Ao Professor Benrhard Schütz
1. Introdução
O presente trabalho propõe uma leitura interpretativa do grupo escultural “Verità svelata dall Tempo” (A Verdade desvelada pelo Tempo), no qual Gian Lorenzo Bernini trabalhou entre 1649 e 1655, concluindo, no entanto, somente a personificação da verdade. Por meio da apresentação do contexto da produção e recepção da obra, da sua descrição pormenorizada, da análise dos esboços referentes à mesma, da iconografia e da comparação com obras de outros artistas, busca-se mostrar o que nela é temática e esteticamente específico. A hipótese defendida aqui é que Bernini lança mão de recursos escultóricos que intensificam o jogo de contrastes e antíteses em diferentes níveis na composição como um todo, de tal modo que esta resulta na apresentação alegórica, brilhante e viva de um conceito abstrato e universal de verdade. Esse resultado se intensifica no próprio inacabamento da obra, ou seja, pela ausência da personificação do tempo, que não chegou a ser esculpida. Há, portanto, uma instigante dinâmica entre sensibilidade e abstração operando na obra, que parece levar a forma alegórica, como unidade arbitrária e precária entre conceito e sensibilidade, às últimas consequências.
Esta leitura da obra de Bernini se dá majoritariamente no âmbito da história da arte, mas é inspirada em algumas reflexões estéticas, filosóficas e historiográficas de Walter Benjamin, sobretudo as que este elaborou em seu livro Origem do drama barroco alemão, publicado em 1928. Em primeiro lugar, no que diz respeito ao conceito de alegoria. Seguindo Benjamin, entende-se esta como uma forma artística privilegiada para expressar o contexto histórico, religioso e político da época barroca na qual se origina. Em segundo lugar, quanto ao método seguido aqui, entendido como desvio e mergulho micrológico em diferentes camadas da obra, pelo qual ganham destaque os elementos extremos e antitéticos internos da mesma. Estes elementos, por sua vez apontam monadologicamente para relações com outras obras de Bernini, de outros artistas e de outras épocas. Daí a necessidade de descrever pacientemente, mas sem pretensão positivista, cada imagem trazida aqui. É na constelação resultante destas tensões extremas que estaria apresentada a verdade da obra, revelada enquanto ideia em sua origem que, por sua vez, se define como restauração e inacabamento. Na medida em que o grupo escultural de Bernini é ele mesmo uma alegoria da verdade em sua relação com o tempo (inacabado), é possível encontrar ali a noção benjaminiana da relação entre verdade e beleza enquanto aparência sensível, segundo a qual: “verdade não é o desvelamento [Enthüllung], que aniquila o segredo, mas a revelação [Offenbarung], que lhe faz justiça”.1
2. O campanário da Basílica de São Pedro em Roma
Em 1646, o papa Inocêncio X (Pamphili) ordenou, a partir de um decreto da congregação, a demolição do único campanário da Basílica de São Pedro [figura 1], situado no lado heráldico direito da fachada e que fora construído cinco anos antes sob a direção de Gian Lorenzo Bernini, durante o papado de Urbano VIII (Barberini). As justificativas oficiais foram a existência de rachaduras e fissuras na fachada e no pórtico, surgidas supostamente com a construção ou em função do peso do campanário.

1. C. Fontana, “Fachada de São Pedro com campanário ruinoso”, gravura.
Segundo os relatos de Domenico Bernini e Filippo Baldinucci, porém, a demolição da torre do sino foi motivada muito mais por intrigas e calúnias de adversários de Bernini. É citado sobretudo o arquiteto Francesco Borromino, que teria se aproveitado de sua boa relação com Inocêncio X, bem como da discórdia da família deste, os Pamphili, e com a família Barberni, de Urbano VIII, para tomar o lugar de Bernini como Architetto Maggiore della Gran Fabbrica di San Petro.2 Segundo Riegl, no entanto, a história do campanário é mais complexa e não tão clara. Recorrendo a outras fontes (autos da Fabbrica, diário de Gigli, trabalho de Fraschetti), ele mostra que já sob o papado de Urbano VIII, o capacete e o terceiro andar haviam sido retirados por motivos estéticos alguns dias depois da inauguração.3 Assim, bem antes o campanário já era um problema para Bernini.
Sejam quais forem os motivos pelos quais os outros andares da torre foram retirados sob o papado de Inocêncio X, é muito provável que os concorrentes de Bernini teriam se aproveitado desta oportunidade para tirar vantagem própria. Por isso, são plenamente compreensíveis a indignação e a mágoa de Bernini. Sua carreira atingira o ponto mais baixo. Nada poderia abater mais um artista naquela época, que ver retirada sua contribuição na configuração da fachada da basílica de São Pedro. Isso significava também um grande prejuízo para a reputação de Bernini como arquiteto, não sem consequências materiais. Domenico Bernini relata ainda que Bernini não procurou reclamar ou se defender de seus intrigantes. Ao invés disso, propôs-se realizar sua melhor obra, com a qual queria consolar-se, mostrar a Roma seu talento, bem como recuperar sua boa reputação.4
Trata-se do planejado grupo escultural em mármore "Verità svelata dall Tempo" (A Verdade desvelada pelo Tempo) [figura 2], no qual Bernini trabalhou por conta própria entre 1650 e 16555 e concluiu somente a figura da verdade, a qual deixou em fideicomisso a seus herdeiros. Em sua estada em Paris, no ano de 1665, Bernini contou a Luís XIV que pretendia representar o tempo como uma figura pairando no ar, que mostra e carrega a verdade. No seu modelo, a figura do tempo iria se apoiar sobre ruínas, significando o efeito destruidor deste.6 Pode-se pensar aqui também em uma referência direta às ruínas do campanário.

2. Gian Lorenzo Bernini, “Verità” – Visão frontal, 1646-1652, mármore, Roma, Galleria Borghese.
A seguir, gostaria de fazer uma descrição precisa da obra, apresentar o desenvolvimento da concepção de Bernini a partir dos esboços e de um bozzetto em terracota, bem como comparar a verdade com outras obras a fim de destacar o que nela é temática e esteticamente específico. Com isso, buscarei esclarecer três pontos: qual concepção de verdade a “Verità” de Bernini traz à luz, quais meios artísticos e estéticos ele usa para tal e qual o papel que o tempo exerce aqui, apesar ou justamente em função de sua ausência.
3. "A verdade revelada" – Descrição da escultura
Trata-se na figura da “Verdade” de uma mulher de tamanho maior que o natural, com 2,80 metros, sentada em uma rocha sobre um tecido. Há uma interessante polaridade em jogo na composição, que já se deixa perceber na visão frontal, mas que é mais nítida a partir da consideração das visões laterais. Como outras esculturas de Bernini, a fruição do intenso movimento expresso na “Verità” se amplifica na medida em que o espectador se movimenta em torno dela.
a) Polaridades complexas – visão frontal
Na visão frontal, que sem dúvida é a principal, vemos uma figura de mulher sentada, não totalmente de frente, mas com o flanco direito mais voltado para o observador. Seu tronco tende a se inclinar de modo relaxado para a esquerda e para trás. Ela se apoia levemente com seu cotovelo esquerdo sobre uma pedra encostando-se no tecido. Essa tendência é acompanhada pela sua cintura esquerda, que se assenta mais profundamente e está encoberta pela virilha da elevada perna esquerda. A parte superior do corpo forma assim uma linha diagonal de cima para baixo e da esquerda para direta da figura até a cintura, mudando de direção a partir destas, indo da direita para esquerda em ambas coxas, para então, a partir dos joelhos novamente seguirem da esquerda para direita, mas quase na vertical. No pé direito, a linha se desdobra até o chão ou a base da escultura, mas no pé esquerdo, que está apoiado em uma esfera que representa o globo terrestre, a linha volta-se novamente para a esquerda, acompanhando a curva da esfera. A cabeça está uma pouco inclinada para trás e voltada para a direita, sendo que seus cabelos caem em uma mecha também em sentido diagonal sobre o ombro direito até o esterno. Tem-se assim, de cima abaixo, um movimento doce, suave e harmônico em forma de “S”.
Uma linha igualmente suave e curva é formada pelo braço direito aberto e pela mão direita que carrega a máscara solar. O braço direito acompanha a diagonal do tronco. O antebraço e a mão voltam-se para cima em um belo contraponto com a coxa direita. Com as pontas agudas e retas que formam os raios solares, não há aqui um fechamento arredondado como com o pé sobre a esfera terrestre, mas uma multiplicação e difusão de linhas em diferentes direções, de modo que a linha se torna luz. Cabeça, braço e mão direita constituem um meio círculo aberto para cima que, juntamente com o tecido que se eleva por trás, emprestam à região superior direita da escultura uma grande leveza, que contrasta com a região de baixo, com o peso e o fechamento da esfera e das rochas. Essa leveza pode ser verificada também na expressão facial da escultura [figura 3]. Ela lança um olhar sonhador e entregue para trás e para cima. Seus lábios estão entreabertos e formam junto com as bochechas relaxadas um sorriso calmo e satisfeito.

3. Gian Lorenzo Bernini, “Verità”- Detalhe da cabeça, 1646-1652, mármore, Roma, Galleria Borghese.
Um outro contraste, menos agudo, pode ser visto no eixo horizontal da escultura. Enquanto o braço e a perna direita estão levemente esticados, os membros esquerdos estão mais encolhidos. Com a mão direita, a figura segura, na altura do ombro, em um gesto demonstrativo e aberto, a máscara solar com os raios de luz, todo o seu lado direito é visível. Desse lado encontra-se também a maior parte do tecido, que está sobre a rocha embaixo e ascende em uma linha que imita e acentua a diagonal em “S” formada pelo tronco e pela cabeça. Por meio do rico, solto e vivo desenvolvimento das dobras do tecido, esse lado torna-se muito movimentado. Em contraste, o lado esquerdo se mantém mais escondido. A figura sustenta a mão esquerda na altura do peito com a palma aberta para o observador. Assim, a impressão geral deste lado é antes de uma postura mais fechada e contida, que expressa uma certa surpresa e um movimento de defesa.
Estes contrastes, superior-inferior, direita-esquerda, são, porém, muito equilibrados e nada abruptos, por isso o corpo representado não perde sua unidade natural. Isso não se deve somente à disposição dos elementos, mas também a dois outros contrastes, que são alcançados pela diferença no tratamento da superfície. Em primeiro lugar, a esfera terrestre, a rocha e a ponta superior externa do tecido têm uma textura áspera e opaca, enquanto que o corpo e o lado interno do tecido têm uma superfície finamente polida, dando-lhe calor e brilho. Em segundo lugar, como Herrbach7 constatou, a diferença entre tecido e corpo é enfatizada por uma intensificação sistemática das formas côncavas no tecido e contraste com as formas convexas dos membros do corpo. “Uma acumulação de indicações de direção é criada por meio de um estreitamento de numerosas e finas cavidades das dobras que produzem uma articulação contínua do drapejamento e sua ativação”.8 O drapejamento assume nesse sentido um papel ativo na escultura, não é um pano neutro, e com isso Bernini atingiria um novo grau estilístico em sua obra9, a ser tratado mais à frente. Importante aqui é constatar que o panejamento no todo ganha em autonomia, mas sem concorrer com o corpo da “Verità”, valorizando a nudez deste e realçando seu brilho.
A respeito da visão frontal da escultura, podemos dizer resumindo que a figura da verdade se encontra em meio a um contexto complexo de polaridades e contrastes, entre leveza e gravidade, entre abertura e fechamento. De modo correspondente, sua postura também é polarizada. Seu lado direito se mostra totalmente aberto, enquanto o lado esquerdo aponta antes para um recolhimento. Seu corpo, por um lado, parece atingido pela gravidade e, por outro, permanece pela expressão de satisfação e posição dos braços livre da mesma. A meu ver, o equilíbrio nestas tensões, com todas as sutilezas e nuances, não é estático. Parece-me que, no fim, o todo tende para a leveza e abertura. O tecido atrás dela tem um movimento ascendente que parece levá-la para cima, mas igualmente o brilho de seu sorriso e de sua pele conferem ao todo uma expressão de leveza.
b) Abertura relaxada – visão em diagonal do lado direito da “Verità”

4. Gian Lorenzo Bernini, “Verità”- visão do lado direito, 1646-1652, mármore, Roma, Galleria Borghese.
Voltando-se para a visão em diagonal do lado direito da escultura [figura 4], pode-se observar que também aqui há vários contrastes em jogo. Sob este ponto de vista, o lado direito da figura é apresentado de modo completamente aberto e ela parece sentada em posição um pouco mais vertical, menos deitada para trás. Se o tronco estivesse um pouco mais curvado para a frente, ela poderia quase se levantar. Essa impressão se confirma, pois em um restauro na década de 1990 , foi retirada da base da escultura uma camada de cimento, retomando o ângulo original do mármore estabelecido por Bernini, de tal modo que o conjunto todo ficou mais inclinado para frente.10
O panejamento exerce neste lado um efeito igualmente forte, apesar de seu movimento se destacar mais como direcionado para frente, não tanto para o alto. Em parte, isso se deve ao fato de o tecido aqui não formar um triângulo como na visão frontal. O panejamento na parte de baixo, como que soprado de baixo para cima pelo vento, constitui uma forma côncava que contrasta com a forma convexa da esfera terrestre. Nesta parte de baixo, o tecido desenha uma linha em “S”: sobre a rocha, que aparece de modo mais massivo, até o chão e depois novamente para cima envolvendo a esfera. Desse modo, o panejamento acentua certo movimento da figura para frente. Somente a mão esquerda, que acompanha a forma convexa do panejamento, parece tentar frear em parte esse movimento. A visão diagonal da direita acentua assim tanto uma apresentação aberta da figura como um todo – nenhuma parte dela fica escondida – como uma movimentação mais solta. A “Verità” aparece como ativa e relaxada.
c) Recolhimento contido – visão diagonal do lado esquerdo

5. Gian Lorenzo Bernini, “Verità”- Visão diagonal do lado esquerdo, 1646-1652, mármore, Roma, Galleria Borghese.
Na visão diagonal do lado esquerdo, a impressão é outra. O globo terrestre e a rocha vêm para primeiro plano. Seu peso e a superfície áspera predominam. O panejamento não é mais tão presente. De sua ponta superior é visível somente o lado não polido. O desenvolvimento das dobras do tecido é retilíneo e rígido. O desenho que traça de cima para baixo forma um ângulo agudo e não uma linha suave em “S”. O tecido cobre o cotovelo e o dorso esquerdo da figura, seu pé esquerdo também não é mais visível. A “Verità” parece agora estar quase deitada, apoiada com o cotovelo esquerdo sobre a rocha e com as costas no tecido. Também seu corpo desenha antes uma linha reta, que acompanha a linha do panejamento. No entanto, ela não está propriamente tensa. Sua expressão facial continua sugerindo certa satisfação. A máscara solar está totalmente visível e contrasta diretamente com a esfera terrestre. A “Verità” nessa visão diagonal parece então mais passiva, recolhida e coberta. Ela ainda brilha e triunfa com o sol na mão sobre o mundo, mas ainda se mantêm presa à gravidade terrestre. Não está totalmente desvelada e nem totalmente elevada.
Resumindo, é possível dizer que ambas as visões laterais possuem pleno valor estético. Tematicamente, cada uma parece acentuar um polo do contraste ou antítese que já está presente na visão frontal. No lado esquerdo, a “Verità” encontra-se mais encoberta, recolhida e deitada. No lado direito, ao contrário, tem uma postura mais levantada, aberta e em movimento. Na visão frontal essas oposições aparecem de modo mais equilibrado, porém, sem se anularem ou se resolverem, mantêm-se sempre em tensão e movimento, acentuando ainda mais o brilho da “Verità”. Esta, envolvida na própria luz que lhe empresta leveza, parece elevar-se.
Nesta descrição da escultura, percebe-se com qual rapidez se esquece de que a personificação do tempo está ausente, mesmo que seja parte fundamental do tema apresentado, já que é o tempo que desvela a verdade. Essa ausência dificulta uma interpretação mais conclusiva do conjunto escultural planejado. Por outro lado, pode-se perguntar se a figura do tempo é realmente necessária aqui.
4. Desenvolvimento do projeto – descrição dos esboços e do bozzetto de Schwerin
Para entender mais de perto as soluções estéticas e a temática do grupo escultural, vale a pena lançar um olhar no desenvolvimento do projeto por meio dos esboços da figura da “Verità” e em um esquete de terracota (bozzetto) que se encontra no Museu estadual de Schwerin.
a) “Primo pensiere” (primeiro pensamento)

6. Gian Lorenzo Bernini, “Esboço para Verità e Tempo, N. 14 (Primo pensiere)”, giz preto sobre papel branco, 1646(?), 251 x 369, Leipzig, Museum der bildenden Künste.
O primeiro esboço [figura 6] contém uma assinatura abreviada de Bernini (‘Brno’) e a frase, em letra de outra pessoa: “primeiro pensamento da Verità que se encontra na Casa Bernini”. Foi elaborado provavelmente em 1646 e não pensado para ser diretamente transposto no mármore.11 Neste “Primo pensiere", com bastante rasuras, vê-se a figura do tempo personificado como um homem musculoso. Ele segura em sua mão esquerda uma foice, paira no ar sobre a verdade pelo seu lado esquerdo e puxa para cima com sua mão direita o manto desta. A verdade, por sua vez, parece olhar assustada para o tempo, e até aonde é possível reconhecer, mantém as duas mãos próximas ao corpo. Em todo o caso, é possível ver que Bernini apagou o desenho de seu braço direito esticado.
A verdade está deitada aqui no escuro, completamente intimidada e desamparada diante do tempo. Este, cuja parte de cima do corpo está em luz clara, desnuda a verdade, mas parece antes lançar sobre ela uma sombra. Pode-se perguntar se esse efeito claro-escuro bastante significativo para a representação foi intenção de Bernini, ou somente o resultado das rasuras. Independente disso, a postura da verdade já indica a grande diferença em relação ao brilho e à satisfação presentes da escultura. O acento aqui é antes de que a verdade está completamente recolhida, reagindo com susto ao desvelamento. A escuridão, ou a falsidade, está por assim dizer ainda presente.
b) Bozzeto no museu de Schwerin

7. Gian Lorenzo Bernini (?), “Bozzeto para Verità e Tempo”, terracota, em torno de 1646(?), Schwerin, Staatliches Museum.1. C. Fontana, “Fachada de São Pedro com campanário ruinoso”, gravura.
A esta fase de desenvolvimento do projeto do grupo escultural da “Verità”, Herrbach atribuiu o esquete em terracota (bozzeto) do Museu estadual de Schwerin.12 Atribuição que não é inconteste. Argumenta-se que o acabamento seria muito refinado para um esquete ou que não é o estilo presente na escultura final. Contra isso, Herrbach defende que o bom acabamento não seria razão suficiente para negar a atribuição e que o estilo do bozzetto se aproxima da “Fontana dei quatri fiumi” (Roma), projetada por Bernini nesta época, e não da escultura “Verità” que foi realizada mais tarde. Segundo Herrbach, a atribuição se justifica tanto pela excelente proporção das figuras no bozzetto, quanto por apresentar também três possíveis visões: a do lado esquerdo, na qual a verdade assustada se defende do tempo; a do lado direito, onde é acentuada a aproximação do tempo; e na visão frontal a máscara solar é visível, os olhares das figuras se encontram e a Verità não parece assustada.13
Não se trata aqui de debater a questão da atribuição de autoria do esquete em terracota que, de fato, a meu ver, carece do movimento e vivacidade que tanto o “primo pensiere” quanto a escultura pronta da “Verità” alcançam por meio dos contrastes já descritos. Por outro lado, a disposição das figuras indica uma boa solução para a realização do conjunto e a figura da verdade aqui pode ser vista como um estágio intermediário entre o “primo pensiere” e a escultura: no esquete ela não está tão deitada e nem tão coberta quanto no “primo pensiere”. Também a disposição de seus membros é mais próxima à da escultura, só que espelhada. Já a máscara solar e a mão esquerda aberta estão em posição diferente. Nesse sentido, é possível atribuir o bozzetto a um estágio intermediário dentro do desenvolvimento do projeto escultural de Bernini.
c) Esboços da “Verità”
É possível identificar uma direção semelhante de desenvolvimento da ideia em dois outros esboços que Bernini elaborou provavelmente em 1647.14

8. Gian Lorenzo Bernini, “Esboço para Verità N. 15”, pena e tinta sobre papel branco, 1647, 193 x 139, Leipzig, Museum der bildenden Künste.
Na primeira folha [figura 8], é possível ver embaixo à direita um rápido esboço de uma figura feminina, semelhante ao “primo pensiere”, cujo braço direito está estendido e lembra o braço apagado naquele primeiro esboço. Já no desenho à esquerda, no meio da folha, a figura está sentada, mas ainda bastante inclinada para trás. Seus braços estão estendidos, sendo que o esquerdo se mantém mais elevado, de tal modo que todo o lado esquerdo do corpo da figura fica exposto. Um tecido se espalha à esquerda dela e se desdobra para cima, cobrindo em parte a cabeça e acompanhando a linha do braço esquerdo. O rosto expressa certo desamparo, mas não um sentimento de terror. É possível ver um leve esboço da máscara solar em sua mão direita e da esfera terrestre sob seu pé direito. No terceiro desenho, acima e à direita, a figura está agora efetivamente sentada, até mesmo um pouco inclinada para frente, numa posição e postura que já correspondem à visão diagonal do lado direito da escultura.

9. Gian Lorenzo Bernini, “Esboço para Verità N. 16”, pena e tinta sobre papel branco, 1647, 153 x 128, Leipzig, Museum der bildenden Künste.
Na segunda folha [figura 9], vê-se um desenho mais detalhado da “Verità” em visão frontal. Aqui Bernini alcançou a ideia que então realizou na escultura de mármore, com a diferença que a verdade aqui está sentada sobre uma grande esfera, que lembra o “primo pensiere”. O panejamento não se desenvolve tão verticalmente como na escultura e ainda cobre em parte a cabeça. É possível perceber, no entanto, que Bernini como que “puxou” com traços mais fortes o lado superior do tecido até o ombro direito, de modo que a cabeça fica livre como na escultura.15 A máscara solar não está presente, mas a grande esfera na qual a figura da verdade está sentada como que a substitui. Por fim, a expressão facial neste esboço não é nem o terror do “primo pensiere”, nem o desamparo do esboço anterior, mas antes uma espécie de êxtase, que difere também do sorriso satisfeito da escultura. Diferença, na minha opinião, importante, pois aponta para o fato de que Bernini, na personificação da verdade, buscou no final um outro estado espiritual que, por exemplo, o da unio mistica presente na escultura de Santa Teresa na Capella Cornaro, realizada no mesmo período.

10. Gian Lorenzo Bernini, “O êxtase de Santa Teresa”, mármore, 1645-52, Cappella Cornaro da igreja de Santa Maria della Vittoria, Roma.
Êxtase é um estar fora de si, um abandono do corpo material por meio de um arrebatamento espiritual extremo. O sorriso descontraído e vivo da escultura “Verità”, ao contrário, aponta para uma consciência de si, um estar e manter-se consigo mesma. A verdade, por assim dizer, encontrou-se consigo mesma, na medida em que está sentada em acordo com seu brilho e luz próprios.
A partir dos diferentes esboços e do bozzetto, pode-se concluir que Bernini decidiu por uma personificação da verdade como uma figura humana feminina desnuda, aberta, satisfeita, triunfante, em concordância consigo mesma, ao invés de uma figura tímida, escondida e encolhida. Parece que, na busca pela ideia e disposição mais adequadas nos esboços, os atributos (máscara solar e esfera terrestre) não desempenham um papel primário. Bernini os utiliza de modo econômico. A atenção de Bernini voltou-se muito mais para o panejamento, a postura e o desnudamento da figura.
5. Diferentes apresentações da verdade – tema, iconografia e conceito
Para delinear o tema e o conceito de verdade, que a “Verità” de Bernini incorpora, gostaria de compará-la com algumas apresentações da verdade ou da verdade com o tempo.
a) Veritas filia Dei – a verdade conciliadora em túmulos

11. Gian Lorenzo Bernini, “Veritas no Catafalco de Paulo V”, gravura de D. Küger a partir de desenho de G. Lanfranco.
Nos esboços apresentados acima, Bernini recorre a uma representação da verdade que fez em um período anterior [figura 11], e que chegou até nós por meio de uma gravura de D. Krüger a partir de um desenho de G. Lanfranco. Em 1622, por ocasião do translado do corpo de Paulo V (Borghese) da basílica de São Pedro para a Cappella Paulina da igreja Santa Maria Maggiore, foi erguido um catafalco, para o qual Bernini compôs as figuras da verdade, justiça, misericórdia e paz, bem como outras 12 virtudes e 20 querubins.16
Do ponto de vista temático, trata-se da reconciliação das quatro filhas de Deus: da verdade e da justiça, que por causa do pecado original queriam punir os homens e mulheres, com a misericórdia e a paz, que eram contra à punição. Essa história baseia-se no Salmo 85, 11-12 e em uma pregação de São Boaventura.17 A postura e a constituição do corpo da figura da verdade têm certa semelhança com a escultura da “Verità”: está sentada, nua, com a perda direita esticada, a esquerda encolhida e elevada, sol (na testa) e panejamento também estão presentes. Sua gesticulação e expressão facial, porém, apontam para um outro pathos, que tem pouco a ver com uma irradiante satisfação, mas com humildade e recolhimento, que justamente são apropriados para um momento conciliatório de um catafalco ou túmulo.
b) Veritas filia temporis – fonte iconográfica
No que diz respeito ao tema “o tempo desvela a verdade”, Bernini parece ter recorrido na “Verità” a diferentes fontes iconográficas e tradições de representação.18 A relação verdade-tempo remete a Vicenzo Cartari19 que une a fórmula latina “veritas filia temporis” (verdade filha do tempo ou de Saturno) transmitida por Gellius com a tradição antiga, na qual o tempo traz a verdade à luz.20 A relação Verdade-Terra apoia-se na iconografia cristã do Salmo 85, 12: “veritas de terra orta est” (“a verdade germina da terra”), e também em Mt 10, 26: “nada há de encoberto que não venha a ser descoberto, nada de secreto que não venha a ser conhecido”.21 Apoia-se ainda na Iconologia de Ceasare Ripa22, na qual a verdade aparece triunfante sobre a Terra [figura 12].

12. Caesare Ripa, “Verità”.
Em sua explicação conceitual para a personificação da verdade, Ripa a descreve como uma bela mulher nua, sendo que a nudez significaria simplicidade e naturalidade. O Sol aponta para a amizade da verdade com a luz, no livro encontra-se a verdade das coisas e a palma significa a força e a constância da verdade. Ela pisa sobre um globo terrestre, pois está acima de todas as coisas mundanas, e é, entre estas, a que mais tem valor.23
Excetuando o livro e a palma, todas estes atributos e ideias estão presentes na “Verità” de Bernini. Também as outras fontes citadas estão de um modo ou de outro nos esboços e na escultura. Elas permitem esclarecer aspectos temáticos da escultura e da intenção de Bernini, mas não são ainda suficientes para explicar o que é conceitualmente específico na personificação da verdade que realizou.
c) A verdade em conflito
Uma comparação com outras três representações da verdade em um contexto de conflito pode nos aproximar mais do campo temático da “Verità” de Bernini. Trata-se de uma seleção de imagens que são abordadas por Fritz Saxl em seu texto “Veritas filia temporis”, de 1936.24
Verdade filha do tempo no contexto das guerras religiosas

13. Xilogravura na página de rosto da edição de William Marshall do Goodly Prymer in Englyshe, 1535.
O uso deste tema no contexto das guerras religiosas pode ser visto na xilogravura [figura 13] na página de rosto da edição de Willian Marshall do Goodly Prymer in Englyshe (livro de preces), publicado em 1535, portanto, na época em que Henrique VIII rompeu relação com Roma. A figura da verdade aqui é retirada de uma caverna e trazida à luz pelo tempo, um homem idoso e alado. Ela representa a verdadeira fé cristã (a protestante, no caso), que foi encarcerada pela hipocrisia da igreja católica romana, personificada como um monstro alado, e agora é libertada. Nas margens da imagem, há para cada figura um texto que as nomeia: à esquerda, “Time reveleth all thynges” (Tempo revela todas as coisas), acima, “Hipocrisy” (hipocrisia), à esquerda, “Truht, the doughter of tyme” (Verdade, filha do tempo) e, abaixo, o versículo do evangelho de São Matheus já citado acima, “Nothing is covered, that shall not be uncovered, and nothing is hydde, that shall not be reveled” (Nada há de coberto, que não possa ser descoberto, e nada há de escondido, que não possa ser revelado).
O tempo paira no ar de modo superior e tranquilo, e a verdade parece satisfeita. Todas as figuras estão nuas. O monstro acima segura cobras na mão direita e cospe veneno sobre a verdade. Nada disso a incomoda nem a impede de sair. Esse exemplo é aqui tematicamente interessante, pois mostra a personificação da verdade como uma mulher nua e sem outros atributos alegóricos, sua postura é ativa, está andando, com consciência de si, com certa autonomia, apesar de dependente da ajuda do velho tempo. Ela, porém, ainda está presa à Terra, apoia-se com a mão esquerda em um barranco, não parece ainda triunfar sobre o mundo, dependendo ainda de um poder exterior para sair da escuridão.
O triunfo da verdade no contexto político.
Esse tema foi aplicado também em contextos políticos. Nesse sentido, podemos mencionar um quadro de Peter Paul Rubens, “Triunfo da verdade” [figura 14], que encerra o Ciclo Medici, no Louvre. Os comitentes foram o Cardeal Richelieu e Maria de Medici, que está representada na parte de cima do quadro à esquerda. Ela entrega uma coroa de louros a seu filho, Luís XIII, que a recebe com respeito e reverência. Ambos se encontram em uma região celeste, sobre nuvens, dominada pela luz clara e amarelada da aurora. Abaixo das duas figuras reais, vê-se um velho homem alado, a personificação do tempo, que emprega toda a sua força e tensiona todos os seus músculos para retirar das trevas uma mulher nua, a Verdade. Na opinião de Fritz Saxl, a composição do quadro não é das melhores de Rubens, mas apresenta uma ideia diplomática genial do pintor. Luís XIII, que não via sua mãe havia dez anos, ficou muito admirado com o quadro. A rainha Maria de Medici também ficou satisfeita e mesmo o seu conselheiro, Cardeal Richelieu, elogiou o quadro, apesar de ter ressalvas quanto ao programa do mesmo.25

14. Peter Paul Rubens, “Triunfo da verdade – Ciclo Medici”, 1622-25, óleo sobre tela, Paris, Louvre.
A verdade está quase de costas para o observador, completamente nua, trazendo envolto no braço esquerdo um fino véu, que a vincula com as figuras reais, pois estas também trazem xales semelhantes. A mão esquerda da verdade, que estabelece também um vínculo com as figuras na parte de cima, parece em sua gesticulação, no entanto, ambígua: por um lado pode significar uma tentativa de aproximação, por outro uma certa distância ou resistência em relação à rainha. Esta última impressão parece se confirmar no olhar da verdade. Este é sério e indiferente, volta-se para o lado oposto do sentido em que ela está sendo carregada. A verdade não parece muito satisfeita com o seu desnudamento, o que parece torná-la mais pesada para o tempo. Ela tem um brilho próprio e está sendo libertada, mas a leveza e o estar bem consigo mesma da “Verità” de Bernini faltam-lhe. A família real se reconcilia, mas a personificação da verdade expressa um certo conflito, tornando toda a ação um tanto instável.
A verdade em conflitos pessoais
Como apresentado no início, a motivação original de Bernini para a produção da “Verità” não foi nem de caráter religioso, nem político, mas pessoal. Era frequente a utilização deste tema para se colocar seja como artista, seja como comitente, ao lado da verdade e desse modo reabilitar a própria imagem. Nesse sentido, gostaria de mencionar o quadro de Poussin, “O tempo salva a verdade da inveja e da calúnia”, que pintou para o Palácio Richelieu (hoje no Louvre) entre 1641 e 1642 [figura 15].

15. Nicolas Poussin, “Tempo salva a verdade da inveja e da calúnia”, 1641-42, óleo sobre tela, Paris, Louvre.
Esse quadro, que Bernini provavelmente viu em sua estada em Paris26, foi encomendado pelo Cardeal Richelieu quando se encontrava no auge de sua carreira política e estava em condições de desmascarar a inveja e as calúnias de seus adversários.27
No quadro, vê-se na parte de baixo duas figuras masculinas sentadas. A da esquerda, com um punhal e uma tocha, é a personificação da inveja. O homem idoso, à direita, com uma cobra enrolada no braço esquerdo e segurando outras na mão direita, representa a calúnia ou a discórdia. Sobre ambos paira no céu o tempo, como um homem forte, idoso e alado. Ele carrega a verdade para longe de seus inimigos terrestres. Ao lado da verdade, à direita e acima, um anjo voa com uma foice e um círculo nas mãos, que são atributos alegóricos do tempo.28 A figura da verdade tem ambos os braços abertos, o que lembra as representações da assunção de Maria. Ela está nua em posição frontal para o observador, sem qualquer atributo. Seu olhar volta-se para a esquerda e para o alto, na direção da luz. Seu rosto, com traços clássicos, expressa seriedade e equilíbrio, ela não sorri e foi trazida inteiramente à luz. Ela triunfa abertamente, leve e calma. A salvação se consumou. No entanto, a presença da personificação da inveja e da calúnia parece perturbar essa calma. Ambas as figuras são apresentadas de forma não subordinada entre si e em relação à verdade e o tempo, por isso não geram propriamente um contraste rico em tensões, mas concorrem com as figuras acima delas, de tal modo que, no fim, o todo se mostra conflitante e intranquilo.
Esse tipo de conflito não existe na “Verità” de Bernini. Como foi mostrado no início, a figura da verdade encontra-se em meio a uma tensão de contrastes, mas estes são muito mais sutis e possuem um caráter mais abstrato e universal. Por isso, a tensão não resolvida acentua muito mais o brilho da verdade, sem precisar remeter a um conflito particular.
d) A verdade abstrata
A partir das comparações anteriores pode-se dizer que a “Verità” de Bernini apresenta portanto um conceito abstrato de verdade, que não contém nenhum conflito político, religioso e nem pessoal. A motivação inicial de Bernini tinha possivelmente um caráter de intriga pessoal e profissional. O grupo escultural seria uma resposta às calúnias de seus concorrentes e uma reabilitação de sua reputação artística. Essa mágoa ainda é visível no “primo pensiere”. Porém, já nos esboços seguintes, Bernini persegue uma outra ideia de fundo para a apresentação da verdade, que justamente aponta para a superação do conflito pessoal e se apoia em um conceito de verdade impessoal e abstrato. Essa seria então uma característica decisiva da obra de Bernini, mas que não é totalmente específica dele. Para deixar isso mais claro, vale a pena mais uma comparação. Há um afresco de Dominichino no Palácio Costaguti, em Roma, datado de 1615 [figura 16], que pode ser identificado como a primeira apresentação da verdade como ideia abstrata.29

16. Domenichino (e A. Tassi), “Hélio e a Verdade descoberta pelo Tempo”, em torno de 1615, afresco do teto, Roma, Pallazzo Costaguti.
No centro do afresco está Hélio, o deus Sol conduzindo uma quadriga. Segundo a mitologia grega, Hélio viajava do Leste para o Oeste durante o dia e retornava depois ao ponto de partida em um pote de ouro sobre o Oceano. Na medida em que durante sua viagem ele via tudo, era designado como deus da verdade e, enquanto tal, era invocado quando se fazia um juramento.30 A figura da verdade, aqui parcialmente coberta, esforça-se com os braços levantados para alcançar Hélio, a quem dirige decididamente o seu olhar. A figura do tempo, o homem idoso e alado, segura um círculo com a mão direita e ajuda a verdade em seu voo, mas sem carregá-la. A verdade aqui mostra por isso autonomia e força própria, de modo que alcança a luz quase que sozinha. Os anjinhos carregam atributos alegóricos de Hércules (bordão, leão, arco), como sinal de virtude e força; a maçã de Páris, apontando para a beleza; e um instrumento musical, significando a harmonia.31 Nenhum sinal de inveja, calúnia ou algum outro conflito. Trata-se então, neste afresco de Dominichini, também da apresentação da verdade como uma mulher ativa que personifica um conceito abstrato de verdade, o qual remete ao livro VI da República de Platão, se bem que o tempo não aparece neste último.32 No entanto, há um mundo entre a apresentação de Dominichini e a de Bernini.
A comparação que Saxl faz entre a “Verità” de Bernini e a de Poussin vale aqui também. A verdade em Poussin mostra a beleza fria e sem sentimentos do mármore:
A Verità de Bernini, ao contrário, parece ser inspirada por uma paixão da ascensão. […] Há uma sensualidade na ação, cujo objetivo é comover o observador. Na contemplação do milagre diante de seus olhos, da revelação da verdade, da união mística da veritas fillia dei, que lembra as núpcias místicas de Santa Teresa com Cristo, o observador deve esquecer toda intriga mesquinha e todo sofrimento, todas as lutas por sucesso e fama. A criação escultórica da verdade de Bernini contém a experiência da vida e sofrimento humanos, mas não se reduz a um caso particular. Ela conserva a propriedade da universalidade.33
Como foi mostrado acima na descrição dos esboços, a meu ver, a “Verità” de Bernini não tem muito a ver com o pathos da unio mistica da Santa Teresa. Não obstante, Saxl tem razão quando vê a especificidade da obra de Bernini na ligação rica em tensões entre sensualidade/sensibilidade e abstração, que arrebata o observador.
6. Carne feita de pedra – aspectos estéticos e recursos da escultura
Para alcançar essa vivacidade e calor da “Verità”, bem como a relação entre sensualidade/sensibilidade e abstração, Bernini precisou desenvolver um novo patamar estilístico em sua obra. No que consiste esse patamar e quais recursos Bernini utiliza para dar vida a uma pedra já foi em parte nomeado nas descrições e comparações até aqui. A seguir, gostaria de mostrar de modo mais preciso esses recursos, a partir de duas rápidas comparações com outras esculturas de mármore.
a) “Aurora” no túmulo de Lorenzo de Médici de Michelangelo

17. Michelangelo, “Túmulo de Lorenzo de Médici”, 1524-1531, mármore, Florença, Cappella Médici na Igreja San Lorenzo.
Como primeira, menciono o nu feminino de Michelangelo, que personifica a aurora ou o amanhecer. Escultura que foi realizada entre 1524-1531 para o túmulo de Lorenzo de Médici, na Cappella Médici da igreja de San Lorenzo em Florença, no qual ainda há um nu masculino, que personifica o crepúsculo, e, acima das duas, a escultura de Lorenzo de Médici sentado [figura 17].

18. Michelangelo, “Aurora no túmulo de Lorenzo de Médici”, 1524-1531, mármore, Florença, Cappella Medici na Igreja San Lorenzo.
A figura da aurora [figura 18] está deitada de lado, apoiando-se com o cotovelo direito, de tal modo que tronco e cabeça se mantêm mais elevados. Seu corpo está inteiramente desnudo, exceto parte da cabeça que está coberta com um tecido, cuja ponta ela segura com a mão esquerda e sobre o qual ela está deitada. Gesto que parece indicar que ela está retirando o pano de sua cabeça, como sinal justamente do irromper do dia. Há ainda uma cinta fina, envolvendo seu dorso um pouco abaixo dos seios. A perda direita está esticada e a esquerda encolhida. É possível ver a rocha sobre a qual está deitada e cuja superfície é áspera, contrastando com o mármore polido do tecido e da pele. Sua expressão facial é tranquila, com algo de melancólico e onírico.
Excetuando o fato de que a escultura foi concebida para um túmulo, a personificação da aurora como uma figura feminina que se envolve em luz permite compará-la com a “Verità” de Bernini. A “Aurora” de Michelangelo é uma composição harmônica, contém um certo jogo de contrastes que acentuam o corpo da figura, o gesto de sua mão esquerda aponta, mesmo que muito discretamente, para uma ação, o nascer do dia que também remete ao decorrer do tempo. Do ponto de vista da impressão estética, porém, a “Aurora” parece mais pesada, massiva e estática. É ainda pedra, mármore. Essa impressão pode ser esclarecida por três pontos:
Em primeiro lugar, a relação da figura para com o observador na “Aurora” de Michelangelo é muito mais distanciada: a figura está deitada, em uma pose que torna visível a harmonia e perfeição de seu corpo. Pose, expressão facial e gesticulação estão fechadas em si, como se a figura estivesse indiferente ao seu entorno. Na “Verità” de Bernini, em contraposição, a figura não faz uma pose, mas parece viver uma ação, parece reagir ao seu entorno, o que de alguma forma envolve a pessoa que a contempla, desafiando esta a sentir junto.
Segundo, Bernini utiliza na “Verità” o recurso do jogo de contrastes de modo muito mais amplo. Como isso, a figura se destaca mais da pedra e ganha mais vivacidade e movimento. A superfície da pele extremamente polida tem um efeito mais brilhante e quente, de tal modo que a escultura parece ser de carne e osso.
Por fim, o dinamismo do desenvolvimento das dobras no panejamento da “Verità” de Bernini acentua mais ainda a vivacidade da figura e da impressão como um todo. A queda pesada do panejamento na “Aurora” de Michelangelo, ao contrário, destaca muito mais o “ser pedra” da figura.
Nesse sentido, pode-se explicar a maior vitalidade que a “Verità” de Bernini alcança em comparação com a “Aurora” de Michelangelo. Não se trata aqui, certamente, de um juízo de valor, mas somente um esforço para dar destaque ao específico de cada escultura. Bernini sempre buscou dar movimento a suas esculturas, daí não ter sido muito bem recebido no classicismo, sobretudo por Winckelmann, para quem a beleza ideal, a da nobre simplicidade e da grandeza serena, estaria antes presente nas esculturas de Michelangelo.
b) Movimento interior – comparação com o grupo escultural “Pluto e Prosérpina” de Bernini

19. Gian Lorenzo Bernini, “Pluto e Prosérpina”, 1621-22, mármore, Roma, Galleria Borghese.
A “Verità” de Bernini alcança maior vivacidade não só diante de esculturas de outros artistas, mas também em relação a suas próprias obras anteriores. Observe-se, por exemplo, o grupo escultural “Pluto e Prosérpina” [figura 19], que Bernini realizou 25 anos antes. É possível perceber que a “Verità” também diante da “Prosérpina” e de “Pluto” apresenta maior vitalidade e calor. O grupo escultural “Pluto e Prosérpina” também exige o envolvimento da pessoa que o observa. As figuras não estão posando de modo estático, elas agem ativamente, estão mergulhadas na ação. A movimentação delas se irradia pelo espaço circundante, de tal modo que o observador é envolvido na cena. A expressão facial das figuras expressa igualmente como elas mesmas vivem esse momento dramático. O todo é assim muito vivo, movimentado e rico em tensões.
Essa vivacidade, porém, a meu ver, tem um outro caráter que a da “Verità”. O movimento no conjunto “Pluto e Prosérpina” tem uma certa profundidade, mas volta-se sobretudo para fora e a vivacidade é alcançada por essa movimentação externa. Enquanto na “Verità”, cuja gesticulação não produz grande movimento, a vivacidade surge antes da tensão anímica em seu interior. Essa interioridade viva ganha expressão, paradoxalmente, nas profundas dobras do panejamento e em seu desenvolvimento em forma de flama. Em comparação a ele, o panejamento em “Pluto e Prosérpina” é bem mais neutro e imóvel, e mesmo os cabelos de “Prosérpina”, esvoaçantes no ar, acentuam mais um movimento exterior da figuras.
7. Conclusão
Por meio do polimento do mármore, do elevado ainda que sempre equilibrado jogo de contrastes em diferentes níveis (aberto/fechado, leve/pesado, áspero/liso, côncavo/convexo), por meio da valorização do panejamento no desenvolvimento de suas dobras, mas também por meio da posição harmoniosa da figura e por meio de seu sorriso satisfeito, Bernini conseguiu apresentar escultoricamente um conceito universal, impessoal e abstrato de verdade, sem abdicar da sensibilidade, da sensualidade e vivacidade.
Em 1655, morre Inocêncio X, o cardeal Fabio Chigi torna-se o papa Alessandro VII e Bernini consegue dele imediatamente novas encomendas para a configuração da Basílica de São Pedro. Com isso, a reputação de Bernini foi definitivamente reestabelecida e, nesse sentido, segundo Riegl, ele não teria mais motivo para continuar trabalhando no grupo escultural e esculpir a figura do tempo.34 Baldinucci, um pouco mais inventivo, viu pessoalmente o bloco de mármore não trabalhado e escreveu um pequeno poema. Neste, o bloco de mármore diz que o mestre se decidira a não realizar a figura do tempo, pois se deu conta que o tempo é um destruidor tirano de todas as obras belas.35
Independente de qual foi o motivo de a figura do tempo não ter sido esculpida, Bernini criou, a meu ver, a figura da “Verità” em uma concepção tão genial e com uma realização tão impecável que ela sozinha já apresenta toda a alegoria do desvelamento e pode ser vista como uma obra acabada e aberta. Uma figura concreta do tempo parece que se tornou prescindível. É difícil de imaginar onde um homem velho, alado, apoiado em ruínas, teria espaço aqui. O grupo escultural iria, além disso, atingir uma grande massa. A figura do tempo, aqui, iria de fato destruir a beleza da verdade, como no poema de Baldinucci. Por outro lado, a força de tensão do todo aumenta ainda mais em função da ausência da personificação do tempo. Algo invisível, misterioso paira no ar e atua sobre a figura da verdade, de tal modo que um novo contraste entra em cena: a corporeidade da “Verità” diante da imaterialidade do tempo. Ousando-se continuar a pensar nessa linha, o tema ganha um lado novo, na medida em que fica em aberto quem é aquele ou aquela que desvela a verdade: tempo, Deus, a destruição ou talvez, ninguém. Nesse sentido, a verdade é revelada, fazendo-se justiça a seu mistério.
Ilustrações
[Figura 1] FONTANA, L. “Fachada da Basílica de São Pedro com campanário ruinoso”, gravura. In: BORSI, 1983, prancha 297.
[Figura 2] BERNINI, Gian Lorenzo. “Verità” – Visão frontal, 1646-1652, mármore, Roma, Galleria Borghese. In: WITTKOWER, 1981, prancha 76.
[Figura 3] BERNINI, Gian Lorenzo. “Verità”- Detalhe da cabeça, 1646-1652, mármore, Roma, Galleria Borghese. In: WITTKOWER, 1981, prancha 77.
[Figura 4] BERNINI, Gian Lorenzo. “Verità”- visão lateral diagonal da direita, 1646-1652, mármore, Roma, Galleria Borghese. In: FIORI, p. 31.
[Figura 5] BERNINI, Gian Lorenzo. “Verità”- visão lateral diagonal da esquerda, 1646-1652, mármore, Roma, Galleria Borghese. In: HERRBACH, 1987, figura 19.
[Figura 6] BERNINI, Gian Lorenzo. “Esboço para Verità e Tempo N. 14 (Primo pensiere)”, giz preto sobre papel branco, 1646(?), 251 x 369, Leipzig, Museum der bildenden Künste. In: LAVIN, 1981, p. 101.
[Figura 7] BERNINI, Gian Lorenzo (?). “Bozzeto para Verità e Tempo”, Terracota, cerca de 1646(?), Schwerin, Staatliches Museum. In: HERRBACH, 1987, Figura 8.
[Figura 8] BERNINI, Gian Lorenzo. “Esboço para Verità N. 15”, pena e tinta sobre papel branco, 1647, 193 x 139, Leipzig, Museum der bildenden Künste. In: LAVIN, 1981, p. 102.
[Figura 9] BERNINI, Gian Lorenzo. “Esboço para Verità N. 16”, pena e tinta sobre papel branco, 1647, 153 x 128, Leipzig, Museum der bildenden Künste. In: LAVIN, 1981, p. 103.
[Figura 10] BERNINI, Gian Lorenzo. “O êxtase de Santa Teresa”, mármore, 1645-52, Roma, Cappella Cornaro in Santa Maria della Vittoria. In: WITTKOWER, 1981, prancha 74.
[Figura 11] BERNINI, Gian Lorenzo. “Veritas no catafalco de Paulo V”, gravura de D. Küger a partir de desenho G. Lanfranco. In: HERRBAHC, 1987, Figura 57.
[Figura 12] RIPA, Caesare. “Verità”. In: _____, 1987, p. 228.
[Figura 13] Xilogravura na página de rosto de William Marshalls Edition von “Goodly Prymer in Englyshe”, 1535. In: SAXL, 1936, Figura 4.
[Figura 14] RUBENS, Peter Paul. “Triunfo da verdade – ciclo Medici”, 1622-25, óleo sobre tela, Paris, Louvre. In: SAXL, 1936, Figura 5.
[Figura 15] POUSSIN, Nicolas. “Tempo salva a verdade da inveja e da calúnia”, 1641-42, óleo sobre tela, Paris, Louvre. In: SAXL, 1936, Figura 7.
[Figura 16] DOMENICHINO (u. A. Tassi). “Helio e a Verdade é descoberta pelo Tempo”, c. 1615, afresco, Roma, Pallazzo Costaguti. In: SAXL, 1936, Fig. 8.
[Figura 17] MICHELANGELO. “Aurora no túmulo de Lorenzo de Medici”, 1524-1531, mármore, Florença, Cappella Medici in San Lorenzo. In: GUAZZONI, 1984, prancha 82.
[Figura 18 ] MICHELANGELO. “Aurora no túmulo de Lorenzo de Medici”, 1524-1531, mármore, Florença, Cappella Medici in San Lorenzo. In: GUAZZONI, 1984, prancha 83.
[Figura 19] BERNINI, Gian Lorenzo. “Pluto e Proserpina”, 1621-22, mármore, Roma, Galleria Borghese. In: WITTKOWER, 1981, prancha 12.
Referências bibliográficas
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