica, já que se trata de uma modalidade de literatura que pretende pintar quadros urbanos, mais propriamente quadros da cidade de Paris.16 Não custa lembrar que Baudelaire se apropria ironicamente do tableau urbano e o converte numa forma poética encarregada de flagrar cenas desconcertantes e, por isso mesmo, reveladoras da vida na cidade grande, tanto nos seus Tableaux parisiens de As flores do mal quanto nos poemas em prosa de O spleen de Paris. Na verdade, o que aí se delineia é uma longa linhagem de textos literários que fundam um discurso sobre a cidade, mas um discurso que se configura também como uma certa observação da cidade. Essa linhagem se inaugura com o Tableau de Paris (1783-1788) de Mercier, mas é somente no contexto da Monarquia de Julho e em especial nas décadas de 1830 e 1840, a época de Baudelaire, que o discurso literário sobre a cidade, ao sabor de sua popularização, faz cruzar a intenção realista com o apelo ao imaginário. Desde então, o que se afirma, na verdade, é um discurso literário ambivalente sobre a cidade, já que a sua intenção é dar forma e visibilidade à experiência urbana mas também investi-la de fantasia e dramatizá-la. Os quadros urbanos de Paris permitem evocar escritos tão diversos quanto Os mistérios de Paris, de Eugene Sue, Os miseráveis, de Victor Hugo e A comédia humana, de Balzac.
Em “O flâneur”, a segunda parte de A Paris do Segundo Império em Baudelaire, Benjamin se detém nessas formas literárias urbanas nascidas na época de consolidação da grande imprensa, época também de Baudelaire, especificamente aquelas em que, como já se insistiu aqui, a cidade moderna é transformada em espetáculo. É assim que ele se detém numa forma de literatura cuja intenção era dar a ver a vida citadina moderna de um modo que ela pudesse ser apreciada como um espetáculo – Benjamin a designa significativamente de literatura panoramática, numa associação aos panoramas, esses que são das primeiras inovações técnicas de mídia visual do século XIX, com o claro propósito de promoção de um espetáculo que, no mais das vezes, buscava aliar informação e entretenimento. Embora tenham constituído uma inovação notável no século XIX, os panoramas não representaram, por certo, um fenômeno isolado, mas se inscreviam no amplo complexo de transformações técnicas e midiáticas que acompanharam a implantação da sociedade industrial de massa. Vale lembrar, nesse sentido, que o século XIX conheceu o rápido desenvolvimento de uma série de dispositivos óticos que, ligados muitas vezes a pesquisas científicas, eram a um só tempo aparatos técnicos e meios já imediatamente transformados em formas de entretenimento: o caleidoscópio, o fenacitoscópio, o diorama, o estereoscópio, o daguerreótipo e, posteriormente, a fotografia e o cinematógrafo, apenas para citar os mais conhecidos.17 Nessa série de novas mídias visuais, os panoramas se destacaram especialmente pelo uso que fizeram da tecnologia para o fim de produzir um espetáculo. A sua forma mais comum e padronizada correspondia a uma pintura circular de grandes dimensões (15 metros de altura por 120 de largura são medidas características), na maioria das vezes móvel, situada em volta de uma rotunda.18 Os panoramas tinham em sua base o convite ao ilusionismo visual a partir da mobilização da técnica da perspectiva renascentista e constituíam assim uma peculiar conjunção de arte e técnica ou, mais propriamente, uma refuncionalização técnica da tradicional arte da pintura desde a sua premissa renascentista de imitação da natureza. Como espetáculo visual que produz uma transformação ilusionista na paisagem ou na cena, o panorama se situa na pré-história do cinema – obedece já ao princípio cinemático de uma representação em movimento; ao mesmo tempo, como uma técnica visual que induz à simulação, ele também se presta a entreter o espectador. Cito Benjamin:
Assim como a arquitetura começa a emancipar-se com a construção de ferro, assim a pintura por sua vez o fez com os panoramas. [...] Foi incansável o esforço de tornar os panoramas, por meio de artifícios técnicos, locais de uma imitação perfeita da natureza. Procurava-se reproduzir na paisagem as mudanças da luz do dia, o nascer da lua, o murmurar das cascatas. Davi aconselha seus discípulos a desenharem panoramas segundo a natureza. Ao tentar reproduzir na natureza representada as transformações de maneira engenhosamente similar, os panoramas abrem caminho, para além da fotografia, ao cinema mudo e ao cinema sonoro.19
Ao associar o panorama a todo um gênero literário surgido na mesma época, Benjamin quer enfatizar o que move a “literatura panoramática”, ou seja, a intenção de pintar painéis da vida moderna e, mais que isso, conferir a ela um caráter de espetáculo. Tornada possível pelo desenvolvimento da imprensa jornalística de massa, essa forma de literatura popular se propõe justamente a descrever episódios e tipos da vida cotidiana da cidade grande, em especial da cidade de Paris sob a Monarquia de Julho. A estrutura de “esquete descritivo” da vida urbana que caracteriza o gênero indica bem o seu parentesco com o panorama. Na literatura panoramática, encontramos – observa Benjamin – “esboços que, por assim dizer, imitam com o seu estilo episódico o primeiro plano, mas plástico, e com o seu fundo informativo o segundo plano, mais amplo, dos panoramas”.20 A dimensão de visualidade desse gênero literário não se limita, no entanto, à sua estrutura de descrição e encenação mas envolve também a utilização da “ilustração visual”, a “justaposição de descrições da vida cotidiana parisiense e de litogravuras que ilustravam tais descrições”.21 Como um gênero que justapõe representação literária e representação visual, a “literatura panoramática” participa do mesmo contexto que vê surgirem a revista ilustrada e o cartaz publicitário.
Benjamin chama a atenção especialmente para um subproduto mais popular da “literatura panoramática” que se destinava ao consumo despretensioso no espaço da rua (“destinada a ser consumida nas ruas”) e, por isso mesmo, apareceu sob a forma de livros de bolso: as “fisiologias”.22 Esse tipo de literatura se concentra na descrição pitoresca de tipos humanos e de aspectos do cotidiano que compõem a vida da cidade grande. Trata-se de uma das primeiras manifestações de literatura de massa no mesmo momento em que também se difunde o romance de folhetim. É assim uma modalidade literária que se alimenta do estímulo de sensações no público e da criação de novidades, participando dos apelos característicos do consumo de massa. O que distingue, no entanto, mais sintomaticamente essa forma de literatura – que Benjamin descreve como um gênero tipicamente pequeno-burguês – é a intenção de, por meio do pitoresco, oferecer uma visão inofensiva da vida urbana moderna. Nesse sentido, as fisiologias buscam cumprir uma função apaziguadora: afastar da vista o caráter constitutivamente conflituoso da metrópole moderna e apresentar a vida urbana sob um ponto de vista tranquilizador. Para tanto, elas mobilizam uma dimensão de fantasia em relação à vida social que mais adiante será a tônica de muitos dos novos meios ligados à visualidade, da revista ilustrada ao cinema. Ao pretender dar uma visão tranquilizadora do mundo urbano moderno e, com isso, escamotear o que nele há de conflitivo (no limite, as suas divisões sociais), as fisiologias compõem representações fantasmagóricas, integram a rede de fantasmagorias da vida moderna23 – elas “teciam, a seu modo”, diz Benjamin, “a fantasmagoria da vida parisiense”, já que “o que importava era dar às pessoas uma imagem agradável umas das outras” quando na vida social estas “conheciam-se como devedores e credores, como vendedores e fregueses, como patrão e empregado – e sobretudo conheciam-se como concorrentes”.24
Às fisiologias com sua função apaziguadora, Benjamin contrapõe um outro gênero literário urbano nascido no século XIX: o romance policial. Esse novo gênero não se ocupou em descrever tipos, como as fisiologias; ao contrário, o romance policial se fixou nos aspectos “mais inquietantes e ameaçadores” da vida na cidade grande moderna.25 Não deixa de ser sugestivo – lembra ainda Benjamin – que as fisiologias tenham rapidamente caído em desuso, enquanto a literatura policial tenha alcançado um êxito de longo alcance. A prolífica história da literatura policial, concentrada nesses aspectos “mais inquietantes e ameaçadores” da vida moderna, pode então ser tomada como uma espécie de sintoma histórico-literário da modernidade industrial. A geração de críticos na qual Benjamin se situa (Lukács, Bloch, Kracauer) desde cedo reconheceu no gênero da história policial uma forma de literatura capaz de dar expressão a medos e angústias que atravessavam a sociedade burguesa e remetiam a situações-limite de violência e de ruptura da ordem burguesa sob a forma do crime. Especialmente Benjamin e Kracauer veem na literatura policial uma expressão e uma elaboração em termos de forma literária de inquietações que rondam a moderna sociedade de massa e têm por objeto o risco sempre iminente de, numa vida social já dominada pela impessoalidade do mercado e, portanto, pelo fenômeno da multidão anônima, o conflito latente nela pressentido degenerar em violência descontrolada.
Embora Benjamin não se refira neste ponto de “O flâneur” ao termo freudiano Unheimliche26, o caráter “inquietante” da vida moderna que o romance policial traz à tona e à cena parece evocar certos aspectos da palavra-conceito de Freud, sobretudo o fato de que o inquietante se associa aqui às ameaças advindas do mundo exterior da rua onde se move a multidão, asilo do criminoso, em contraste com o interior da casa, percebido na sociedade burguesa triunfante como abrigo contra as ameaças externas e proteção não apenas contra a agressão à propriedade mas também contra a dissolução da identidade burguesa no mundo massificado a que levou a modernidade industrial – se a multidão anônima acolhe e esconde o criminoso, o interior do lar aparece ao indivíduo burguês como o seu estojo confortável e protetor. Essa tensão entre a ameaça externa representada pela rua da cidade grande e o interior do lar como lugar de proteção e de busca de identidade está, segundo Benjamin, no cerne do romance policial. Desse ponto de vista, não é casual que Freud encontre a representação do fenômeno psíquico do inquietante e do infamiliar [das Unheimlich] na literatura fantástica do século XIX, mais exatamente num conto de horror – O homem da areia – que guarda afinidades com a história policial – E.T.A. Hoffmann, o autor do conto que inspirou Freud, escreveu também histórias policiais e muitos de seus contos de horror tem elementos da história de crimes.27
Por certo, uma das experiências sociais mais perturbadoras para os citadinos do século XIX é a da massa da metrópole moderna. O seu caráter a um só tempo envolvente e assustador não passou despercebido a muitos dos seus primeiros observadores. Benjamin destaca, por exemplo, o espanto provocado pela multidão londrina em Engels – a descrição de uma multidão desumanizada que encontramos em A situação da classe operária na Inglaterra é, insiste Benjamin ao citá-la, a de um observador proveniente de uma Alemanha ainda provinciana.28 Os londrinos e parisienses das primeiras décadas do século XIX já experimentavam no cotidiano da vida urbana os efeitos da moderna sociedade de massa. Não é de se estranhar que a multidão tenha se imposto como um tema forte para a literatura do século XIX, o que se deixa ver tanto no modo como o inglês Charles Dickens retrata a população londrina da era da Revolução Industrial em quase todos os seus romances quanto na forma como o francês Victor Hugo se dirige à multidão já em seus títulos (Os miseráveis, Os trabalhadores do mar). A massa moderna expunha também a formação de um novo público, justamente o público moderno ou, mais especificamente, o público leitor como uma massa de consumidores correlata ao crescente papel da grande imprensa (Benjamin lembra como Hugo estava atento a essa massa de leitores). Mas o caráter desconcertante e mesmo amedrontador da massa tem uma de suas descrições mais impressionantes precisamente no inventor da história policial, Edgar Allan Poe, do qual Baudelaire foi, não por acaso, leitor e tradutor. Segundo Benjamin, a multidão moderna, como fenômeno distintivo da sociedade industrial de massa do século XIX, constitui a personagem a um só tempo implícita e onipresente do romance policial. De modo semelhante, a multidão se insinua na poesia de Baudelaire, uma multidão velada mas intimamente presente com seu rumor – “Em Baudelaire, a massa é de tal forma intrínseca que em vão buscamos nele a sua descrição”29, afirma Benjamin. Se não há propriamente uma descrição da massa em Baudelaire, o seu poema em prosa Les foules se destaca, no entanto, como exemplar de uma verdadeira reflexão poética sobre a massa.30
O caráter inquietante da multidão moderna, ao qual o romance policial buscou dar expressão, diz respeito, segundo Benjamin, à conjunção entre aglomeração urbana anônima e atomização solitária na massa – evoca, na verdade, medos e angústias profundos e inconscientes da sociedade burguesa moderna. Ora, a massificação atinge e perturba o próprio burguês, pois ela denuncia a dissolução do indivíduo na massa amorfa, na padronização funcional do sistema produtivo e também no número indiferente das estatísticas. Mas ainda do ponto de vista da segurança burguesa, o caráter problemático da massificação remete também à dificuldade de identificar e controlar o indivíduo numa cidade explosivamente populosa, considerando, inclusive, a formação de um grande contingente de trabalhadores miseráveis ou sem ocupação definida, aqueles que Marx denominou de lumpenproletariado, um exército industrial de reserva cujos membros estavam disponíveis para enveredar pela atividade do crime ou mesmo se converter em criminosos profissionais, aparentados, nesse sentido, aos “conspiradores profissionais” que Benjamin analisou na primeira parte do ensaio A Paris do Segundo Império em Baudelaire, “A Boêmia”, situando-os numa relação direta com a poesia de Baudelaire.31
Sobre esses aspectos do romance policial como gênero urbano moderno, caberia aqui um adendo. Pode-se dizer, quanto a isso, que a literatura policial retira a sua matéria das contradições mais violentas da sociedade capitalista moderna e as transfigura e sublima numa forma literária que se alimenta justamente da tensão ordem versus crime. A sublimação literária das contradições confere ambivalência a essa forma e ao mesmo tempo demarca e força os seus limites. Levando às últimas consequências essa matéria contraditória da literatura policial, é possível chegar a uma proposição desconcertante que aproxima as leituras de Benjamin e Brecht para esse gênero nascido no auge do capitalismo. Assim, se, do ponto de vista da ordem burguesa, o perigo é identificado à massa de deserdados produzida pelo capitalismo industrial, de um ponto de vista a contrapelo dessa ordem, o próprio desenvolvimento da sociedade capitalista moderna pode ser desmascarado como uma aclimatação e organização da espoliação nos moldes do gangsterismo. A sociedade burguesa é exposta então como fundada na legitimação de uma associação de criminosos. O Romance dos três vinténs opera com essa exposição satírica. Segundo Benjamin, Brecht joga aí satiricamente com as regras do romance policial e ao mesmo tempo o desmonta ao expor a relação constitutiva entre a ordem jurídica burguesa e a lógica da organização criminosa. O Romance dos três vinténs já representaria assim um ponto de desconstrução dialética do próprio romance policial.32
O contexto da literatura policial clássica é ainda, no entanto, aquele da tensão entre ordem versus crime. Nesse contexto, os citadinos, ao mesmo tempo massificados e atomizados, aparecem com um elemento de incógnito imprevisível e incontrolável, sobretudo porque também podem encarnar os antissociais, os indesejáveis e os potencialmente perigosos – numa palavra, os criminosos. Seja da perspectiva do indivíduo burguês, seja do ponto de vista dos que circulam pelas margens da sociedade capitalista industrial do século XIX, a experiência social que o romance policial toma como seu objeto decisivo refere-se àquilo que Benjamin descreve como o desaparecimento dos rastros do indivíduo na multidão da cidade grande.33 “O conteúdo social original do romance policial é o desparecimento do rastro do indivíduo no meio da multidão da grande cidade”34, sintetiza Benjamin. Os contos policiais fundadores e, por isso mesmo, clássicos de Edgar Allan Poe, todos eles tendo Paris como sua paisagem urbana, tratam, no fundo, dessa problemática do desaparecimento dos rastros e do seu caráter inquietante. O mistério de Marie Roget é emblemático nesse sentido, seja porque gira em torno do desaparecimento (e do assassinato) de uma jovem lojista na populosa Paris oitocentista, seja porque o crime é desvendado pelo senhor Dupin apenas através de notícias e informações colhidas nos jornais, o meio de comunicação por excelência da sociedade de massa do século XIX. A levar em conta uma carta de Benjamin em resposta às críticas de Adorno ao seu primeiro ensaio sobre Baudelaire, foi muito provavelmente neste conto policial de Poe que Benjamin encontrou uma das matrizes para a elaboração do conceito de rastro-vestígio [Spur] e de toda a problemática moderna do desaparecimento dos rastros. Lê-se num trecho dessa carta de dezembro de 1938:
Se um conceito como vestígio fosse receber uma interpretação concludente, então teria de ser introduzido com toda a desenvoltura no plano empírico. Isso poderia se dar de forma mais convincente. De fato, a primeira coisa que fiz ao regressar foi verificar uma importante passagem de Poe para minha construção da narrativa policial a partir da obliteração ou fixação dos vestígios do indivíduo no meio da multidão da metrópole.35
Muito provavelmente também a “importante passagem de Poe” é aquela que Benjamin cita longamente na segunda parte de A Paris do Segundo Império em Baudelaire, da qual citamos aqui a conclusão do senhor Dupin:
De minha parte, sustento ser não só possível, como também muito mais do que provável, que Marie pode ter seguido, a qualquer hora dada, por qualquer um dos inúmeros trajetos entre sua própria residência e a de sua tia, sem encontrar um único indivíduo que conhecesse, ou de quem fosse conhecida. Ao ver essa questão sob sua luz plena e apropriada, devemos ter com firmeza em mente a grande desproporção entre os conhecidos pessoais até mesmo do indivíduo mais notado de Paris e a população inteira da própria cidade.36
O poder dissolvente que está no cerne da massificação moderna encontra, segundo Benjamin, uma resposta desesperada na própria burguesia, resposta que se expressa numa relação espacial e numa forma arquitetônica, o interior burguês.37 Trata-se, por assim dizer, de uma resposta compensatória ao medo e à angústia provocados no indivíduo burguês pela massificação social com seu anonimato e pela percepção nem sempre inteiramente consciente de que na ordem social burguesa todos são reduzidos, no fim das contas, a uma função impessoal do sistema produtivo – “Desde Louis Philippe, a burguesia empenha-se em encontrar uma compensação para o desaparecimento dos vestígios da vida privada. E ela o faz entre as quatro paredes”.38 Esta angústia com o desaparecimento sem deixar rastros ganha uma dimensão dramática no auge da sociedade burguesa e se faz ouvir na fala do Fausto de Goethe diante de sua morte citada alusivamente por Benjamin: “É como se fosse para ela [a burguesia] uma questão de honra não deixar desaparecer no turbilhão do tempo se não ‘o rastro dos trabalhos e dos dias’ neste mundo, pelo menos dos seus artigos e consumos e acessórios”.39 É no interior da casa, entulhado de peças e souvenirs e transformado numa concha protetora, que a burguesia busca insistentemente responder à angústia provocada pela supressão dos vestígios na ordem social massificada. Ainda assim, apesar de todas essas medidas compensatórias e mesmo em razão delas, o componente de medo-angústia não é de todo eliminado, já que não desaparece, antes se torna mais amedrontadora a possibilidade de irrupção da violência e da ruptura (por fim, do crime) no próprio interior burguês, não apenas como uma ameaça externa mas como um perigo que eclode a partir de dentro, por isso mesmo ainda mais terrificante. O romance policial, desde a sua fundação com Poe, não cessou de dar expressão a esses medos e angústias que rondam permanentemente e, no fundo, estruturam o interior burguês como forma a um só tempo psíquica, cultural e arquitetônica. Se o lar burguês se configura como um repositório de bens e um invólucro protetor onde o indivíduo busca preservar seus vestígios “tal como a natureza conserva no granito uma fauna extinta”, a burguesia (e não apenas a classe operária) oferece resistência, por seus próprios meios, à “extensa rede de controles” que, segundo Benjamin, desde a Revolução Francesa “vinha apertando cada vez mais a vida burguesa nas suas malhas”.40 Não por acaso, desde A carta roubada, de Poe, até os romances policiais de Conan Doyle, o interior burguês é encenado como o lugar do crime onde o detetive sai à cata de vestígios perdidos ou imperceptíveis que possam denunciar o criminoso. O romance policial faz assim reaparecer justamente na fantasmagoria do interior burguês o inquietante-familiar ligado às ansiedades e pavores latentes na sociedade burguesa com o desaparecimento dos rastros.
Para Benjamin, a primeira elaboração literária dessas inquietações coincide com o nascimento do romance policial em Poe, nascimento que se dá não propriamente com um romance mas com os seus três contos policiais fundadores – Os assassinatos da rua Morgue, O mistério de Marie Roget e A carta roubada. É neles que se estrutura a narrativa policial clássica com as figuras do crime, do criminoso, da vítima, do detetive e da solução do enigma representado pelo crime (embora, em Poe, nem sempre esse enigma seja inteiramente resolvido). Para Benjamin, as massas modernas devem ser aí incluídas como uma figura fundamental e sempre pressuposta na narrativa policial, já desde as peças de Poe (o exemplo clássico é ainda O mistério de Marie Roget). Por sua vez, ao enigma disruptivo e perturbador representado pelo crime faz frente a figura racional do detetive clássico, cujo primeiro representante é o senhor Dupin dos contos de Poe.
Talvez se possa dizer que, como para Kracauer, também para Benjamin, a figura do detetive no romance policial clássico constitui não simplesmente uma representação da sóbria lógica dedutiva aplicada ao desvendamento dos crimes mas a personificação de uma racionalidade controladora frente ao medo do desconhecido. O crime irrompe aí como um evento desagregador ao qual deve fazer frente a figura friamente racional do detetive. Por isso mesmo, sobretudo em Kracauer, o detetive encarna uma razão reduzida ao puro cálculo e tornada cega em seu propósito de controle e de restabelecimento da ordem. Mas o detetive apenas reflete em estado puro uma espécie de racionalidade burocrática que tomou conta da própria ordem social moderna. Kracauer a denomina de ratio no seu estudo filosófico do fim dos anos de 1920 sobre o romance policial41 e ela certamente prenuncia a descrição da racionalidade iluminista nas primeiras páginas da Dialética do esclarecimento, de Adorno e Horkheimer, páginas que também devem muito a Benjamin.
Contudo, Benjamin confere ao detetive contornos bem mais ambíguos e, nesse sentido, o associa à figura do flâneur-espectador. Na verdade, para Benjamin, o flâneur como um perambulador aristocrático ocioso que não se ajusta inteiramente ao ritmo acelerado da sociedade capitalista industrial e contra ele se insurge é também um observador meio indolente da vida da cidade. Os espaços urbanos que favorecem a flânerie – passagens, galerias e bulevares – são também, nesse sentido, lugares para o exercício da observação, para apreciar as novidades e olhar as vitrines, observar o movimento e os transeuntes, ver e ser visto. Pode-se dizer, nesse sentido, que a atitude de observação é constitutiva do flâneur e ele muitas vezes encara a cidade como um espetáculo à sua disposição. Assim, o olhar que o flâneur dirige à cidade aparenta-se à visão da cidade moderna apresentada pela nascente literatura urbana que pinta quadros da vida na cidade e muitas vezes se ocupa em descrever pitorescamente tipos e trivialidades como fazem as fisiologias – “O registro tranquilo dessas descrições ajusta-se aos hábitos do flâneur, que é uma espécie de botânico do asfalto”.42 O flâneur busca as galerias e passagens justamente porque elas pretendem criar um espaço intermédio entre a rua e o interior. Sob o mesmo impulso, ele deseja transformar o bulevar em casa. Por isso, ele não apenas está imerso nas fantasmagorias espaciais e arquitetônicas da cidade moderna (transformar a rua em interior) mas delas participa e as alimenta continuamente. Essas são também fantasmagorias do espectador, pois o flâneur pretende muitas vezes se relacionar com a paisagem urbana como aquele que assiste a um espetáculo. No entanto, a partir do momento em que na sociedade de massa se tornam patentes o desaparecimento dos rastros do indivíduo e a dificuldade de sua identificação para fins de controle, a figura antes inofensiva do flâneur pode, diante da ruína da ordem que mantinha o ócio aristocrático, metamorfosear-se na figura do observador-detetive (na língua inglesa, esse sentido é explícito: private eye). O detetive clássico, que se situa, segundo Kracauer, da perspectiva da ratio controladora e da manutenção da ordem social, também representa um olhar técnico de cálculo e de astúcia voltado para o esquadrinhamento do antissocial. É do século XIX o incremento dos instrumentos técnicos de identificação e controle da nascente criminologia. Benjamin insiste que a dificuldade de identificação dos potencialmente perigosos na sociedade de massa teve como resposta o rápido desenvolvimento dos meios técnicos da identificação criminal. Ora, um momento crucial para a identificação criminológica é a invenção da fotografia, meio técnico de reprodução da imagem capaz de garantir (ou pelo menos pleitear) um registro confiável porque pretensamente objetivo. Na verdade, a fotografia surge num complexo de transformações técnicas e midiáticas que se ligam também a mudanças no regime de visibilidade e das formas de percepção e recepção e não menos a mudanças nas formas de controle social exigidas pela sociedade industrial de massa. O mesmo século XIX que conheceu o nascimento da fotografia vai conhecer também a invenção da estrutura arquitetônica do panóptico proposto por Jeremy Bentham como uma estrutura-modelo da sociedade disciplinar, segundo a descrição e análise que Michel Foucault dele faz em Vigiar e punir.43 Não deve passar despercebido, aliás, que o panóptico guarda semelhanças com o olhar panoramático e se insere no mesmo contexto de transformações estéticas, midiáticas e políticas em que se forma o espectador moderno.
Enquanto no final do século XIX ainda se travava vivamente um debate sobre o caráter de arte da fotografia, esta já era largamente utilizada como um meio técnico relativamente seguro e preciso de identificação criminal, sobretudo ao ser acoplada de modo eficiente ao bem-sucedido método Bertillon, um detalhado arquivo de informações biométricas cruzadas sobre o indivíduo infrator.44 Essa foi uma das funções logo atribuídas à fotografia no século XIX: ao permitir a fixação da imagem do indivíduo num registro duradouro, a inovação técnica da fotografia representou um passo decisivo em termos de método de identificação. Caso se leve em conta as análises de Foucault sobre as técnicas disciplinares no século XIX, é possível mesmo dizer que a fotografia participou, como meio de identificação, da constituição do indivíduo na moderna sociedade de massa tanto quanto de seu controle. Esse propósito de identificar o indivíduo com certeza e exatidão técnicas constituiu por certo uma reação ao caráter ao mesmo tempo dissolvente e massificador do mundo moderno. Como procedimento técnico de identificação, a fotografia pretende capturar e registrar, recompor e esquadrinhar o corpo humano individual destacado da massa e superar o que nele possa aparecer como indeterminável. Um tal propósito de identificar o indivíduo isolando-o da massa e da instável circulação moderna indica bem como a problemática do desaparecimento dos rastros e, em contrapartida, dos esforços técnicos para o seu registro situam no mesmo horizonte histórico a fotografia e o romance policial. Ambos se formam e se desenvolvem num complexo de mudanças estéticas e midiáticas que define também um contexto de novas exigências e conquistas quanto à possibilidade de “registrar vestígios duradouros e inequívocos de um ser humano”.45 É Benjamin que sintetiza esse contexto de nascimento do romance policial em seu parentesco com o desenvolvimento da técnica da fotografia: “O romance policial se forma num momento em que estava garantida essa conquista a mais decisiva de todas – sobre o incógnito do ser humano. Desde então, não se pode pretender um fim para as tentativas de fixá-lo na ação e na palavra”.46
Nessas novas condições há confluências que ligam e muitas vezes superpõem o olhar do flâneur, o olhar do detetive e o olhar do fotógrafo. Todos eles compõem em seus desdobramentos complexos a figura do espectador moderno. Articulam, nesse sentido, o olhar afeito ao espetáculo da vida moderna e à circulação de pessoas e mercadorias com o olhar treinado e adaptado aos novos meios técnicos e o olhar esquadrinhador dos vestígios do indivíduo na massa. São configurações do regime de visibilidade moderna que expressam mudanças técnicas, midiáticas e estéticas mas também novas exigências econômicas e políticas ligadas ao desenvolvimento da sociedade de massa. Nesse contexto, dois contos referidos e contrapostos por Benjamin a certa altura de A Paris do Segundo Império em Baudelaire são emblemáticos da configuração do espectador moderno. De igual modo, esses dois contos se vinculam significativamente à figura ambígua e mesmo contraditória do espectador em Baudelaire.
III
Duas das mais instigantes construções literárias em torno da figura do espectador moderno no século XIX podem ser encontradas, assim, nos dois contos referidos em A Paris do Segundo Império em Baudelaire – o primeiro deles é o famoso O homem da multidão, de Edgar Allan Poe, que Benjamin cita e comenta mais longamente; o outro, menos conhecido mas nem por isso menos representativo, é A janela de esquina do meu primo, de E. T. A. Hoffmann, ao qual Benjamin se refere mais brevemente e com alguma reserva crítica ao contrastá-lo com o conto de Poe. Menos que comentar e confrontar mais detidamente os dois contos, como faz o próprio Benjamin num decisivo trecho de “O flâneur”, gostaria mais propriamente de chamar a atenção para a diferença de perspectiva a partir da qual se dá a ver a figura do espectador nos dois contos. Essa diferença de perspectiva talvez possa fornecer pistas para uma apreensão da figura do espectador moderno tal como ela se apresenta, ao modo de um sintoma, na literatura do século XIX.
Na verdade, uma primeira diferença importante se impõe de imediato: o conto de Poe se passa em Londres, a metrópole por excelência da Revolução Industrial e primeira representação urbana da sociedade industrial de massa, ao passo que A janela de esquina do meu primo é situado em Berlim, cidade na qual o processo de ingresso na era da grande indústria e da urbanização moderna se deu de forma bem mais tardia. Mas a diferença crucial entre os dois contos se manifesta, sobretudo, naquele contraste de perspectivas que permite entrever faces distintas da posição e da figura do espectador.
Em A janela de esquina do meu primo, o conto de Hoffmann, o olhar que se dirige à cidade e à multidão citadina é um olhar distanciado a partir do posto de observação elevado e discreto, também seguro e confortável, da janela de um apartamento defronte à praça do Gendarmenmarkt, na região central de Berlim. A personagem que enquadra e conduz esse olhar é a do primo do narrador, sugestivamente um escritor que, por uma enfermidade progressiva, se tornou paralítico mas cuja “doença terrível não conseguiu inibir o célere mecanismo da fantasia que continuava a funcionar em seu íntimo”47 – é o primo do narrador que, “da janela de um pequeno gabinete”, “[...] abarca num lance de olhos todo o panorama da grandiosa praça”.48 No entanto, mais que a visão panorâmica, o primo personifica uma disposição especial para a observação acurada, a de um “olho que realmente enxergue” e ao qual a cidade se mostra como “um cenário variado da vida burguesa”.49 A situação de isolamento e segregação do primo escritor, acometido por uma paralisia mas não abandonado pela fantasia, alude, pode-se dizer, ao “exílio do artista na moderna sociedade burguesa (como faria mais tarde o próprio Baudelaire na alegoria do poeta-albatroz)”.50 Mas, sob a figura do escritor como um olho apurado, o que sobressai é também a posição do espectador distanciado. O poeta já se converteu rapidamente em espectador – ele se posta no alto e se arma com uma espécie de instrumento ótico, talvez uns binóculos de teatro, como se estivesse num camarote que é também um posto privilegiado de observação; com seu olhar afiado, observa a rua mas está instalado confortavelmente em casa. O que se tem aí, segundo Benjamin, é “o cidadão privado, sentado na sua sacada como num camarote”.51 Essa posição não remete, no entanto, apenas aos signos do conforto e da segurança burgueses mas ao próprio espectador como um lugar separado, no qual o mundo da experiência cotidiana, nas condições postas pela modernidade, passa a ser captado sob a forma do espetáculo controlado.
Já no conto de Poe o que se tem de mais singular é o olhar de um observador tenso, ao mesmo tempo próximo e distante. Este olhar coincide com o do personagem narrador, uma figura que reúne em si índices marcantes do comportamento do citadino moderno ou, como aponta Benjamin, do consumidor anônimo52 – ele é um leitor de jornais (tem “um charuto na boca e um jornal sobre os joelhos”53) e um frequentador da rua, já lê o seu jornal não em casa mas num lugar de trânsito de pessoas, o café de um hotel localizado numa avenida movimentada de Londres; mais ainda, ele está afeito aos múltiplos apelos visuais de uma cidade grande e extrai diversão tanto da leitura dos anúncios do jornal quanto da observação dos transeuntes e do movimento da rua (“estivera me entretendo a maior parte da tarde, ora absorvendo-me nos anúncios; ora observando a variada clientela presente no recinto; ora, ainda, vendo a rua através dos vidros esfumaçados”54). Como o primo do conto de Hoffmann, o personagem de Poe também observa a multidão de uma janela que enquadra a cena urbana; mas, ao contrário de A janela de esquina do primo, trata-se aqui da janela de um café, lugar de circulação de pessoas, típico da vida urbana moderna, e não da janela de um apartamento, espaço privado contraposto à rua – o narrador de Poe informa, aliás, que se trata especificamente de uma “large bow window”, ou seja, um tipo de janelão arredondado que se projeta no espaço externo para além da parede. Ao confrontar esses elementos dos dois contos, Benjamin observa: “Mas como é limitado o olhar sobre a multidão daquele que está instalado em casa, quando comparado ao daquele outro que olha através dos vidros do café!”55
O personagem-narrador do conto de Poe é, além disso, um observador convalescente que se recupera de uma doença e por isso olha o mundo e a vida da cidade com olhos renovados e uma intensidade incomum, o oposto do embotamento da atenção provocado pelo ennui moderno.56 A convalescença confere a ele uma condição fora do normal e o afasta do citadino comum e apressado, faz dele um observador vivaz, dotado de uma curiosidade especial, uma espécie de disponibilidade ociosa – “Sentia um interesse tranquilo, mas curioso, por tudo”.57 A sua observação se volta, no entanto, com um prazer especial para a multidão que como uma torrente toma conta da rua – “o agitado mar de cabeças humanas enchia-me, pois, de uma emoção deliciosamente nova”58 –, até que, da multidão amorfa, ele consegue destacar aos poucos os vários tipos humanos e as diferentes categorias sociais que nela se misturam, desde os nobres, comerciantes, advogados, funcionários de vários estratos, até os jogadores profissionais, vendedores ambulantes, carregadores de carvão e limpadores de chaminé, tocadores de realejo e artistas de rua, trabalhadores exaustos e artesãos maltrapilhos, mendigos e vagabundos, rufiões e prostitutas. Mas nessa frenética massa humana todos se comportam de uma forma reflexa e a descrição que o conto de Poe dela nos oferece enfatiza o bizarro e o sinistro, uma descrição que, segundo Benjamin, alia razões “ao mesmo tempo documentais e artísticas”.59
O bizarro e o sinistro – “os aspectos mais inquietantes e ameaçadores da vida urbana”, nos termos de Benjamin – terminam por se concentrar, porém, na figura do velho que perambula sem rumo no meio da multidão e atrai a atenção do personagem narrador. O velho é uma espécie de estranho flâneur que já se encontra inteiramente deslocado no mundo da metrópole saturada mas, em sua condição solitária e marginal, somente consegue viver imerso na multidão, como que protegido por ela. Há nesse ponto uma virada na posição do personagem narrador, uma virada que o contrapõe radicalmente ao personagem do primo no conto de Hoffmann – obcecado pelo enigma do velho, o observador de Poe abandona o seu posto no café, desce até a rua e se mistura à multidão para ficar no encalço da criatura que o intriga. Ao final de uma perseguição que atravessa a madrugada, ele descobre, porém, que a busca errática do velho se destina apenas ao propósito de misturar-se desesperadamente à massa, justamente naqueles diferentes espaços da cidade onde ela se concentra, o mercado das praças, “as conturbadas avenidas”, os bares lotados, as lojas para onde aflui a massa de compradores (“Ele entrava numa loja após outra, sem perguntar o preço de nada, sem falar qualquer palavra, e contemplava todos os objetos com um olhar ausente e desorientado”60), o teatro onde a massa ressurge sob a forma do público moderno (“Estava perto da hora de fechar [o teatro], e a massa de público se precipitava em direção às saídas”61), e, por fim, as regiões limítrofes da cidade, o subúrbio miserável para onde escapa a massa dos párias modernos (“Tratava-se do bairro mais turbulento de Londres, no qual tudo exibia as piores marcas da mais deplorável pobreza e do mais irremediável crime”62).
Mas há também entre os dois contos um jogo de diferenças e semelhanças se os colocamos em confronto justamente com o gênero da narrativa policial. Na verdade, o conto de Hoffmann, com suas observações muitas vezes pitorescas, ora cômicas, ora dramáticas, sobre a vida na cidade e os seus personagens está bem longe do gênero da narrativa policial. Ele se situa, antes, de forma muito marcante, entre os textos pioneiros voltados à representação literária da cidade grande e, nesse sentido, se aproxima daquela forma de literatura oitocentista que se ocupa em pintar quadros urbanos e que Benjamin descreve como uma literatura “panoramática”. Os “aspectos mais inquietantes e ameaçadores da vida urbana”, que para Benjamin distinguem a matéria da nascente literatura policial, comparecem no conto de Hoffmann apenas de forma lateral e alusiva, como no caso do jovem delinquente que puxou briga com o açougueiro do mercado ou da contenda entre duas feirantes “por causa da indefectível questão do Meum e Teum (o que é meu e o que é teu)”63 mas também no drama da jovem que, apesar das economias, não consegue comprar o desejado lenço ou do cego que é explorado como um animal de carga, todos esses, episódios que remetem aos aspectos “demoníacos” ligados ao mundo moderno das trocas e das massas urbanas.64 No entanto, apesar de o conto de Hoffmann não ter a ver a princípio com o gênero da história policial, dele não está ausente o olhar do observador-detetive. O conto talvez possa ser tomado como um exemplar literário daquela disponibilidade do flâneur para converter-se em detetive de que fala Benjamin em A Paris do Segundo Império em Baudelaire. Precisamente o olhar do personagem do primo, conduzindo tanto o olhar do personagem-narrador quanto o do próprio leitor, assume constantemente a atitude investigativa do detetive, esquadrinhando personagens que se movem na multidão da praça do mercado sob a sua janela. É um olhar recuado que pretende sondar e conhecer à distância – munido de seu instrumento ótico, ele sugere muitas vezes, por trás da observação pitoresca, o olhar do conhecimento técnico aliado ao cálculo racional do detetive. Um olhar que abarca um espaço amplo mas também escrutina os detalhes e, nesse sentido, remete tanto à visão “panoramática” quanto à vigilância do panóptico.
Na verdade, esse olhar sobre a cidade e a sua multidão movente a partir da janela de um apartamento é um ponto de vista não de todo incomum na representação da metrópole moderna nesse momento em que ela se expande. Uma perspectiva à qual recorreram diferentes pintores do século XIX, inclusive os impressionistas, para retratar a cidade em sua modernização acelerada.65 É também uma perspectiva sobre a cidade que às vezes o próprio poeta-flâneur assume. Em alguns poemas de As flores do mal e do Spleen de Paris é esse olhar distanciado e perscrutador que o poeta dirige à cidade de sua janela.66 Mas se trata também de uma perspectiva do alto que permite tanto um olhar de amplo domínio como uma observação à distância do detalhe, um olhar comparável, portanto, àquele pretendido pelo cientista-engenheiro do século XIX e também, de algum modo, pelo detetive. Talvez essa figuração do observador-detetive que examina a cidade de sua janela estratégica se apresente de forma emblemática num conto policial norte-americano já bem distante do conto policial clássico de Poe. Refiro-me aqui ao conto Rear Window, de Cornell Wooldrich, história na qual se inspirou o filme Janela indiscreta, de Alfred Hitchcock.67 O famoso filme de Hitchcock se serve do argumento do conto para aprofundar a figura do observador-detetive no meio que lhe é o mais constitutivo, o cinema. No filme, um fotógrafo imobilizado em seu apartamento por uma perna quebrada se converte num misto obsessivo de voyeur e detetive ao suspeitar e depois se convencer do assassinato de uma mulher pelo seu marido num dos apartamentos do prédio em frente ao seu. Se no conto de Hoffmann o olhar do observador-detetive é uma sugestão a ser desdobrada, no filme de Hitchcock (e no conto em que ele se baseia) confluem sintomaticamente o fotógrafo e o detetive. Além disso, se o conto de Hoffmann é uma das primeiras meditações literárias do século XIX sobre o olhar dirigido à cidade grande, o filme de Hitchcock é, por sua vez, uma das mais engenhosas e autoirônicas reflexões do cinema do século XX sobre a figura do espectador moderno e, inseparavelmente, sobre a cidade grande como uma virtual cena do crime.68
Quanto ao conto de Poe, a sua relação com o gênero policial também não deixa de ser ambígua. Na verdade, O homem da multidão não se enquadra propriamente entre os contos policiais de Poe. A despeito disso, conforme observa o próprio Benjamin, ele “pode ser visto como uma espécie de radiografia do romance policial”, já que, embora dele esteja ausente a matéria narrativa do crime, ele conserva, no entanto, a estrutura da história policial com seus elementos fundamentais: a multidão, o observador que ocupa sub-repticiamente o lugar do detetive e o homem da multidão que em sua deriva assume o papel do antissocial. No último parágrafo do conto, o observador-narrador conclui: “Este velho”, disse eu, afinal, “é o tipo e o gênio do crime profundo. Ele se nega a ficar sozinho. Ele é o homem da multidão”.69 A certa altura, o personagem-narrador ainda divisa um punhal e um diamante escondidos no colete do velho, mas não se tem ciência de qualquer crime que este possa ter cometido; antes, paira em torno dele menos o evento real de um crime que o seu enigma, um ar sombrio ligado àqueles “aspectos mais inquietantes e ameaçadores” da vida massificada na cidade grande. Por outro lado, o personagem-narrador assume de início, ainda sentado no café, a atitude do observador curioso e disponível, muito próxima daquela que distingue o flâneur. Porém, quando ele abandona o café e sai em perseguição ao velho pelas ruas da cidade, à atitude do flâneur se junta o impulso investigativo do detetive. E assim, até o final do conto, vai manter-se na figura do observador-narrador a tensão entre o olhar do flâneur e o olhar do detetive. É um olhar tenso, próximo-distante, que se arrisca na multidão e ainda assim mantém certa distância segura. Um olhar sobre a cidade grande que pressente os seus “aspectos mais inquietantes e ameaçadores” e ao mesmo tempo se mantêm sob o abrigo da ordem social. É a própria tensão que está no cerne da literatura policial e a preside desde as suas origens nas formas de literatura urbana do século XIX. Não por acaso, é a mesma relação tensa com o mundo moderno que também perpassa toda a poesia de Baudelaire. Como já foi dito aqui, Baudelaire retém do flâneur a distância curiosa com que ele observa a cidade massificada e em transformação e, no entanto, ele quer manter a tensão com a vida moderna mas imerso na multidão – ou seja, pretende apreender poeticamente a vida moderna e suas transformações violentas a partir da experiência calculada da própria vida moderna e não é por outra razão que o olhar do poeta-flâneur em Baudelaire é atraído justamente por aqueles “aspectos mais inquietantes e ameaçadores” da vida na cidade grande moderna. Daí advém a afinidade que a poesia de Baudelaire guarda com a literatura policial. Sobre essa ambígua afinidade assim Benjamin se pronunciou:
A análise desse gênero [o romance policial] é parte da análise da própria obra de Baudelaire, apesar de ele não ter escrito nenhuma história desse tipo. As flores do mal conhece, sob a forma de disiecta membra, três dos seus elementos fundamentais: a vítima e o lugar do crime (“Uma mártir”), o assassino (“O vinho do assassino”), as massas (“O crepúsculo da tarde”). Falta o quarto, que permite ao entendimento penetrar essa atmosfera carregada de afecções. Baudelaire não escreveu histórias policiais porque a sua estrutura pulsional não lhe permitia a identificação com o detetive. O cálculo, o momento construtivo, situava-se para ele na vertente do antissocial, foi totalmente absorvido pela crueldade. Baudelaire leu bem demais Sade para poder concorrer com Poe.70
Se o espectador moderno encontra as suas primeiras elaborações literárias nos contos de Hoffmann e Poe, é na poesia de Baudelaire que ele conhecerá os seus desdobramentos mais complexos e contraditórios. A configuração do olhar no poeta-pintor da vida moderna retém da literatura policial a atenção especial aos “aspectos inquietantes e ameaçadores” da modernidade mas esse olhar se move a partir das margens da modernidade. Em termos benjaminianos, trata-se, para Baudelaire, de apresentar uma outra fisiognomia da experiência na cidade grande moderna a partir do olhar deslocado do poeta.
Com efeito, em Baudelaire a figura do espectador moderno se insinua insistentemente e, no entanto, aparece sempre de forma complicada, mesmo contraditória, carregada de tensões internas. Nele, flâneur e espectador também se conjugam e se interpenetram: o perambulador ocioso é também um observador da vida urbana. O flâneur cultiva um já antiquado ócio aristocrático para confrontar o ritmo acelerado da moderna sociedade industrial; por isso mesmo, como um dândi, ele quer distinguir-se da massa urbana e a observa a uma certa distância. Contudo, o poeta Baudelaire mantém com o flâneur-espectador uma relação ambígua de afinidade e distanciamento – ora ele retém do flâneur o olhar de observador distanciado, ora ele deseja mergulhar na massa e nela dissolver-se, também para captar as energias inebriantes da multidão da cidade grande; o poeta-flâneur se mantém como um observador fino e ao mesmo tempo inquieto em seu anonimato; não propriamente um espectador reconfortado mas, antes, “o observador apaixonado”, cujo “grande prazer” é “fixar domicílio no número, no inconstante, no movimento, no fugidio e no infinito” e que vive de movimentos contraditórios, “estar fora de casa e, no entanto, sentir-se em casa em toda parte”, “ver o mundo, estar no centro do mundo e continuar escondido do mundo”. Como o pintor da vida moderna, que Baudelaire busca descrever na figura de Constantin Guys e com o qual ele termina por se identificar, também o poeta da vida moderna pode ser descrito nos termos de um observador privilegiado mas ao mesmo tempo perdido na multidão – “O observador é um príncipe que usufrui, em toda parte, de sua condição de incógnito”.71 Vale lembrar, ainda, que, num conhecido texto crítico, o poeta critica virulentamente a fotografia como arte mas como poeta-pintor da vida moderna assume muitas vezes a atitude de um fotógrafo de rua que busca flagrar cenas reveladoras da experiência na cidade grande moderna e condensá-las em instantâneos poéticos.72 Como “observador apaixonado” da vida moderna, o poeta também se propõe a investigar os vestígios deixados na vida citadina, sobretudo os mais desconsiderados e rebaixados, os mais bizarros e marginais e, no entanto, como lembra Benjamin, jamais se põe na perspectiva do detetive mas, ao contrário, na do antissocial. Por isso mesmo, o olhar que o poeta dirige à cidade grande é um olhar deslocado – um olhar que se desloca para o ponto de vista dos deslocados da modernidade, estes que observam a cidade a partir de suas margens e de seus dejetos, os conspiradores profissionais, os artistas de rua decadentes, as prostitutas, os catadores de lixo. Não é à toa que o poeta se identifica muitas vezes justamente com o catador de lixo e a prostituta. No limite, ele se identifica com o objeto-fetiche da modernidade – a mercadoria, ela que ganha vida própria e circula entre os consumidores, se oferece à massa dos habitantes da cidade e pode muito rapidamente transformar-se em detrito. É a partir dessa perspectiva deslocada que Baudelaire busca construir uma espécie de fisiognomia poética da cidade moderna. Benjamin assim o lê em sua própria fisignomia/arqueologia da modernidade.
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