Não aos espectros: Sobre Kant, o "realismo capitalista" e o Sr. Keuner
Ricardo Barbosa

Walter dividiu o seu trabalho em cinco partes. As quatro primeiras contêm uma reapresentação da démarche de Kant em “Sonhos de um visionário explicados por sonhos da metafísica”, seguida por uma breve contextualização desse escrito pré-crítico e uma transição, talvez rápida demais, à teoria de Horkheimer e Adorno sobre a indústria cultural. Farei um breve comentário sobre essa transição (1). Por fim, e na esteira dessa relação com a teoria da indústria cultural, Walter conclui em diálogo com Mark Fisher e seus ataques ao “realismo capitalista”. Farei um breve comentário sobre essa conclusão (2). Como nosso tempo é curto, restrinjo-me a esses dois pontos.

Ad 1) Em “Sonhos de um visionário” Kant não se volta apenas contra um obscurantismo difuso, e sim contra um obscurantismo já de certo modo organizado, pois em parte promovido pelo mercado editorial já nada incipiente na Alemanha do seu tempo, como também pelos jornais, as revistas e os entretenimentos populares. As preocupações pedagógicas de Kant, manifestadas em sua reação contra o consumo desenfreado de livros, também se afinam pelo mesmo diapasão. É nesse contexto que Walter traça um arco ligando Kant a Horkheimer e Adorno. “É significativa a preocupação de Kant e seus contemporâneos com o surgimento em germe daquilo que mais tarde Adorno e Horkheimer iriam identificar com a barbárie da indústria cultural produzida nos Estados Unidos dos anos quarenta: o esquematismo da produção cultural de massa como mimesis grotesca do esquematismo kantiano”. Enquanto lança mão da tese de Adorno e Horkheimer sobre o que o nosso amigo Rodrigo Duarte chamou de a “usurpação” do esquematismo pela indústria cultural1, Walter perde a referência ao escrito pré-crítico de Kant, no qual a teoria do esquematismo não poderia ter desempenhado papel algum, já que ainda não existia. A passagem da Dialética do esclarecimento à qual Walter se refere, citando um pequeno trecho, é a seguinte:

A função que o esquematismo kantiano ainda atribuía ao sujeito, a saber, referir de antemão a multiplicidade sensível aos conceitos fundamentais, é tomada ao sujeito pela indústria. O esquematismo é o primeiro serviço prestado por ela ao cliente. Na alma devia atuar um mecanismo secreto destinado a preparar os dados imediatos de modo a se ajustarem ao sistema da razão pura. Mas o segredo está hoje decifrado. Muito embora o planejamento do mecanismo pelos organizadores dos dados, isto é, pela indústria cultural, seja imposto a esta pelo peso da sociedade que permanece irracional apesar de toda racionalização, essa tendência fatal é transformada em sua passagem pelas agências do capital de modo a aparecer como o sábio desígnio dessas agências. Para o consumidor, não há nada mais a classificar que não tenha sido antecipado no esquematismo da produção.2

A tese da “usurpação” do esquematismo parece restringir-se apenas ao esquematismo da cognição. No entanto, e em razão do contexto no qual ela se apresenta, não há como não estendê-la ao esquematismo como um todo, o que compreenderia também o esquematismo estético, quando a imaginação “esquematiza sem conceitos”.3 De acordo com essa perspectiva mais ampla, a “usurpação” do esquematismo não é outra coisa senão a “usurpação” da própria espontaneidade do ajuizamento estético e do pensamento, uma vez que a canção popular padronizada ou o seu equivalente cinematográfico como que sentem e pensam pelo consumidor.

É possível que a tese da “usurpação” do esquematismo tenha ocorrido primeiro a Horkheimer, como se depreende da leitura da conferência “História e psicologia” (1932) e do ensaio “Teoria tradicional e teoria crítica” (1937).4 Que ele ao menos nunca a perdeu de vista é o que nos mostra um fragmento posterior à Dialética do esclarecimento, intitulado “Uma sociologia kantiana”. Nele lemos o seguinte:

Escrever uma crítica da razão como Kant, só que os fatores elaboradores, o mecanismo que, a partir do material, torna a experiência ‘unitária’, consiste no esquematismo social, em vez das formas puras da sensibilidade e do en­tendimento. Mesmo a divisão poderia ser man­tida. A estética transcendental teria que tratar da produção material, que estru­tura imediatamente o mundo para o homem: dela provêm os modos de per­cepção dominantes em geral e em especial, além de tudo o que Marx chama a aparência necessária. A analítica transcendental seria os meios da intelectualidade social, da escola ao cinema. A esfera da razão, porém, a tendência à adaptação da sociedade a níveis cada vez mais altos – o que Hegel chama a astúcia da razão.5

Em poucas palavras, Horkheimer traça aqui o perfil de uma reconstrução materialista da Crítica da razão pura, o que nos afasta bastante do Kant dos “Sonhos de um visionário”. Walter tenta não perder essa conexão com o Kant pré-crítico valendo-se de um fio muito tênue; pois na seqüência imediata da passagem citada da Dialética do esclarecimento Horkheimer e Adorno aludem a um certo “idealismo sonhador”, criticado por Kant:

A arte sem sonho destinada ao povo realiza aquele idealismo sonhador que ia longe demais para o idealismo crítico. Tudo vem da consciência, em Malebranche e Berkeley da consciência de Deus; na arte para as massas, da consciência terrena das equipes de produção. Não somente os tipos das canções de sucesso, os astros, as novelas ressurgem ciclicamente como invariantes fixos, mas o conteúdo específico do espetáculo é ele próprio derivado deles e só varia na aparência.6

Walter admite uma possível proximidade entre esse “idealismo sonhador” e aquele criticado por Kant em “Sonhos de um visionário” – um idealismo que, como ele lembra, não é o de Malebranche e Berkeley, e sim o de Crusius e Wolf –, pois “o regime onírico é o mesmo”. Creio que Horkheimer e Adorno enfatizam aqui outra coisa. Assim como o esquematismo, que para Kant seria uma “arte oculta” em nossa alma, cujo “segredo” jamais poderíamos desvendar7, já não guarda mais segredo algum enquanto um esquematismo social, também as brumas que envolviam o “idealismo sonhador” se dissipam inteiramente quando se transita da consciência de Deus para a “consciência terrena das equipes de produção”. A “arte sem sonho” é uma arte desencantada e, como tal, “destinada ao povo”. Ela impugna todo sonho de transcendência, oferecendo em seu lugar o terreno prazer da diversão organizada. Não que assim ela se alinhe com o idealismo crítico, para o qual aquele idealismo sonhador “ia longe demais”. Isso é óbvio. Na verdade, a “arte sem sonho” impugna as promessas de ambos os idealismos; e na medida em que assim ela também atinge o idealismo crítico, torna-se mais claro o motivo que liga Adorno e Horkheimer a Kant, e não só ao da Crítica da razão pura, mas também ao de “Sonhos de um visionário”.

Esse texto pré-crítico é sem dúvida uma expressão do espírito da Aufklärung, inclusive no sentido em que Kant a definirá mais tarde, no famoso artigo de 1784, pois ele é nitidamente uma crítica iluminista a um certo obscurantismo – uma crítica na qual o autor usou todos os recursos do seu teclado, pois ela se estende desde o registro mais grave da argumentação filosófica aos agudos do riso, debochando não só dos que se deixam enganar, confundindo a realidade com os seus desejos e fantasias, como também dos enganadores de todos os tipos. Num pequeno ensaio intitulado “Resumé sobre indústria cultural”, Adorno assinalou o ponto no qual a teoria crítica da indústria cultural se conecta com Kant:

O imperativo categórico da indústria cultural, diferentemente do kantiano, não tem mais nada em comum com a liberdade. Ele diz: tu deves te adaptar, não importa a que; adaptar-te ao que simplesmente é e ao que todos pensam enquanto reflexo do poder e da onipresença do que é. [...] O efeito da indústria cultural em seu conjunto é o de um antiesclarecimento; como Horkheimer e eu dissemos, nela o esclarecimento, ou seja, a progressiva dominação técnica da natureza, tornou-se o engodo das massas, o meio para aprisionar a consciência. Ela impede a formação de indivíduos autônomos, independentes, capazes de decisão e juízos conscientes.8

Coerentemente, Adorno observa que ela dilapida as bases da democracia, da qual, aliás, não pode prescindir inteiramente. A exortação de Kant à Mündigkeit, considerada da perspectiva do presente, se deixa ver já como um cuidado com aquelas bases, expresso na figura da esfera pública como o sujeito coletivo do esclarecimento.

Ad 2) Walter encerra o seu texto em diálogo com Mark Fisher. Ele é preparado pelo motivo da “arte sem sonho”, que Walter compreende da seguinte maneira:

A fórmula de uma arte sem sonho que realiza o idealismo sonhador, isto é, o sonho da transcendência, pode ser encontrada na arte do espetáculo fantasmagórico, bem como naquela dos romances populares de fantasmas. Esse esquematismo do conhecimento, circunscrito ao esquema óptico da projeção do focus imaginarius no ensaio de 1766, se associa perfeitamente ao modelo da projeção espectral do sonho coletivo, no qual os espectros da superstição banidos pelas luzes da razão retornam por meio dos dispositivos técnico-científicos e dos livros, ou seja, retornam por intermédio de dois pilares das luzes: o conhecimento tecnocientífico e as letras.

Como tentei mostrar, creio que Horkheimer e Adorno têm em vista outra coisa quando se referem a uma “arte sem sonho”; além disso, não me parece clara essa associação entre o “esquematismo do conhecimento” e o “modelo da projeção espectral do sonho coletivo”. Seja como for, são esses elementos que levam Walter ao encontro de Fisher. Se entendi bem o final do texto, Walter está tão convencido quanto Fisher de que vivemos num mundo que não só frustra os nossos desejos como os representa como se não fossem nossos. Fisher, como lembra Walter, atribui isso a uma “elite política”, a qual seria a principal operadora do “realismo capitalista”, embora Walter prefira caracterizar esse realismo, ainda de acordo com Fisher, como uma “atmosfera abrangente”, paralisadora do pensamento e da ação. “Podemos traduzir essa atmosfera, seguindo a tese kantiana, como tendo raízes no desejo fantasmático da eternidade, a perpetuação de si expressa na fé moral na vida eterna que direciona nosso esquema cognitivo replicado no esquema técnico da indústria cultural”. Se a metáfora da raiz é usada aqui no sentido causal, então a explicação proposta por Walter é tipicamente idealista; se ela sugere afinidades eletivas entre a pretensão de eternidade do capitalismo e a fé moral na vida eterna, então é muito discutível. Seja como for, Walter cita uma nova passagem de Fisher, de acordo com a qual a ilusão solipsista de que o mundo é um produto da nossa mente seria antes consoladora que perturbadora, pois satisfaria “nossas fantasias infantis de onipotência” – e é de acordo com essa passagem, cuja conexão com o argumento anterior não me parece clara, que Walter então conclui:

Dessa maneira, não é uma classe política, ou uma elite que estaria por traz do realismo capitalista como o operador do fantascópio estava atrás do maquinário dos efeitos da fantasmagoria, ou o escritor por traz dos fantasmas e demônios góticos, mas antes é a própria fantasmagoria que comanda o espetáculo em um presente contínuo.

Em outras palavras, a fantasmagoria teria adquirido uma perfeita vida própria, livre das contingências naturais e histórico-sociais.

Sou muito cético em relação a essa conclusão, pois parece que ela quer nos fazer crer na existência de mecanismos ou sistemas perfeitos demais. Como Kant, não espero muito dessa madeira retorcida com a qual fomos feitos, mas da qual jamais me lamentaria. Afinal, ela nos impede de crer em qualquer espécie de perfeição, sobretudo na perfeição do poder, seja como a plena realização de um reino da liberdade, seja como o pesadelo de uma sujeição absoluta, de um controle total. Que pessoas, grupos sociais e povos inteiros se deixem dominar, e mesmo que se deixem dominar por muito tempo, é algo que a experiência nos mostra à exaustão; mas que se deixem dominar totalmente, é algo de que a mesma experiência nos inspira a duvidar. Aquela madeira retorcida, que tanto dificulta nossos desejos de felicidade e justiça, também torna difícil que o horror totalitário tenha pleno êxito. Nossas deploradas fraquezas também podem operar efeitos como os das nossas melhores virtudes; e não há “realismo” que possa derrotá-las. O Sr. Keuner, a quem Brecht sempre se referia como “o pensador”, parecia saber disso, como nesta história, intitulada “Medidas contra a violência”.

Quando o Sr. Keuner, o pensador, manifestou-se num salão, diante de muitos, contra a violência, ele notou como as pessoas diante dele recuaram e foram embora. Ele olhou ao seu redor e viu postada atrás dele – a violência.

“O que você disse?”, perguntou-lhe a violência.

“Eu me manifestei a favor da violência”, respondeu o Sr. Keuner.

Quando o Sr. Keuner foi-se embora, seus alunos lhe perguntaram pela sua espinha dorsal. O Sr. Keuner respondeu: “Não tenho espinha dorsal para quebrar. Justamente eu tenho de viver mais do que a violência.”

E o Sr. Keuner contou a seguinte história:

Um dia, na época da ilegalidade, chegou à casa do Sr. Egge, que aprendera a dizer não, um agente com um documento emitido em nome daqueles que dominavam a cidade, no qual constava que qualquer casa na qual ele colocasse os pés devia ser sua; que, do mesmo modo, toda comida que ele exigisse devia ser sua; que, do mesmo modo, todo homem que ele visse devia lhe servir.

O agente sentou-se numa cadeira, exigiu comida, lavou-se, deitou-se e, com o rosto à parede, perguntou antes de adormecer: “Você me servirá?”

O Sr. Egge o cobriu com um cobertor, espantou as moscas, vigiou o seu sono e, como nesse dia, o obedeceu por sete anos. Mas seja lá o que tenha feito por ele, teve o cuidado com uma coisa: o de não dizer uma palavra. Quando então os sete anos se passaram e o agente engordou de tanto comer, dormir e dar ordens, o agente morreu. Aí o Sr. Egge o enrolou num cobertor estragado, arrastou-o para fora de casa, lavou o local, caiou as paredes, respirou aliviado e respondeu: “Não”.9

Referências bibliográficas

ADORNO, Theodor W. “Resumé sobre indústria cultural”. In: _____. Sem diretriz – Parva Aesthetica. Tradução de Luciano Gatti. São Paulo: Unesp, 2021.

BRECHT, Bertolt. Gechichte vom Herrn Keuner. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1971.

DUARTE, Rodrigo. “Esquematismo e semiformação”. Educação & Sociedade, v. 24, n. 83 (agosto de 2003), p. 441-457.

FISHER, Mark. Realismo capitalista. É mais fácil imaginar o fim do mundo que o fim do capitalismo. Tradução de Rodrigo Gonsalves, Jorge Adeodato e Maikel da Silveira. São Paulo: Autonomia Literária, 2020.

HORKHEIMER, Max; ADORNO, Theodor W. Dialética do esclarecimento. Fragmentos filosóficos. Tradução de Guido de Almeida. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.

HORKHEIMER, Max. Notizen 1950-1969. Dämmerung. Notizen in Deutschland. Frankfurt am Main: S. Fischer, 1974.

_____. “Teoria tradicional e teoria crítica”. In: BENJAMIN, Walter et al. Textos escolhidos. Col. Os Pensadores. São Paulo: Abril, 1980.

_____. “História e psicologia”. In: _____. Teoria crítica I. Tradução de Hilde Cohn. São Paulo: Perspectiva e Edusp, 1990.

KANT, Immanuel. “Sonhos de um visionário explicados por sonhos da metafísica”. In: _____. Escritos pré-críticos. Tradução de Joãosinho Beckenkamp. São Paulo: Unesp, 2005, p. 141-218.

* Ricardo Barbosa é professor do Departamento de Filosofia da UERJ
1 DUARTE, 2003, p. 449-450.
2 HORKHEIMER; ADORNO, 1985, p. 117.
3 KrU, B 146.
4 HORKHEIMER, 1990, p. 23 e 1980, p. 127.
5 HORKHEIMER, 1974, p. 5.
6 HORKHEIMER; ADORNO, 1985, p. 117.
7 KrV, A 141, B 180.
8 ADORNO, 2021, p. 117 e 120.
9 BRECHT, 1971, p. 9-10.